De Pueblos Indígenas en Brasil
The printable version is no longer supported and may have rendering errors. Please update your browser bookmarks and please use the default browser print function instead.
Noticias
Martírio: um filme para indignar Brasília
22/09/2016
Autor: Felipe Milanez
Fonte: Carta Capital- http://www.cartacapital.com.br
Há um momento no filme Martírio (2016, 160 min, dir. Vincent Carelli), e peço licença para não fazer o sacrilégio de estragar alguma surpresa, mas está na foto que ilustra esse artigo, quando um indígena Kaiowa diz: "O que tá pegando a gente é o capitalismo."
Desde que assisti Martírio, em um encontro com o diretor Vincent Carelli em Olinda (PE), poucas semanas atrás, essa frase, dita nesse contexto, por essa voz no belo ritmo da língua guarani, não sai da minha cabeça. O capitalismo está pegando os indígenas.
Tal como um monstro, em uma analogia que faz Ailton Krenak quando "o mercado acorda de mau humor e quer comer uma montanha", os Kaiowa e Guarani possuem uma precisa análise da situação em que se encontram e procuram traçar estratégias de autonomia e liberdade. Como enfrentar o capitalismo que também é responsável pela destruição cultural, além da física e outras dimensões que afligem os indígenas?
Nesta quinta-feira 22, o documentário Martírio será exibido pela primeira vez no Festival de Cinema de Brasília, as 21 horas.
Martírio é o segundo filme da trilogia ainda em andamento de Vincent Carelli, indigenista, documentarista, criador do projeto Vídeo nas Aldeias. O primeiro filme foi Corumbiara, o segundo, Martírio, e o final será Adeus, Capitão. Essa trilogia, diferentemente dos filmes do Vídeo nas Aldeias, é baseada no longo trabalho investigativo de Carelli, filmes produzidos ao longo de três décadas, onde a visão dele da luta indígena é apresentada junto de profundas mudanças no país.
A trilogia de Vincent é ao mesmo tempo material histórico do registro de um tempo, de uma transição da ditadura para a democracia, em um processo aonde os povos indígenas permaneceram, constantemente, excluídos das garantias aos direitos fundamentais e do acesso aos aparelhos do Estado, sempre mantidos de forma privilegiada nas mãos de poucos e brancos.
Em 2013, escrevi um texto nessa coluna apoiando o financiamento coletivo por Carelli para a realização de Martírio, que conseguiu superar a meta e arrecadar oitenta e cinco mil reais. Os recursos foram insuficientes para todo o filme, mas fundamentais para avançar na sua produção.
Naquele momento, entrevistei Carelli e ele me disse: "Agora com essa tragédia com os Guarani Kaiowa, é preciso fazer algo, e o cinema é uma ferramenta poderosa, aprendi isso com Corumbiara. Não é por gosto que tenho tratado do tema da violência contra os índios, é por imposição dos acontecimentos."
Eu já imaginava, e assim sugeri no título, que Martírio era "um filme que o Brasil precisa ver". Agora, pronto e finalizado, o Brasil precisa ver.
Carelli diz que fez o filme "por imposição", e assim concluiu uma obra extraordinária. Martírio, bastante longo, é denso e profundo, ao mesmo tempo conduzido com uma contraditória suavidade que nos permite acompanhar, indignar, mas sempre com um grande respeito aos personagens e às reflexões apresentadas.
É um documentário que traduz uma profunda indignação que caracteriza a vida de Vincent Carelli: essa imposição de gritar, de se indignar, se insurgir, uma revolta contida dentro do peito de Vincent desde a primeira vez em que ele esteve entre os Kaiowa e Guarani nos anos 1980.
Martírio é um filme-evento. Vincent nos conduz para o coração das trevas do agronegócio, e nos mostra a luz e a beleza que move os Kaiowa e Guarani a lutarem para existir. Essa luz é expressa pelas reflexões, cantos, a religiosidade sempre presente e marcante, e uma epistemologia extremamente sofisticada, uma forma de ver, analisar e pensar o mundo que é única.
Martírio traz uma profundidade inédita na cinematografia sobre a luta Guarani e Kaiowa. Um filme filmado de dentro, junto, e pelos indígenas também. E traz o que se pode chamar de o "outro lado" do genocídio através dos vômitos racistas no Congresso Nacional, cenas deploráveis de um leilão da morte, a fala mansa dos matadores.
Afinal, o genocídio é um ato em que um grupo tenta exterminar o "outro", acabar com a existência de um povo. Nesse caso, o lado genocida, materializado pelas balas dos pistoleiros e dos grupos de extermínio e empresas de segurança, é composto por fazendeiros, ruralistas, e pela omissão e ação do Estado. A culpa histórica do Estado pelos eventos que levam ao martírio guarani é apresentada com precisão histórica, e farta documentação.
Martírio acompanha a trajetória do drama e da violência colonial do capitalismo que atinge os Guarani, desde sua perspectiva histórica nos séculos anteriores, com a Guerra do Paraguai, até o violentíssimo avanço das últimas décadas, marcadas pela crueldade do racismo moderno e a desumanização científica e mediática produzida contra os indígenas nos últimos anos.
A "guerra justa" que era aplicada para a escravização antes, agora é justificada pela teologia do progresso, do desenvolvimento, e em louvor à pata do boi e ao sacro grão da soja, a materialização da despossessão produzida pelo capitalismo e pelo colonialismo.
O filme percorre o caminho tortuoso entre o Mato Grosso do Sul, na realidade da fronteira, ao centro do poder, em Brasília - e poderia passar também pelos grandes portos consumidores de soja na Holanda, na China, nos Estados Unidos, ou do biodiesel que abastece os postos de gasolina e o bolso de ricas famílias em São Paulo.
Através da câmera de Carelli, que trabalha em conjunto com Ernesto de Carvalho, acompanhamos o pensamento Guarani e Kaiowa, a sofisticada compreensão de mundo que desenvolvem, e o deplorável discurso da intolerância que justifica a acumulação de capital e de terra sobre o sangue indígena. A hipocrisia da falsa democracia racial é desnudada pelas contradições da formação do Estado-nação que é um verdadeiro "Estado de Exceção".
Carelli é um ícone da luta indígena, e nos mostra a possibilidade de uma pessoa homem e branca, em um posicionamento social do colonizador, de inverter a trajetória construída pela sociedade para mudar de lado, engajar-se em um contra-movimento descolonial para lutar pela autonomia e liberdade dos povos indígenas, a batalhar por justiça, e a se indignar e provocar que outros se indignem frente aos absurdos, a covardia e a violência cruel.
Pessoalmente, sou um grande admirador de Vincent Carelli, e é por causa de filmes como Martírio que tantos outros e outras, assim como eu, o tratam como uma pessoa absolutamente essencial para se pensar o Brasil que vivemos, para se indignar e lutar.
http://www.cartacapital.com.br/cultura/martirio-um-filme-para-indignar-brasilia
Desde que assisti Martírio, em um encontro com o diretor Vincent Carelli em Olinda (PE), poucas semanas atrás, essa frase, dita nesse contexto, por essa voz no belo ritmo da língua guarani, não sai da minha cabeça. O capitalismo está pegando os indígenas.
Tal como um monstro, em uma analogia que faz Ailton Krenak quando "o mercado acorda de mau humor e quer comer uma montanha", os Kaiowa e Guarani possuem uma precisa análise da situação em que se encontram e procuram traçar estratégias de autonomia e liberdade. Como enfrentar o capitalismo que também é responsável pela destruição cultural, além da física e outras dimensões que afligem os indígenas?
Nesta quinta-feira 22, o documentário Martírio será exibido pela primeira vez no Festival de Cinema de Brasília, as 21 horas.
Martírio é o segundo filme da trilogia ainda em andamento de Vincent Carelli, indigenista, documentarista, criador do projeto Vídeo nas Aldeias. O primeiro filme foi Corumbiara, o segundo, Martírio, e o final será Adeus, Capitão. Essa trilogia, diferentemente dos filmes do Vídeo nas Aldeias, é baseada no longo trabalho investigativo de Carelli, filmes produzidos ao longo de três décadas, onde a visão dele da luta indígena é apresentada junto de profundas mudanças no país.
A trilogia de Vincent é ao mesmo tempo material histórico do registro de um tempo, de uma transição da ditadura para a democracia, em um processo aonde os povos indígenas permaneceram, constantemente, excluídos das garantias aos direitos fundamentais e do acesso aos aparelhos do Estado, sempre mantidos de forma privilegiada nas mãos de poucos e brancos.
Em 2013, escrevi um texto nessa coluna apoiando o financiamento coletivo por Carelli para a realização de Martírio, que conseguiu superar a meta e arrecadar oitenta e cinco mil reais. Os recursos foram insuficientes para todo o filme, mas fundamentais para avançar na sua produção.
Naquele momento, entrevistei Carelli e ele me disse: "Agora com essa tragédia com os Guarani Kaiowa, é preciso fazer algo, e o cinema é uma ferramenta poderosa, aprendi isso com Corumbiara. Não é por gosto que tenho tratado do tema da violência contra os índios, é por imposição dos acontecimentos."
Eu já imaginava, e assim sugeri no título, que Martírio era "um filme que o Brasil precisa ver". Agora, pronto e finalizado, o Brasil precisa ver.
Carelli diz que fez o filme "por imposição", e assim concluiu uma obra extraordinária. Martírio, bastante longo, é denso e profundo, ao mesmo tempo conduzido com uma contraditória suavidade que nos permite acompanhar, indignar, mas sempre com um grande respeito aos personagens e às reflexões apresentadas.
É um documentário que traduz uma profunda indignação que caracteriza a vida de Vincent Carelli: essa imposição de gritar, de se indignar, se insurgir, uma revolta contida dentro do peito de Vincent desde a primeira vez em que ele esteve entre os Kaiowa e Guarani nos anos 1980.
Martírio é um filme-evento. Vincent nos conduz para o coração das trevas do agronegócio, e nos mostra a luz e a beleza que move os Kaiowa e Guarani a lutarem para existir. Essa luz é expressa pelas reflexões, cantos, a religiosidade sempre presente e marcante, e uma epistemologia extremamente sofisticada, uma forma de ver, analisar e pensar o mundo que é única.
Martírio traz uma profundidade inédita na cinematografia sobre a luta Guarani e Kaiowa. Um filme filmado de dentro, junto, e pelos indígenas também. E traz o que se pode chamar de o "outro lado" do genocídio através dos vômitos racistas no Congresso Nacional, cenas deploráveis de um leilão da morte, a fala mansa dos matadores.
Afinal, o genocídio é um ato em que um grupo tenta exterminar o "outro", acabar com a existência de um povo. Nesse caso, o lado genocida, materializado pelas balas dos pistoleiros e dos grupos de extermínio e empresas de segurança, é composto por fazendeiros, ruralistas, e pela omissão e ação do Estado. A culpa histórica do Estado pelos eventos que levam ao martírio guarani é apresentada com precisão histórica, e farta documentação.
Martírio acompanha a trajetória do drama e da violência colonial do capitalismo que atinge os Guarani, desde sua perspectiva histórica nos séculos anteriores, com a Guerra do Paraguai, até o violentíssimo avanço das últimas décadas, marcadas pela crueldade do racismo moderno e a desumanização científica e mediática produzida contra os indígenas nos últimos anos.
A "guerra justa" que era aplicada para a escravização antes, agora é justificada pela teologia do progresso, do desenvolvimento, e em louvor à pata do boi e ao sacro grão da soja, a materialização da despossessão produzida pelo capitalismo e pelo colonialismo.
O filme percorre o caminho tortuoso entre o Mato Grosso do Sul, na realidade da fronteira, ao centro do poder, em Brasília - e poderia passar também pelos grandes portos consumidores de soja na Holanda, na China, nos Estados Unidos, ou do biodiesel que abastece os postos de gasolina e o bolso de ricas famílias em São Paulo.
Através da câmera de Carelli, que trabalha em conjunto com Ernesto de Carvalho, acompanhamos o pensamento Guarani e Kaiowa, a sofisticada compreensão de mundo que desenvolvem, e o deplorável discurso da intolerância que justifica a acumulação de capital e de terra sobre o sangue indígena. A hipocrisia da falsa democracia racial é desnudada pelas contradições da formação do Estado-nação que é um verdadeiro "Estado de Exceção".
Carelli é um ícone da luta indígena, e nos mostra a possibilidade de uma pessoa homem e branca, em um posicionamento social do colonizador, de inverter a trajetória construída pela sociedade para mudar de lado, engajar-se em um contra-movimento descolonial para lutar pela autonomia e liberdade dos povos indígenas, a batalhar por justiça, e a se indignar e provocar que outros se indignem frente aos absurdos, a covardia e a violência cruel.
Pessoalmente, sou um grande admirador de Vincent Carelli, e é por causa de filmes como Martírio que tantos outros e outras, assim como eu, o tratam como uma pessoa absolutamente essencial para se pensar o Brasil que vivemos, para se indignar e lutar.
http://www.cartacapital.com.br/cultura/martirio-um-filme-para-indignar-brasilia
Las noticias publicadas en el sitio Povos Indígenas do Brasil (Pueblos Indígenas del Brasil) son investigadas en forma diaria a partir de fuentes diferentes y transcriptas tal cual se presentan en su canal de origen. El Instituto Socioambiental no se responsabiliza por las opiniones o errores publicados en esos textos. En el caso en el que Usted encuentre alguna inconsistencia en las noticias, por favor, póngase en contacto en forma directa con la fuente mencionada.