De Pueblos Indígenas en Brasil
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News
Pataxó denuncia a organismos internacionais violações de direitos no sul da Bahia, prisão de cacique e Lei do Marco Temporal
04/09/2025
Autor: Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação - Cimi
Fonte: CIMI - https://cimi.org.br
Uruba Pataxó esteve, nas duas últimas semanas, em uma nova rodada de agendas pela Europa. A vice-cacique da aldeia-mãe Barra Velha segue em seu incansável caminho de denúncia das violações de direitos humanos sofridas pelo povo Pataxó, no sul da Bahia. Uruba percorreu países como a Suécia, conversando com cientistas, organizações ambientais e povos indígenas do Norte Global. Ela mostrou como a luta pela Terra Indígena está associada às questões climáticas. Além disso, relacionou os ataques sofridos pelos Pataxó, e por todos os povos indígenas, ao colapso ambiental em curso - afinal, à posse e à exploração da terra orbitam os agentes da destruição de biomas habitados e manejados há milênios. São casos de violência extrema, despejos ilegais de retomadas, assassinatos e execuções, ameaças de morte, perseguições por parte de autoridades públicas e a falta de conclusão dos procedimentos de demarcação, onde, para os indígenas, jorra a fonte de todos os males, têm como intenção a subtração de recursos naturais para transformá-los em mercadoria, e configura o desarranjo do Estado brasileiro com as leis internacionais.
Conforme o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil - Dados de 2024, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), são dez casos registrados de violência contra o patrimônio na Bahia, sendo nove deles no sul do estado - quatro na Terra Indígena (TI) Comexatiba, dois na TI Barra Velha Monte Pascoal, um na Terra Indígena Coroa Vermelha, um no território Coroa Vermelha Ponta Grande e um no território Lagoa Doce. Ainda de acordo com o Relatório, sete indígenas foram assassinados no sul da Bahia em decorrência dos conflitos fundiários.
Um caso se impõe pelo caráter miliciano do ataque. No dia 21 de janeiro do ano passado, um grupo mobilizado pelo Movimento Invasão Zero, com cerca de 200 fazendeiros e jagunços, acompanhados pela Polícia Militar, atacou a tiros e linchamentos a retomada dos povos Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó em Potiraguá. A liderança Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe, foi assassinada com um disparo de arma de fogo. O ataque terminou ainda com indígenas feridos sem gravidade e outros três baleados. Outros mecanismos de violência se desdobram no sul da Bahia. Neste ano, a criminalização de lideranças tem sido comum e ganhou repercussão com a prisão do cacique Suruí Pataxó, presidente do Conselho de Caciques da Terra Indígena (TI) Barra Velha, e também cacique da Aldeia-Mãe Barra Velha. No dia 2 de julho, a Força Nacional o prendeu sem mandado judicial.
"A situação em nossa região não está boa. Aconteceu a prisão do cacique Suruí. Foi uma prisão premeditada por questão política pelo fato dele ser uma liderança do movimento indígena na luta pelo território. Suruí nunca compactuou com nada de errado como tráfico, grilagem ou invasão de terras. Mesmo assim passou a ser difamado. Botaram (a Força Nacional) ele ajoelhado, o humilharam. Torturaram Suruí. Conforme o Suruí, até Porto Seguro pararam cinco vezes incentivando ele a fugir para matá-lo. Deixavam a porta aberta, armas fáceis. Os outros adolescentes presos também foram ameaçados", conta Uruba. Fotos retiradas pelos policiais foram entregues à imprensa com o cacique algemado, na posição típica de um criminoso detido, ao lado de armas, para desconstruir a imagem de liderança política e impor a narrativa de um bandido perigoso, integrante de facção local, ligado ao narcotráfico e roubo de terras.
"O que se alega aqui na região é que não temos direito algum por conta do marco temporal. Temos de fazer essa denúncia porque o Brasil tem culpa disso com o que vem acontecendo. Não vemos medidas para resolver o problema", denuncia Uruba Pataxó
Uruba aponta que, na prisão, Suruí tem recebido ameaças de morte e não recebe atendimento médico, na medida em que sofre de pressão alta, conforme também vem denunciando o próprio Conselho de Caciques. Um habeas corpus foi impetrado na Justiça Federal pela Defensoria Pública da União (DPU), mas ainda não foi julgado. A criminalização teve origem no movimento de retomada de áreas que compõem os limites do território identificado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). "Estou mais uma vez na Europa para denunciar o que acontece na TI Barra Velha. O que se alega aqui na região é que não temos direito algum por conta do marco temporal. Temos de fazer essa denúncia porque o Brasil tem culpa disso com o que vem acontecendo. Não vemos medidas para resolver o problema. No Brasil, quem manda é o agronegócio. Eles falam e o presidente (Luís Inácio Lula da Silva) tem que aceitar. Somos um país de leis que protegem e garantem os direitos indígenas, mas só no papel porque na prática elas não existem para a gente", diz Uruba. A indígena é enfática: a Lei 14.701/23, a Lei do Marco Temporal, intensificou as violências e violações de direitos dos povos indígenas.
A Pataxó integra o Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos por conta das constantes ameaças que sofre. Nestes caminhos repletos de armadilhas e perigos, onde Uruba precisa de proteção policial para trajetos simples, a indígena não costuma andar sozinha. A pesquisadora e doutora em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos, Márcia F. de Camargo, com atuação consolidada junto a comunidades indígenas, especialmente com o povo Pataxó, acompanhou Uruba em sua jornada de denúncias e busca de visibilidade para as vidas Pataxó. A rodada também teve o apoio da equipe internacional do Cimi com a participação do assessor internacional da entidade, o advogado Paulo Lugon. Márcia é uma das proponentes da Metodologia Circular Participativa, desenvolvida a partir da escuta e da convivência em territórios indígenas, com experiência em pesquisas de base comunitária, coautoria com lideranças indígenas e formação de redes voltadas à justiça climática, educação intercultural e valorização dos saberes ancestrais.
"Nosso objetivo é claro: fortalecer alianças internacionais e ampliar o apoio à resistência dos povos indígenas contra a criminalização de lideranças, a invasão de territórios e a imposição de políticas que desrespeitam seus direitos e formas de vida. Levar a voz dos Pataxó para esses espaços é reafirmar que sem justiça para os povos indígenas, não haverá justiça climática, nem futuro sustentável para ninguém", explica a pesquisadora. Uruba e Márcia demonstraram que a luta pelo território deflagrada há décadas pelo povo Pataxó está intimamente ligada às questões climáticas.
A intervenção da Pataxó e da pesquisadora indica como o movimento indígena e seus aliados devem tratar o assunto nos debates circunscritos à COP 30, que ocorrerá em novembro, em Belém (PA), e terá as demarcações como reivindicação central para que o Estado brasileiro, sobretudo o Poder Executivo, supere o mero discurso de comprometimento com o clima e adote medidas efetivas.
Terras indígenas e mudanças climáticas
A agenda contou com a participação na World Water Week 2025, em Estocolmo, capital da Suécia: evento internacional sobre a governança e o futuro da água no planeta. A participação de Uruba Pataxó e Márcia F. de Camargo teve como foco o papel central dos povos indígenas na proteção dos corpos d'água e na defesa da água como bem comum, espiritual e coletivo. Também se reuniram com Suanne Segovia-Tzompa, pesquisadora do Centro de Ciências dos Riscos Naturais e Desastres (Centre of Natural Hazards and Disaster Science), também na Suécia. Suanne visitou a TI Barra Velha do Monte Pascoal, no início deste ano, entre março e abril. Junto com Márcia e o povo Pataxó, exploraram e mapearam os riscos naturais, o clima e outras questões ambientais que, além do conflito fundiário, ameaçam a cultura e os meios de subsistência dos Pataxó. As observações feitas durante o trabalho de campo já indicam alguns resultados preliminares.
Mantendo o mesmo objetivo, Uruba e Márcia participaram também do workshop SING-SÁBME 2025, na Suécia, promovido pelo projeto ARRAMAT, que reuniu representantes indígenas de várias partes do mundo para dialogar sobre colonialismo, racismo ambiental e crise climática. Um dos pontos altos, conforme aponta Márcia, foi a troca direta com os povos Sámi durante cinco dias de campo, fortalecendo alianças e aprendizados entre o Sul Global e o Norte Global. Os Sámi formam um grupo indígena que habita a região de Sápmi, uma área que se estende pelo norte da Noruega, Suécia, Finlândia e o norte da Rússia. Durante o workshop, a Pataxó e a pesquisadora participaram da discussão sobre o que está sendo chamado de 'Genoma da Terra'.
"Levamos a realidade dos Pataxó como exemplo concreto de como a sabedoria tradicional, especialmente das mulheres e anciãos da Aldeia-Mãe Barra Velha, é essencial para proteger o que chamamos de vida em sua totalidade", explica Márcia Camargo
"Trata-se de uma proposta que envolve o mapeamento genético de ecossistemas e espécies como forma de entender e proteger a biodiversidade global", explica Márcia. "Fizemos coletas de amostras de solo de lugares sagrados e locais indicados pelos Sámi com extração de DNA e análise laboratorial através de uma perspectiva indígena, ligando ciência ocidental e conhecimentos tradicionais dos povos originários", detalha. A pesquisadora analisa que o saber tradicional também é parte do 'genoma' do planeta: "traz conhecimentos milenares sobre cura, manejo da natureza e equilíbrio com o ambiente. Nesse contexto, levamos a realidade dos Pataxó como exemplo concreto de como a sabedoria tradicional, especialmente das mulheres e anciãos da Aldeia-Mãe Barra Velha, é essencial para proteger o que chamamos de vida em sua totalidade: a água, a terra, as florestas, os ciclos, os sonhos. No Stockholm Resilience Centre, da Universidade de Estocolmo, dialogamos com cientistas e ativistas sobre como os saberes indígenas podem contribuir na busca por soluções sustentáveis". No Stockholm Resilience Centre, juntamente com o Cimi, Uruba e Márcia fizeram um seminário sobre a situação atual dos povos indígenas com foco no extremo sul da Bahia.
Água e demarcação como adaptação climática
A Semana Mundial da Água teve a 35ª edição durante a passagem de Uruba e Márcia por Estocolmo com o tema "água para a adaptação climática". Uruba destacou como painelista que os rios estão sendo destruídos por mineradoras e empresas do agronegócio, incluindo em sua própria Terra Indígena. Já Márcia ressaltou que as parcerias com os povos indígenas devem ter como foco a demarcação de terras: sem a conclusão dos procedimentos administrativos, preservar as fontes de água torna-se difícil diante do assédio do agronegócio, da mineração e de outros empreendimentos que visam invadir as terras indígenas tomando-as de povos que costumam depender da relação de cooperação e simbiose com o meio ambiente. A Semana Mundial da Água é a principal conferência sobre questões globais relacionadas à água, realizada todos os anos desde 1991.
O evento, organizado pelo Instituto Internacional da Água de Estocolmo, destacou a importância dos conhecimentos tradicionais e valores espirituais dos povos indígenas no manejo e proteção de rios, mares, manguezais e outros ecossistemas aquáticos. Uruba ressaltou que a Lei 14.701/23 não impõe apenas o marco temporal como critério para a demarcação das terras indígenas, mas as libera para a mineração em larga escala nestes territórios protegidos pela Constituição Federal - um outro ponto que torna a lei um produto inconstitucional, sendo manufaturado pela extrema direita no Congresso Nacional.
Após a atividade, ela contou à ONU News, de Estocolmo, como seu povo se relaciona com o meio ambiente. "Para o povo indígena, a água é o nosso sangue, a terra, nosso corpo, e a mata é nosso espírito. Se a gente não cuidar da mãe natureza, nós não estamos cuidando da gente". Ela ressaltou que aqueles que destroem a natureza em troca de lucros não ameaçam apenas os povos indígenas, mas também a si mesmos, pois "estão acabando com o ar que existe para respirar e com a água que sacia a sede". Uruba afirmou à ONU News que aqueles que agridem o meio ambiente acham que estão protegidos pelo dinheiro, mas não estão.
"São várias trocas de conhecimentos que são importantíssimas hoje em dia e abrem novas possibilidades para a resistência dos povos indígenas", diz pesquisadora
A Pataxó criticou à imprensa internacional a aprovação do Projeto de Lei 2159/21. "Foi o Congresso que aprovou a lei da devastação, que autoriza mineradoras, o agronegócio, o processamento dentro da terra indígena. As mineradoras jogam mercúrio e seus resíduos que é para retirar o ouro, diamante, tudo dentro da água e está matando o nosso povo, matando nossas caças, matando o peixe de onde nosso povo sobrevive". Aprovado em julho e sancionado pelo governo federal, com vetos do presidente da República, em agosto, o texto voltou aos congressistas para consideração. Uruba Pataxó afirmou que o povo Pataxó surgiu das águas e que vai sempre atuar para proteger esse recurso natural.
Já Márcia, que também participou do painel, abordou a importância da troca de conhecimentos entre povos indígenas e pesquisadores. Ela destacou diversas parcerias que realiza com Uruba em pesquisas dentro do território Pataxó. "Viemos fazer também o workshop, eu e Uruba, sobre o genoma da terra, extração do genoma e do DNA, tanto de solo como da água. Queremos usar esse conhecimento também como ferramenta para defesa do território e para a demarcação, além de ajudar no processo de demarcação do território. Então, são várias trocas de conhecimentos que são importantíssimas hoje em dia e abrem novas possibilidades para a resistência dos povos indígenas", completa.
"Conseguimos fazer uma apresentação polifônica, onde além de nossas vozes (eu e Uruba que estávamos lá fisicamente), outras vozes puderem ser ouvidas como a de May-Britt Ohman, Uppsala University, Cimi, cacique Mandy, com seu projeto de construção do Instituto de Guerreiras e Guerreiros da Mata Atlântica, além de Suanne Segovia da Swedish Defense University, todos em prol da defesa do meio ambiente, água e mudanças climáticas, com perspectivas que vinham da terra até o ambiente acadêmico", conclui Márcia. Para enfrentar o desafio, durante a rodada pela Europa, Uruba Pataxó conseguiu o apoio do Greenpeace da Suécia e da Forest Rebelion na luta pela demarcação e denúncias de violações e violências contra os territórios.
Demarcações: avanço tímido no sul da Bahia
O avanço nas demarcações tem sido tímido e a saída encontrada por muitos povos indígenas está na retomada de terras - o que leva aldeias a enfrentar a fúria armada de seus opositores. Entre os procedimentos publicados pelo atual governo envolvendo territórios no sul e extremo sul da Bahia, apenas a TI Aldeia Velha avançou: em abril de 2024, teve a homologação publicada. Em março deste ano, durante audiência com lideranças dos povos Tupinambá e Pataxó no Ministério da Justiça, em Brasília (DF), o ministro Ricardo Lewandowski confirmou que a vigência da Lei 14.701/23, a Lei do Marco Temporal, é a razão de não haver novas declarações de terras indígenas pela pasta. "A demarcação não pode avançar enquanto o STF não decide quem tem razão: se ele mesmo, o STF, ou se essa lei editada pelo Congresso Nacional que reconhece o marco temporal", afirmou o ministro aos indígenas que cobravam a emissão das portarias das TIs Tupinambá de Olivença, Tupinambá de Belmonte e Barra Velha do Monte Pascoal, aguardadas há mais de dez anos. "Temos que obedecer a lei, enquanto ela não for derrubada pelo STF, e temos que aguardar a solução do caso".
"Temos que obedecer a lei, enquanto ela não for derrubada pelo STF, e temos que aguardar a solução do caso", disse o ministro da Justiça aos Pataxó e Tupinambá no último mês de março a respeito da Lei 14.701/23
Enquanto o STF posterga a decisão, e o governo federal adere à morosidade, o povo Tupinambá realizou uma retomada de parte de seu território no sul da Bahia no último 30 de agosto. O local retomado é chamado de Fazenda Barra - Acuípe II, área litorânea no município de Una. A área tem cerca de 400 hectares e está circunscrita à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, cujo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação do Território (RCID) foi publicado em 2009. Trata-se de uma retomada que também visa a proteção ambiental, na medida em que se trata de um refúgio da vida silvestre.
Este pedaço da Terra Indígena, a sobreposta Fazenda Barra, já havia sido retomado quando ocorreu a publicação do RCID. Em 2010, a Justiça Federal de Ilhéus concedeu a reintegração de posse aos particulares, retirando os indígenas do local. Desde o despejo forçado dos indígenas, intensificou-se o processo de invasão de empreendimentos imobiliários na parte litorânea da delimitação da Terra Indígena Tupinambá - as retomadas servem ainda para frear tal avanço.
Retiradas dentre as 32 terras indígenas com alguma pendência administrativa na Bahia, de acordo com o Banco de Terras do Cimi, são oito os territórios correspondentes ao sul da Bahia localizados entre os municípios de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Prado e Una. Terras como Barra Velha do Monte Pascoal, Comexatibá e Tupinambá, com os respectivos RCDI publicados, são exemplos de territórios constantemente atacados e atravessados com reintegrações de posse que não têm prosperado em instâncias superiores da Justiça Federal, mesmo que parte da estratégia dos impetrantes seja tentá-las via Justiça Estadual. Situação ainda mais difícil em territórios em processo de identificação, caso de Coroa Vermelha Ponta Grande, Coroa Vermelha Gleba C e Mata Medonha, ou sem providência, caso da Aldeia Aratikum, Corumbalzinho e Lagoa Doce, locais onde as violações são "justificadas" pela ausência de procedimentos em curso, ou seja, os agressores e ocupantes não indígenas alegam que sequer são terras indígenas.
Conforme o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil - Dados de 2024, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), são dez casos registrados de violência contra o patrimônio na Bahia, sendo nove deles no sul do estado - quatro na Terra Indígena (TI) Comexatiba, dois na TI Barra Velha Monte Pascoal, um na Terra Indígena Coroa Vermelha, um no território Coroa Vermelha Ponta Grande e um no território Lagoa Doce. Ainda de acordo com o Relatório, sete indígenas foram assassinados no sul da Bahia em decorrência dos conflitos fundiários.
Um caso se impõe pelo caráter miliciano do ataque. No dia 21 de janeiro do ano passado, um grupo mobilizado pelo Movimento Invasão Zero, com cerca de 200 fazendeiros e jagunços, acompanhados pela Polícia Militar, atacou a tiros e linchamentos a retomada dos povos Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó em Potiraguá. A liderança Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe, foi assassinada com um disparo de arma de fogo. O ataque terminou ainda com indígenas feridos sem gravidade e outros três baleados. Outros mecanismos de violência se desdobram no sul da Bahia. Neste ano, a criminalização de lideranças tem sido comum e ganhou repercussão com a prisão do cacique Suruí Pataxó, presidente do Conselho de Caciques da Terra Indígena (TI) Barra Velha, e também cacique da Aldeia-Mãe Barra Velha. No dia 2 de julho, a Força Nacional o prendeu sem mandado judicial.
"A situação em nossa região não está boa. Aconteceu a prisão do cacique Suruí. Foi uma prisão premeditada por questão política pelo fato dele ser uma liderança do movimento indígena na luta pelo território. Suruí nunca compactuou com nada de errado como tráfico, grilagem ou invasão de terras. Mesmo assim passou a ser difamado. Botaram (a Força Nacional) ele ajoelhado, o humilharam. Torturaram Suruí. Conforme o Suruí, até Porto Seguro pararam cinco vezes incentivando ele a fugir para matá-lo. Deixavam a porta aberta, armas fáceis. Os outros adolescentes presos também foram ameaçados", conta Uruba. Fotos retiradas pelos policiais foram entregues à imprensa com o cacique algemado, na posição típica de um criminoso detido, ao lado de armas, para desconstruir a imagem de liderança política e impor a narrativa de um bandido perigoso, integrante de facção local, ligado ao narcotráfico e roubo de terras.
"O que se alega aqui na região é que não temos direito algum por conta do marco temporal. Temos de fazer essa denúncia porque o Brasil tem culpa disso com o que vem acontecendo. Não vemos medidas para resolver o problema", denuncia Uruba Pataxó
Uruba aponta que, na prisão, Suruí tem recebido ameaças de morte e não recebe atendimento médico, na medida em que sofre de pressão alta, conforme também vem denunciando o próprio Conselho de Caciques. Um habeas corpus foi impetrado na Justiça Federal pela Defensoria Pública da União (DPU), mas ainda não foi julgado. A criminalização teve origem no movimento de retomada de áreas que compõem os limites do território identificado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). "Estou mais uma vez na Europa para denunciar o que acontece na TI Barra Velha. O que se alega aqui na região é que não temos direito algum por conta do marco temporal. Temos de fazer essa denúncia porque o Brasil tem culpa disso com o que vem acontecendo. Não vemos medidas para resolver o problema. No Brasil, quem manda é o agronegócio. Eles falam e o presidente (Luís Inácio Lula da Silva) tem que aceitar. Somos um país de leis que protegem e garantem os direitos indígenas, mas só no papel porque na prática elas não existem para a gente", diz Uruba. A indígena é enfática: a Lei 14.701/23, a Lei do Marco Temporal, intensificou as violências e violações de direitos dos povos indígenas.
A Pataxó integra o Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos por conta das constantes ameaças que sofre. Nestes caminhos repletos de armadilhas e perigos, onde Uruba precisa de proteção policial para trajetos simples, a indígena não costuma andar sozinha. A pesquisadora e doutora em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos, Márcia F. de Camargo, com atuação consolidada junto a comunidades indígenas, especialmente com o povo Pataxó, acompanhou Uruba em sua jornada de denúncias e busca de visibilidade para as vidas Pataxó. A rodada também teve o apoio da equipe internacional do Cimi com a participação do assessor internacional da entidade, o advogado Paulo Lugon. Márcia é uma das proponentes da Metodologia Circular Participativa, desenvolvida a partir da escuta e da convivência em territórios indígenas, com experiência em pesquisas de base comunitária, coautoria com lideranças indígenas e formação de redes voltadas à justiça climática, educação intercultural e valorização dos saberes ancestrais.
"Nosso objetivo é claro: fortalecer alianças internacionais e ampliar o apoio à resistência dos povos indígenas contra a criminalização de lideranças, a invasão de territórios e a imposição de políticas que desrespeitam seus direitos e formas de vida. Levar a voz dos Pataxó para esses espaços é reafirmar que sem justiça para os povos indígenas, não haverá justiça climática, nem futuro sustentável para ninguém", explica a pesquisadora. Uruba e Márcia demonstraram que a luta pelo território deflagrada há décadas pelo povo Pataxó está intimamente ligada às questões climáticas.
A intervenção da Pataxó e da pesquisadora indica como o movimento indígena e seus aliados devem tratar o assunto nos debates circunscritos à COP 30, que ocorrerá em novembro, em Belém (PA), e terá as demarcações como reivindicação central para que o Estado brasileiro, sobretudo o Poder Executivo, supere o mero discurso de comprometimento com o clima e adote medidas efetivas.
Terras indígenas e mudanças climáticas
A agenda contou com a participação na World Water Week 2025, em Estocolmo, capital da Suécia: evento internacional sobre a governança e o futuro da água no planeta. A participação de Uruba Pataxó e Márcia F. de Camargo teve como foco o papel central dos povos indígenas na proteção dos corpos d'água e na defesa da água como bem comum, espiritual e coletivo. Também se reuniram com Suanne Segovia-Tzompa, pesquisadora do Centro de Ciências dos Riscos Naturais e Desastres (Centre of Natural Hazards and Disaster Science), também na Suécia. Suanne visitou a TI Barra Velha do Monte Pascoal, no início deste ano, entre março e abril. Junto com Márcia e o povo Pataxó, exploraram e mapearam os riscos naturais, o clima e outras questões ambientais que, além do conflito fundiário, ameaçam a cultura e os meios de subsistência dos Pataxó. As observações feitas durante o trabalho de campo já indicam alguns resultados preliminares.
Mantendo o mesmo objetivo, Uruba e Márcia participaram também do workshop SING-SÁBME 2025, na Suécia, promovido pelo projeto ARRAMAT, que reuniu representantes indígenas de várias partes do mundo para dialogar sobre colonialismo, racismo ambiental e crise climática. Um dos pontos altos, conforme aponta Márcia, foi a troca direta com os povos Sámi durante cinco dias de campo, fortalecendo alianças e aprendizados entre o Sul Global e o Norte Global. Os Sámi formam um grupo indígena que habita a região de Sápmi, uma área que se estende pelo norte da Noruega, Suécia, Finlândia e o norte da Rússia. Durante o workshop, a Pataxó e a pesquisadora participaram da discussão sobre o que está sendo chamado de 'Genoma da Terra'.
"Levamos a realidade dos Pataxó como exemplo concreto de como a sabedoria tradicional, especialmente das mulheres e anciãos da Aldeia-Mãe Barra Velha, é essencial para proteger o que chamamos de vida em sua totalidade", explica Márcia Camargo
"Trata-se de uma proposta que envolve o mapeamento genético de ecossistemas e espécies como forma de entender e proteger a biodiversidade global", explica Márcia. "Fizemos coletas de amostras de solo de lugares sagrados e locais indicados pelos Sámi com extração de DNA e análise laboratorial através de uma perspectiva indígena, ligando ciência ocidental e conhecimentos tradicionais dos povos originários", detalha. A pesquisadora analisa que o saber tradicional também é parte do 'genoma' do planeta: "traz conhecimentos milenares sobre cura, manejo da natureza e equilíbrio com o ambiente. Nesse contexto, levamos a realidade dos Pataxó como exemplo concreto de como a sabedoria tradicional, especialmente das mulheres e anciãos da Aldeia-Mãe Barra Velha, é essencial para proteger o que chamamos de vida em sua totalidade: a água, a terra, as florestas, os ciclos, os sonhos. No Stockholm Resilience Centre, da Universidade de Estocolmo, dialogamos com cientistas e ativistas sobre como os saberes indígenas podem contribuir na busca por soluções sustentáveis". No Stockholm Resilience Centre, juntamente com o Cimi, Uruba e Márcia fizeram um seminário sobre a situação atual dos povos indígenas com foco no extremo sul da Bahia.
Água e demarcação como adaptação climática
A Semana Mundial da Água teve a 35ª edição durante a passagem de Uruba e Márcia por Estocolmo com o tema "água para a adaptação climática". Uruba destacou como painelista que os rios estão sendo destruídos por mineradoras e empresas do agronegócio, incluindo em sua própria Terra Indígena. Já Márcia ressaltou que as parcerias com os povos indígenas devem ter como foco a demarcação de terras: sem a conclusão dos procedimentos administrativos, preservar as fontes de água torna-se difícil diante do assédio do agronegócio, da mineração e de outros empreendimentos que visam invadir as terras indígenas tomando-as de povos que costumam depender da relação de cooperação e simbiose com o meio ambiente. A Semana Mundial da Água é a principal conferência sobre questões globais relacionadas à água, realizada todos os anos desde 1991.
O evento, organizado pelo Instituto Internacional da Água de Estocolmo, destacou a importância dos conhecimentos tradicionais e valores espirituais dos povos indígenas no manejo e proteção de rios, mares, manguezais e outros ecossistemas aquáticos. Uruba ressaltou que a Lei 14.701/23 não impõe apenas o marco temporal como critério para a demarcação das terras indígenas, mas as libera para a mineração em larga escala nestes territórios protegidos pela Constituição Federal - um outro ponto que torna a lei um produto inconstitucional, sendo manufaturado pela extrema direita no Congresso Nacional.
Após a atividade, ela contou à ONU News, de Estocolmo, como seu povo se relaciona com o meio ambiente. "Para o povo indígena, a água é o nosso sangue, a terra, nosso corpo, e a mata é nosso espírito. Se a gente não cuidar da mãe natureza, nós não estamos cuidando da gente". Ela ressaltou que aqueles que destroem a natureza em troca de lucros não ameaçam apenas os povos indígenas, mas também a si mesmos, pois "estão acabando com o ar que existe para respirar e com a água que sacia a sede". Uruba afirmou à ONU News que aqueles que agridem o meio ambiente acham que estão protegidos pelo dinheiro, mas não estão.
"São várias trocas de conhecimentos que são importantíssimas hoje em dia e abrem novas possibilidades para a resistência dos povos indígenas", diz pesquisadora
A Pataxó criticou à imprensa internacional a aprovação do Projeto de Lei 2159/21. "Foi o Congresso que aprovou a lei da devastação, que autoriza mineradoras, o agronegócio, o processamento dentro da terra indígena. As mineradoras jogam mercúrio e seus resíduos que é para retirar o ouro, diamante, tudo dentro da água e está matando o nosso povo, matando nossas caças, matando o peixe de onde nosso povo sobrevive". Aprovado em julho e sancionado pelo governo federal, com vetos do presidente da República, em agosto, o texto voltou aos congressistas para consideração. Uruba Pataxó afirmou que o povo Pataxó surgiu das águas e que vai sempre atuar para proteger esse recurso natural.
Já Márcia, que também participou do painel, abordou a importância da troca de conhecimentos entre povos indígenas e pesquisadores. Ela destacou diversas parcerias que realiza com Uruba em pesquisas dentro do território Pataxó. "Viemos fazer também o workshop, eu e Uruba, sobre o genoma da terra, extração do genoma e do DNA, tanto de solo como da água. Queremos usar esse conhecimento também como ferramenta para defesa do território e para a demarcação, além de ajudar no processo de demarcação do território. Então, são várias trocas de conhecimentos que são importantíssimas hoje em dia e abrem novas possibilidades para a resistência dos povos indígenas", completa.
"Conseguimos fazer uma apresentação polifônica, onde além de nossas vozes (eu e Uruba que estávamos lá fisicamente), outras vozes puderem ser ouvidas como a de May-Britt Ohman, Uppsala University, Cimi, cacique Mandy, com seu projeto de construção do Instituto de Guerreiras e Guerreiros da Mata Atlântica, além de Suanne Segovia da Swedish Defense University, todos em prol da defesa do meio ambiente, água e mudanças climáticas, com perspectivas que vinham da terra até o ambiente acadêmico", conclui Márcia. Para enfrentar o desafio, durante a rodada pela Europa, Uruba Pataxó conseguiu o apoio do Greenpeace da Suécia e da Forest Rebelion na luta pela demarcação e denúncias de violações e violências contra os territórios.
Demarcações: avanço tímido no sul da Bahia
O avanço nas demarcações tem sido tímido e a saída encontrada por muitos povos indígenas está na retomada de terras - o que leva aldeias a enfrentar a fúria armada de seus opositores. Entre os procedimentos publicados pelo atual governo envolvendo territórios no sul e extremo sul da Bahia, apenas a TI Aldeia Velha avançou: em abril de 2024, teve a homologação publicada. Em março deste ano, durante audiência com lideranças dos povos Tupinambá e Pataxó no Ministério da Justiça, em Brasília (DF), o ministro Ricardo Lewandowski confirmou que a vigência da Lei 14.701/23, a Lei do Marco Temporal, é a razão de não haver novas declarações de terras indígenas pela pasta. "A demarcação não pode avançar enquanto o STF não decide quem tem razão: se ele mesmo, o STF, ou se essa lei editada pelo Congresso Nacional que reconhece o marco temporal", afirmou o ministro aos indígenas que cobravam a emissão das portarias das TIs Tupinambá de Olivença, Tupinambá de Belmonte e Barra Velha do Monte Pascoal, aguardadas há mais de dez anos. "Temos que obedecer a lei, enquanto ela não for derrubada pelo STF, e temos que aguardar a solução do caso".
"Temos que obedecer a lei, enquanto ela não for derrubada pelo STF, e temos que aguardar a solução do caso", disse o ministro da Justiça aos Pataxó e Tupinambá no último mês de março a respeito da Lei 14.701/23
Enquanto o STF posterga a decisão, e o governo federal adere à morosidade, o povo Tupinambá realizou uma retomada de parte de seu território no sul da Bahia no último 30 de agosto. O local retomado é chamado de Fazenda Barra - Acuípe II, área litorânea no município de Una. A área tem cerca de 400 hectares e está circunscrita à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, cujo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação do Território (RCID) foi publicado em 2009. Trata-se de uma retomada que também visa a proteção ambiental, na medida em que se trata de um refúgio da vida silvestre.
Este pedaço da Terra Indígena, a sobreposta Fazenda Barra, já havia sido retomado quando ocorreu a publicação do RCID. Em 2010, a Justiça Federal de Ilhéus concedeu a reintegração de posse aos particulares, retirando os indígenas do local. Desde o despejo forçado dos indígenas, intensificou-se o processo de invasão de empreendimentos imobiliários na parte litorânea da delimitação da Terra Indígena Tupinambá - as retomadas servem ainda para frear tal avanço.
Retiradas dentre as 32 terras indígenas com alguma pendência administrativa na Bahia, de acordo com o Banco de Terras do Cimi, são oito os territórios correspondentes ao sul da Bahia localizados entre os municípios de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Prado e Una. Terras como Barra Velha do Monte Pascoal, Comexatibá e Tupinambá, com os respectivos RCDI publicados, são exemplos de territórios constantemente atacados e atravessados com reintegrações de posse que não têm prosperado em instâncias superiores da Justiça Federal, mesmo que parte da estratégia dos impetrantes seja tentá-las via Justiça Estadual. Situação ainda mais difícil em territórios em processo de identificação, caso de Coroa Vermelha Ponta Grande, Coroa Vermelha Gleba C e Mata Medonha, ou sem providência, caso da Aldeia Aratikum, Corumbalzinho e Lagoa Doce, locais onde as violações são "justificadas" pela ausência de procedimentos em curso, ou seja, os agressores e ocupantes não indígenas alegam que sequer são terras indígenas.
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