De Pueblos Indígenas en Brasil
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Quem ameaça a mandioca?
16/09/2025
Autor: João Peres
Fonte: O Joio e O Trigo - https://ojoioeotrigo.com.br/2025/09/quem-ameaca-a-mandioca/
Quem ameaça a mandioca?
16.09.25 | Por João Peres , de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro (AM)*
Na região que é guardiã da mandioca braba, influência religiosa, pressão do Estado, chegada dos ultraprocessados e dificuldade de permanência dos jovens ameaçam o cultivo .
Quando os adultos voltaram da roça, já no fim de tarde, não encontraram criança alguma na aldeia. Nem grandes, nem pequenas: criança alguma. Desesperados, dividiram-se para buscá-las no mato e no rio. Chamaram, chamaram, chamaram mais forte, mais agudo, mais desesperado, e nada: criança alguma.
Toda vida, geração após geração, os adultos saíam cedo para a roça e deixavam as crianças mais velhas a cargo das mais novas. Não havia escola, não havia gente branca, não havia riscos, desde que as crianças respeitassem os limites da aldeia. Por isso, era estranho e inexplicável o que estava acontecendo.
Naquela manhã, e os adultos não sabiam disso, um pássaro gigante e barulhento havia sobrevoado a aldeia. Poderia ser um espírito zangado. Uma criatura monstruosa. Um predador desconhecido. Apavoradas, as crianças fizeram correria para o meio do mato, onde estariam protegidas da terrível criatura.
- Era um helicóptero. Mas a gente nunca tinha visto. Depois, quando a gente contou para os adultos, eles explicaram que aquilo era coisa dos brancos - conta Almerinda Ramos de Lima, hoje com 52 anos. Essa cena aconteceu na virada dos anos 1970 para os 80 em Iauaretê, a terra central do povo Tariano, na divisa entre Brasil e Colômbia.
Os Tariano também nunca tinham visto dinheiro. E nem por isso eram pobres. Pelo contrário, nada lhes faltava, para criança alguma. As 22 famílias compartilhavam tudo o que tinham, e cozinhavam e trabalhavam em comunidade.
- Eu nunca tinha visto Manaus. Nunca tinha saído do rio Uaupés. Nunca tinha falado português. Eu tinha 15 anos e não falava nada de português - ela diz, alongando o nada para deixar claro de quanto nada estamos falando - E eu saí um tempo com a minha tia para Manaus, direto eu fui de Iauaretê para lá. Eu nem sabia o que era. Primeira vez que eu saí. Sabe, é o mesmo que levar você e deixar lá no mato.
Almerinda tem cabelos levemente ondulados e até a altura do ombro. No dia da entrevista, vestia uma camiseta preta do Acampamento Terra Livre, assembleia dos povos indígenas realizada em abril em Brasília. O português tardio não deixou lembranças: ela fala com uma fluidez perfeita, sem perdas de tradução, e um raciocínio afiado, crítico, cunhado ao longo de décadas no movimento indígena.
Entre 2013 e 2016, ela presidiu a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), uma organização responsável por cobrir uma área maior do que vários países europeus. Foi, até hoje, a única mulher a alcançar o feito.
- Eu era mãe, agricultora, artesã. Então, muitos não acreditavam que eu ia finalizar meu mandato. Quanto mais diziam isso, mais eu me motivava. O primeiro desafio é ser mulher. O segundo é que eu não tinha conhecimento administrativo. Então, precisava trocar o terçado (facão) pelo computador? Eu troquei.
E depois destrocou. Hoje, ela e a família mantêm uma dezena de roças. Áreas de cultivo de mandioca, principalmente, e de várias frutas. A distância para o núcleo urbano de São Gabriel da Cachoeira e a localização, no Alto Rio Negro, no caminho para a fronteira com a Colômbia, dá materialidade àquilo que aparece nos levantamentos feitos por pesquisadores: é nessa região mais ao noroeste, mais distante, que se encontra uma grande diversidade de cultivos. Apenas a família de Almerinda calcula manter 50 variedades de maniva, que é a rama utilizada para o plantio da mandioca.
Esse sistema agrícola tradicional, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é vivo e pulsante - leia a primeira reportagem da série. Não é preciso vasculhar o território em busca de roças altamente diversas, bem cuidadas e produtivas. Aquilo que se oferece de alimentos frescos na cidade vem dessas roças, que podem estar a minutos ou horas de distância.
Distante das áreas de exploração do agronegócio, o Alto Rio Negro ainda não lida com as ameaças trazidas por desmatamento e grilagem, mas nem tudo está bem. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Mas, ao mesmo tempo, é inegável que pairam ameaças. A valorização dos modos de vida não indígenas, intensificada com a chegada da internet e das redes sociais; a dificuldade de engajar os jovens em uma atividade desvalorizada socialmente; a relação com os governos e com a área urbana, tudo isso opera uma desestruturação das famílias e das comunidades.
No ano passado, o Brasil registrou pela primeira vez um caso de vassoura-de-bruxa em pés de mandioca. A doença fúngica foi responsável por dizimar a cultura do cacau na Bahia, com um impacto que se alastrou por décadas. No caso da mandioca, o diagnóstico foi feito em amostras coletadas em 2023 em terras indígenas no Oiapoque, no Amapá.
Em agosto de 2025, apenas duas das 68 variedades registradas no município haviam resistido à doença. Alguns casos já foram documentados no Pará. Em tese, a grande variabilidade genética da mandioca é uma proteção, mas só o tempo dirá qual o tamanho do problema.
- Vejo que hoje a gente entra nesse capitalismo. O capitalismo domina, entendeu? Então, hoje não há mais partilha. Você chega na comunidade, as pessoas querem vender. 'Você tem isso?' 'Tem, mas é tanto.' Que antes não era, entendeu?
- E quando foi que o capitalismo chegou?
- Com o Bolsa Família. Tudo foi virando mercado. Qualquer coisa já é dinheiro. Os que estão lá em Iauaretê ainda mantêm fora esse capitalismo. Alguns. Mas alguns, não. Isso me preocupa bastante.
O Bolsa Família é uma discussão e tanto entre as comunidades do rio Negro. Ninguém diz que o programa não deveria existir, mas que ele deveria ter sido pensado em respeito às especificidades das várias culturas e das necessidades de cada comunidade. A obrigação de ir à cidade sacar o benefício altera as dinâmicas sociais entre os povos indígenas de São Gabriel da Cachoeira. Às dez da manhã, ao meio-dia, às duas da tarde, a qualquer hora o banco tem uma fila imensa de pessoas. Além disso, para ir das comunidades ao centro é necessário gastar muito dinheiro com o combustível das rabetas - facilmente uma viagem pode custar mais de R$ 2.000 e levar um dia inteiro.
Para várias pessoas, o Bolsa Família foi o primeiro contato com o dinheiro. Sem uma discussão sobre o papel desse recurso, algumas pessoas gastam tudo de uma vez, ou fazem dívidas, ou acabam entrando em ciclos de consumo de produtos nocivos. A hierarquização social da "comida de branco" como algo superior à dieta tradicional introduz nas comunidades vários ultraprocessados e amplia o consumo de açúcar, óleo de soja e sal.
- Os mais jovens dizem que isso é passado. Que é história - continua Almerinda - Mas é melhor você ter a sua história do que não ter. Porque, se você não souber contar quem você é e o que você sabe, é o mesmo que você não ter sombra.
Nós não éramos índios
Quando a rabeta se aproxima de Santa Isabel do Rio Negro, tudo na paisagem lembra um povoado ribeirinho da Amazônia: o casario baixo, muitas casas de madeira, os portos para embarcações e o posto de gasolina fluvial, a floresta que circunda e abraça. Tudo, menos duas enormes construções no alto do morro, totalmente destoantes: são as casas que serviram às missões dos salesianos.
Os salesianos chegaram ao rio Negro na década de 1910. Os prédios de Santa Isabel foram construídos mais tarde, nos anos 1940. De um lado, fica o edifício no qual moravam as garotas indígenas. De outro, os rapazes.
Em São Gabriel da Cachoeira, a presença das missões é igualmente visível, também em construções grandes à beira-rio. Indo mais longe, a influência das missões molda a geografia dessa imensa região: povoados foram fundados ou totalmente reestruturados de acordo com a prioridade religiosa de católicos e protestantes.
É difícil encontrar quem seja taxativo quanto aos efeitos das missões. Os indígenas mais velhos elencam prós e contras. Os não indígenas pisam em ovos. Uma carta no acervo do Instituto Socioambiental (ISA), datada de abril de 1981, é firmada por uma pessoa chamada Alvaro Sampaio, que se depreende ser um indígena. Ele começa elencando que é fato que os missionários intimidaram os brancos que circulavam pelo rio em busca de escravizar mão de obra.
Mas, depois, lista uma série de problemas relacionados à imposição de um modo de vida: perda dos idiomas originais, enfraquecimento das dinâmicas sociais tradicionais, migração para a cidade e deslocamento forçado, e proibição dos modos de vida. "A palavra índio para muitos de São Gabriel e Santa Isabel é pejorativa (...) Essa mentalidade errada do povo é devido à pregação dos educadores, que nunca lhes disseram a verdade do sentido da palavra índio. Portanto, os missionários praticaram exatamente o etnocídio e ainda continuam errando porque com medo de serem índios o pessoal está perdendo a cultura."
A carta relata a conversa com um padre que disse que os indígenas viviam em "estado de orgia" e que os salesianos estavam contribuindo para a unificação e o progresso do povo brasileiro.
Uma narrativa produzida por um dos primeiros presidentes da Foirn, Bráz de Oliveira França, ajuda a dar uma dimensão do choque entre os povos do rio Negro e o mundo dos brancos. Ele lembra que o processo de genocídio teve início logo nas primeiras décadas da colonização e persistiu durante séculos, assumindo diferentes faces. Nas primeiras décadas do século 20, era "comum" ter indígenas escravizados para trabalhos domésticos e para remar por meses até Belém do Pará, em viagens nas quais muitos morriam.
"A grande conquista do reconhecimento dos mais de 10 milhões de hectares de terras demarcadas no rio Negro resultou de uma luta que foi consequência desse passado. Mesmo assim, se alguns dos nossos antepassados nos vissem no estado em que estamos e lhe perguntássemos por que eles há 500 anos viviam livres e tranquilos, certamente nos responderiam: 'Nós não éramos índios!'"
Carla Dias, antropóloga vinculada ao Instituto Socioambiental (ISA), atua na região há vinte anos. Foi ela quem me sugeriu ler o texto de Bráz França. Ela chama a atenção para a maneira como os povos do rio Negro conseguiram atravessar essa série de ciclos de opressão. "Eles resistiram, e resistiram sem dar o troco violento. Não foi com guerra. Foi aprendendo a navegar nesses novos referenciais. Eu digo que isso tem a ver com o sistema agrícola, por conta da diversidade, sobretudo a diversidade da maniva. É impressionante ver o quanto as agricultoras fazem questão de plantar de forma diferente, de pegar uma muda, uma maniva de outra pessoa. Esse espírito de experimentação é muito vivo e isso produz muita diversidade. Se eles não tivessem conseguido navegar dessa forma, ou eles teriam sido exterminados, do ponto de vista físico mesmo, porque estavam em condições desiguais de poder, ou eles teriam sido apagados do ponto de vista sociocultural."
O ISA foi uma organização fundamental para o reconhecimento do sistema agrícola do rio Negro como um bem cultural. Isso se deu em 2010, de forma inédita. Depois disso, também com a atuação do ISA, o sistema agrícola do Vale do Ribeira, em São Paulo, obteve esse reconhecimento.
A intenção com o processo no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, era criar uma espécie de salvaguarda para os modos de produção do rio Negro. "Um efeito positivo desse processo foi a autoestima do povo. Especialmente das agricultoras saberem que a vida cotidiana delas, o fazer roça, é um patrimônio brasileiro", conta Carla Dias.
Havia uma expectativa de que esse reconhecimento pudesse criar uma melhor articulação entre as várias políticas públicas, garantindo uma atuação coesa do Estado na região do rio Negro. Isso não se deu. Mas, somado a outros fatores, os povos indígenas criaram políticas de gestão dos vários territórios e uma política unificada para eles - e para a qual vale chamar a atenção.
O futuro que o plano de gestão territorial desenha não é a assimilação: "Hoje, grande parte das comunidades e famílias indígenas do rio Negro querem estar conectadas, querem ter acesso à energia e novas tecnologias, querem escola de qualidade (e diferenciada) para os seus filhos, querem que os jovens tenham acesso às universidades, querem assistência em saúde (respeitosa e intercultural), oportunidades para a geração de renda; mas tudo isso sem precisar sair de seus territórios ou explorá-lo de forma predatória."
Preocupação muito grande
Minha avó fazia massa fresca todos os dias. Minha mãe, todos os domingos. Eu, meia dúzia de vezes ao ano. Esse é um caso em que a indústria de alimentos oferece bons produtos a um preço acessível, então, guardo minha energia para outras batalhas. Afinal, fazer massa demanda tempo e vontade.
Essa experiência familiar me traz uma sensação agridoce - com uma ligeira vantagem para o lado agri da força. É evidente que existe uma erosão daquilo que seria a nossa cultura. E essa erosão não é meramente uma questão ufanista, de orgulho, mas de perda de qualidade do que comemos. Porém, nossos hábitos me deixaram uma base que me guia por qual trilha seguir. Eu não como miojo, por exemplo, porque não o reconheço como parte da minha cultura - nem de cultura alguma.
Se olharmos para a geração seguinte da minha família, o lado agri da força ganha de 7 a 1. Aquilo que nós fazíamos, de sentarmos à mesa para preparar e consumir a refeição, já é bem menos valorizado. Eu me lembrei dessa trajetória todos os dias enquanto conversava com as famílias no rio Negro. Existe uma transformação visível nos modos de vida. Cada vez mais comunidades recebem antenas de internet da Starlink, o que é apontado por quase todos os mais velhos como um fator de erosão da agricultura e da vida social. Como uma transformação profunda da visão de mundo.
"Isso traz uma preocupação muito grande para nós." Leôncio Neri Bosco tinha 61 anos quando conversamos. Ele mora na comunidade Acaricuara, em Santa Isabel do Rio Negro. "Porque ninguém mais sabe fazer aturá. Ninguém sabe fazer peneira, tipiti. Não sabe como, onde, quem deve fazer a roça. Então, tudo está se perdendo."
Naqueles dois dias, Leôncio fez questão de destacar inúmeras vezes o orgulho com o neto, Lélis, por ter feito uma roça de mandioca para cuidar da família. Avô, pai e neto plantam numa área contígua, onde nós fomos durante a manhã. Enquanto o avô é comunicativo, o neto é tímido, econômico nas palavras.
"Quando eu nasci, eu vivi com meus técnicos, que são meus pais, meus avós, que me ensinaram a trabalhar de forma dentro da cultura", contou Leôncio. "Eles não estiveram sentados com ninguém, eles não estudaram na faculdade. Eles tinham uma ciência, o dom do que se tratava. Então, tudo era num tempo determinado, em conformidade com o tempo."
Leôncio enxerga no neto Lélis uma esperança para seguir em frente com o trabalho na roça. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Às vezes, parece que Lélis é a agulha no palheiro de Leôncio: alguém que o avô encontrou para se agarrar à esperança de que o cultivo de mandioca siga em frente. Sucessão rural é um problema em qualquer lugar do país. Em Acaricuara não é diferente. Leôncio repassou quatro ou cinco vezes a história do neto: ele tentou arrumar emprego na cidade, mas não deu certo, e acabou voltando. Hoje, pegou gosto pela agricultura. Uma sorte, um acaso ou um destino.
Hoje tem muita facilidade
Dona Orlanda Pereira Mesquita não quer protagonizar a conversa. Mantém a cabeça de lado, deitada sobre os punhos, enquanto o marido Veridiano Barreto Maia desfia histórias. Assente e torce a boca quando ele se queixa do desprezo dos mais jovens pela vida na roça. Às vezes dá risada e murmura algumas palavras.
Não é com palavras, e sim com gestos que dona Orlanda expressa orgulho por aquilo que faz. No fim da tarde, põe sobre a mesa vinho de açaí com a farinha de mandioca feita pela família. Pouco depois vem o jantar. Primeiro, a quinhapira. Também tem o peixe que foi grelhado pelos homens. E, no fim, quando mais nada parece ter espaço, aparece o peixe moqueado, uma espécie de defumado, junto do tucupi preto. Quatro ou cinco iguarias de uma vez só.
No dia seguinte, dona Orlanda e a família colocam sobre a mesa do centro comunitário um café da manhã farto: bolos, cuscuz, mingau, farofa de peixe, farofa de peixe-boi, beiju sica (um beiju sequinho), beiju curadá. Da mandioca se pode extrair ainda o pé de moleque (uma massa), a maçoca (uma farinha bem fininha) e mais um bocado de coisas.
Quando peço para conhecer o plantio, ela fala alguma coisa e segundos depois aparece de facão na mão. Dona Orlanda pisa firme pela trilha. É difícil acompanhar o ritmo.
- Hoje tem muita facilidade com essa comida. Leite, primeiro, não tinha. Café, não tinha. De manhã tomava mingau, caribé. Esse era o nosso alimento - diz seu Veridiano.
"Facilidade" é uma palavra que dá o que pensar. Ela apareceu muitas vezes e de muitas bocas diferentes. A localidade de Acaricuara, uma comunidade a uma hora de rabeta do centro de Santa Isabel, impressiona até mesmo os moradores de outras comunidades. "Você viu? O caminho parece um labirinto" foi o que várias pessoas me disseram naquela tarde. O povoado fica depois de alguns lagos nos quais a pesca é abundante. Todos invejam a quantidade de peixes disponível aos moradores dali. Mas, se para os moradores de Acaricuara já existe facilidade em acessar uma alimentação nada saudável, isso é um sinal preocupante.
- Não tinha comida dos brancos, não - diz dona Orlanda.
Dona Orlandina expressa em gestos, e não em palavras, o orgulho por aquilo que faz em torno da roça e da mandioca. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Em São Gabriel, lá no Alto Rio Negro, essa mudança é bem mais perceptível. A cidade tem muitos mercadinhos que basicamente oferecem ultraprocessados e bebidas alcoólicas. Embora ainda seja fácil, pelas ruas, avistar legumes, frutas e peixes, é inegável que hoje os alimentos frescos concorrem com salgadinhos, biscoitos, miojos e salsichas.
Um bocado mais protegido, Acaricuara é um povoado muito simpático, bem de frente para o rio onde a turma se banha de manhã e de tarde. É habitado principalmente pelos Baré, aos quais Orlanda e Veridiano pertencem, e pelos Baniwa.
De modo geral, a distância do rio Negro para os grandes centros opera a um só tempo proteção e obstáculo. A região está a uma distância imensa do pior inimigo da alimentação brasileira: o agronegócio. Não há pastos nem campos de soja. Não há rodovias ou ferrovias criadas para transportar bois e grãos. O alto custo logístico e a disponibilidade de áreas muito mais acessíveis para desmatar e grilar ainda são um escudo para os povos indígenas daqui. Por outro lado, o preço absurdo de escoamento da produção e a lonjura em relação aos grandes centros consumidores tornam muito pequeno o rol de opções disponíveis para comercialização. Menos de 100 mil pessoas moram nos três principais municípios do rio Negro - São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos.
- Mais ou menos dos anos 2000 pra cá, as coisas mudaram muito - queixa-se seu Veridiano.
Eles dizem que, antigamente, as pessoas moravam nos sítios. A comunidade foi criada para atender a uma necessidade - a escola -, o que afetou as dinâmicas sociais existentes até então. De novo, não é uma exclusividade de Acaricuara. Os núcleos urbanos têm um poder magnético de atração das pessoas que habitam as comunidades. A escola talvez tenha sido a precursora da formação desse campo de obrigatoriedade do estabelecimento de laços externos.
A projeção da imagem do "nada" tem servido, década após década, para justificar a derrubada da Amazônia. Em antítese ao nada, a escola é apresentada como o único caminho possível para ser "alguém na vida" - portanto, os amazônidas prévios a essa instituição eram "ninguém" morando sobre um grande "nada".
Férias na roça
- Meu Deus, minha mãe sempre dizia: 'Estuda pra você não trabalhar na roça'. Nada a ver. Assim, filho de agricultor sempre será agricultor. Então, a gente não tem como fugir da roça. Enquanto os outros vão pra férias, andar por aí, passear, fazer turismo, a gente vai pra roça ajudar a mamãe, né?
Florinda Lima Orjuela nasceu em 1985 no rio Tiquié. Ela é filha de dona Rosa, que você conheceu na primeira reportagem da série. Os Tuyuka e vários outros povos já moravam ali há muito tempo quando os não indígenas decidiram traçar uma fronteira. A família dela ficou do lado colombiano, razão pela qual Florinda aprendeu o espanhol e foi educada nos internatos das missionárias de lá.
Mas os parentes foram migrando a São Gabriel da Cachoeira, até que a família de Florinda também decidiu empreender viagem. Florinda havia finalizado na Colômbia o ensino médio, mas teve de fazer o curso da Educação de Jovens e Adultos para conseguir o diploma brasileiro e entrar na faculdade, no curso de Gestão do Turismo.
- Hoje, eu sei tudo. Como eu digo sempre pra minha mãe, a gente é doutora. Só falta o certificado. A gente é doutora na agricultura, a gente sabe de tudo, né? Só falta o certificado pra gente dizer que é doutor. O meu trabalho de conclusão de curso foi sobre a associação - as famílias Tuyuka migradas a São Gabriel criaram uma associação para poder comercializar a produção de alimentos e realizar uma feira cultural, como contamos na primeira reportagem da série - Ganhei nota 10 por causa disso. Por quê? Porque eu já conhecia a cultura. Como eu sempre falo: quando a gente conhece a nossa cultura, a gente não tem necessidade de pesquisar, né?
Florinda sente que na nova geração é preciso persistir bastante e ter firmeza nos propósitos para mostrar aos jovens que aprender a agricultura é algo importante.
- Durante as férias, eu não deixo meus filhos aqui na cidade. Eu levo pra roça. Porque, de qualquer forma, minha mãe sempre falava, vocês sempre tem que aprender dos dois lados. Estudar e trabalhar na roça. Porque nem sempre a gente tem essa sorte de graduar. Se demora de achar emprego, a gente tem a roça pra sobreviver, né? Fazer sua farinha, seu beiju, vender e sustentar nossos filhos. Então, pra mim, sempre foi esses dois lados de aprendizado que eu tive.
Esses povos não acumularam conhecimento da noite para o dia. Foram séculos de trocas, tentativas e erros. Lidar com a mandioca envolve um conjunto muito refinado de técnicas: começar uma roça, saber o tempo certo de plantar, entender quando a maniva não gosta mais daquela terra, extrair da raiz o veneno para poder consumir em segurança. As dezenas de preparações feitas a partir da mandioca simbolizam uma riqueza culinária que não é uma fórmula feita aos moldes ocidentais: ela tem uma sabedoria oral, transmitida pelo exemplo de geração em geração.
- Muitas pessoas já morreram, porque eles tomam manicuera de mandioca amarela - manicuera é o caldo que se extrai do cozimento da mandioca braba e com o qual se faz, por exemplo, a maniçoba - Sem cozinhar bem, acabaram morrendo. A gente tem a manicuera que cozinha da mandioca branca. Tem que ter um tempo.
O tempo certo de fazer as coisas: foi assim que Florinda classificou a maneira do povo Tuyuka de plantar. Sem agrônomo, sem medidas formais. Mas, ainda assim, com problemas que vão surgindo e se agravando.
- A gente sempre teve o tempo certo de fazer as coisas. Só que com essas mudanças climáticas que hoje em dia a gente tem, sempre fica um pouco difícil. A gente faz uma roça no tempo errado, às vezes a gente nem consegue queimar.
As mudanças climáticas e o avanço da quentura e da seca constituem uma ameaça para as roças e os modos de vida no Rio Negro. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Os tempos pela frente não são para qualquer um. A Amazônia cruzou a pior seca de que se tem notícia. Todo mundo reclama da quentura e mudança climática virou parte do vocabulário. "Na época que eu comecei, a gente via as coisas maravilhosas", contou seu Leôncio, em Araricuara. "Tudo que plantava na roça, dava. Mandioca, abacaxi, cará, batata, banana, todo tipo que era plantado. Carregava os cachos de banana grande, né? Ela está diminuindo, como eu estou dizendo. Planta abacaxi, ele vai dar uma frutinha."
Fui embora do rio Negro com a mesma sensação amarga de outras viagens: a noção de que existe algo valioso, mas que está com os dias contados. Porém, o tempo passou. E comecei a pensar na imensa diversidade construída socialmente por essa vastidão. Na resistência aos patrões que os exploraram. Aos missionários. Esses povos atravessaram tudo sem perder os idiomas. Sem perder os modos de plantar e de viver. Quem sabe, mais uma vez, ofereçam os caminhos que a gente anda precisando tanto pra poder resistir e existir.
* O deslocamento pelo rio Negro foi feito em uma embarcação cedida pelo ISA. A equipe de comunicação do ISA acompanhou a viagem. Os custos com combustível, pessoal e alimentação foram pagos pelo Joio.
https://ojoioeotrigo.com.br/2025/09/quem-ameaca-a-mandioca/
16.09.25 | Por João Peres , de São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro (AM)*
Na região que é guardiã da mandioca braba, influência religiosa, pressão do Estado, chegada dos ultraprocessados e dificuldade de permanência dos jovens ameaçam o cultivo .
Quando os adultos voltaram da roça, já no fim de tarde, não encontraram criança alguma na aldeia. Nem grandes, nem pequenas: criança alguma. Desesperados, dividiram-se para buscá-las no mato e no rio. Chamaram, chamaram, chamaram mais forte, mais agudo, mais desesperado, e nada: criança alguma.
Toda vida, geração após geração, os adultos saíam cedo para a roça e deixavam as crianças mais velhas a cargo das mais novas. Não havia escola, não havia gente branca, não havia riscos, desde que as crianças respeitassem os limites da aldeia. Por isso, era estranho e inexplicável o que estava acontecendo.
Naquela manhã, e os adultos não sabiam disso, um pássaro gigante e barulhento havia sobrevoado a aldeia. Poderia ser um espírito zangado. Uma criatura monstruosa. Um predador desconhecido. Apavoradas, as crianças fizeram correria para o meio do mato, onde estariam protegidas da terrível criatura.
- Era um helicóptero. Mas a gente nunca tinha visto. Depois, quando a gente contou para os adultos, eles explicaram que aquilo era coisa dos brancos - conta Almerinda Ramos de Lima, hoje com 52 anos. Essa cena aconteceu na virada dos anos 1970 para os 80 em Iauaretê, a terra central do povo Tariano, na divisa entre Brasil e Colômbia.
Os Tariano também nunca tinham visto dinheiro. E nem por isso eram pobres. Pelo contrário, nada lhes faltava, para criança alguma. As 22 famílias compartilhavam tudo o que tinham, e cozinhavam e trabalhavam em comunidade.
- Eu nunca tinha visto Manaus. Nunca tinha saído do rio Uaupés. Nunca tinha falado português. Eu tinha 15 anos e não falava nada de português - ela diz, alongando o nada para deixar claro de quanto nada estamos falando - E eu saí um tempo com a minha tia para Manaus, direto eu fui de Iauaretê para lá. Eu nem sabia o que era. Primeira vez que eu saí. Sabe, é o mesmo que levar você e deixar lá no mato.
Almerinda tem cabelos levemente ondulados e até a altura do ombro. No dia da entrevista, vestia uma camiseta preta do Acampamento Terra Livre, assembleia dos povos indígenas realizada em abril em Brasília. O português tardio não deixou lembranças: ela fala com uma fluidez perfeita, sem perdas de tradução, e um raciocínio afiado, crítico, cunhado ao longo de décadas no movimento indígena.
Entre 2013 e 2016, ela presidiu a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), uma organização responsável por cobrir uma área maior do que vários países europeus. Foi, até hoje, a única mulher a alcançar o feito.
- Eu era mãe, agricultora, artesã. Então, muitos não acreditavam que eu ia finalizar meu mandato. Quanto mais diziam isso, mais eu me motivava. O primeiro desafio é ser mulher. O segundo é que eu não tinha conhecimento administrativo. Então, precisava trocar o terçado (facão) pelo computador? Eu troquei.
E depois destrocou. Hoje, ela e a família mantêm uma dezena de roças. Áreas de cultivo de mandioca, principalmente, e de várias frutas. A distância para o núcleo urbano de São Gabriel da Cachoeira e a localização, no Alto Rio Negro, no caminho para a fronteira com a Colômbia, dá materialidade àquilo que aparece nos levantamentos feitos por pesquisadores: é nessa região mais ao noroeste, mais distante, que se encontra uma grande diversidade de cultivos. Apenas a família de Almerinda calcula manter 50 variedades de maniva, que é a rama utilizada para o plantio da mandioca.
Esse sistema agrícola tradicional, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é vivo e pulsante - leia a primeira reportagem da série. Não é preciso vasculhar o território em busca de roças altamente diversas, bem cuidadas e produtivas. Aquilo que se oferece de alimentos frescos na cidade vem dessas roças, que podem estar a minutos ou horas de distância.
Distante das áreas de exploração do agronegócio, o Alto Rio Negro ainda não lida com as ameaças trazidas por desmatamento e grilagem, mas nem tudo está bem. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Mas, ao mesmo tempo, é inegável que pairam ameaças. A valorização dos modos de vida não indígenas, intensificada com a chegada da internet e das redes sociais; a dificuldade de engajar os jovens em uma atividade desvalorizada socialmente; a relação com os governos e com a área urbana, tudo isso opera uma desestruturação das famílias e das comunidades.
No ano passado, o Brasil registrou pela primeira vez um caso de vassoura-de-bruxa em pés de mandioca. A doença fúngica foi responsável por dizimar a cultura do cacau na Bahia, com um impacto que se alastrou por décadas. No caso da mandioca, o diagnóstico foi feito em amostras coletadas em 2023 em terras indígenas no Oiapoque, no Amapá.
Em agosto de 2025, apenas duas das 68 variedades registradas no município haviam resistido à doença. Alguns casos já foram documentados no Pará. Em tese, a grande variabilidade genética da mandioca é uma proteção, mas só o tempo dirá qual o tamanho do problema.
- Vejo que hoje a gente entra nesse capitalismo. O capitalismo domina, entendeu? Então, hoje não há mais partilha. Você chega na comunidade, as pessoas querem vender. 'Você tem isso?' 'Tem, mas é tanto.' Que antes não era, entendeu?
- E quando foi que o capitalismo chegou?
- Com o Bolsa Família. Tudo foi virando mercado. Qualquer coisa já é dinheiro. Os que estão lá em Iauaretê ainda mantêm fora esse capitalismo. Alguns. Mas alguns, não. Isso me preocupa bastante.
O Bolsa Família é uma discussão e tanto entre as comunidades do rio Negro. Ninguém diz que o programa não deveria existir, mas que ele deveria ter sido pensado em respeito às especificidades das várias culturas e das necessidades de cada comunidade. A obrigação de ir à cidade sacar o benefício altera as dinâmicas sociais entre os povos indígenas de São Gabriel da Cachoeira. Às dez da manhã, ao meio-dia, às duas da tarde, a qualquer hora o banco tem uma fila imensa de pessoas. Além disso, para ir das comunidades ao centro é necessário gastar muito dinheiro com o combustível das rabetas - facilmente uma viagem pode custar mais de R$ 2.000 e levar um dia inteiro.
Para várias pessoas, o Bolsa Família foi o primeiro contato com o dinheiro. Sem uma discussão sobre o papel desse recurso, algumas pessoas gastam tudo de uma vez, ou fazem dívidas, ou acabam entrando em ciclos de consumo de produtos nocivos. A hierarquização social da "comida de branco" como algo superior à dieta tradicional introduz nas comunidades vários ultraprocessados e amplia o consumo de açúcar, óleo de soja e sal.
- Os mais jovens dizem que isso é passado. Que é história - continua Almerinda - Mas é melhor você ter a sua história do que não ter. Porque, se você não souber contar quem você é e o que você sabe, é o mesmo que você não ter sombra.
Nós não éramos índios
Quando a rabeta se aproxima de Santa Isabel do Rio Negro, tudo na paisagem lembra um povoado ribeirinho da Amazônia: o casario baixo, muitas casas de madeira, os portos para embarcações e o posto de gasolina fluvial, a floresta que circunda e abraça. Tudo, menos duas enormes construções no alto do morro, totalmente destoantes: são as casas que serviram às missões dos salesianos.
Os salesianos chegaram ao rio Negro na década de 1910. Os prédios de Santa Isabel foram construídos mais tarde, nos anos 1940. De um lado, fica o edifício no qual moravam as garotas indígenas. De outro, os rapazes.
Em São Gabriel da Cachoeira, a presença das missões é igualmente visível, também em construções grandes à beira-rio. Indo mais longe, a influência das missões molda a geografia dessa imensa região: povoados foram fundados ou totalmente reestruturados de acordo com a prioridade religiosa de católicos e protestantes.
É difícil encontrar quem seja taxativo quanto aos efeitos das missões. Os indígenas mais velhos elencam prós e contras. Os não indígenas pisam em ovos. Uma carta no acervo do Instituto Socioambiental (ISA), datada de abril de 1981, é firmada por uma pessoa chamada Alvaro Sampaio, que se depreende ser um indígena. Ele começa elencando que é fato que os missionários intimidaram os brancos que circulavam pelo rio em busca de escravizar mão de obra.
Mas, depois, lista uma série de problemas relacionados à imposição de um modo de vida: perda dos idiomas originais, enfraquecimento das dinâmicas sociais tradicionais, migração para a cidade e deslocamento forçado, e proibição dos modos de vida. "A palavra índio para muitos de São Gabriel e Santa Isabel é pejorativa (...) Essa mentalidade errada do povo é devido à pregação dos educadores, que nunca lhes disseram a verdade do sentido da palavra índio. Portanto, os missionários praticaram exatamente o etnocídio e ainda continuam errando porque com medo de serem índios o pessoal está perdendo a cultura."
A carta relata a conversa com um padre que disse que os indígenas viviam em "estado de orgia" e que os salesianos estavam contribuindo para a unificação e o progresso do povo brasileiro.
Uma narrativa produzida por um dos primeiros presidentes da Foirn, Bráz de Oliveira França, ajuda a dar uma dimensão do choque entre os povos do rio Negro e o mundo dos brancos. Ele lembra que o processo de genocídio teve início logo nas primeiras décadas da colonização e persistiu durante séculos, assumindo diferentes faces. Nas primeiras décadas do século 20, era "comum" ter indígenas escravizados para trabalhos domésticos e para remar por meses até Belém do Pará, em viagens nas quais muitos morriam.
"A grande conquista do reconhecimento dos mais de 10 milhões de hectares de terras demarcadas no rio Negro resultou de uma luta que foi consequência desse passado. Mesmo assim, se alguns dos nossos antepassados nos vissem no estado em que estamos e lhe perguntássemos por que eles há 500 anos viviam livres e tranquilos, certamente nos responderiam: 'Nós não éramos índios!'"
Carla Dias, antropóloga vinculada ao Instituto Socioambiental (ISA), atua na região há vinte anos. Foi ela quem me sugeriu ler o texto de Bráz França. Ela chama a atenção para a maneira como os povos do rio Negro conseguiram atravessar essa série de ciclos de opressão. "Eles resistiram, e resistiram sem dar o troco violento. Não foi com guerra. Foi aprendendo a navegar nesses novos referenciais. Eu digo que isso tem a ver com o sistema agrícola, por conta da diversidade, sobretudo a diversidade da maniva. É impressionante ver o quanto as agricultoras fazem questão de plantar de forma diferente, de pegar uma muda, uma maniva de outra pessoa. Esse espírito de experimentação é muito vivo e isso produz muita diversidade. Se eles não tivessem conseguido navegar dessa forma, ou eles teriam sido exterminados, do ponto de vista físico mesmo, porque estavam em condições desiguais de poder, ou eles teriam sido apagados do ponto de vista sociocultural."
O ISA foi uma organização fundamental para o reconhecimento do sistema agrícola do rio Negro como um bem cultural. Isso se deu em 2010, de forma inédita. Depois disso, também com a atuação do ISA, o sistema agrícola do Vale do Ribeira, em São Paulo, obteve esse reconhecimento.
A intenção com o processo no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, era criar uma espécie de salvaguarda para os modos de produção do rio Negro. "Um efeito positivo desse processo foi a autoestima do povo. Especialmente das agricultoras saberem que a vida cotidiana delas, o fazer roça, é um patrimônio brasileiro", conta Carla Dias.
Havia uma expectativa de que esse reconhecimento pudesse criar uma melhor articulação entre as várias políticas públicas, garantindo uma atuação coesa do Estado na região do rio Negro. Isso não se deu. Mas, somado a outros fatores, os povos indígenas criaram políticas de gestão dos vários territórios e uma política unificada para eles - e para a qual vale chamar a atenção.
O futuro que o plano de gestão territorial desenha não é a assimilação: "Hoje, grande parte das comunidades e famílias indígenas do rio Negro querem estar conectadas, querem ter acesso à energia e novas tecnologias, querem escola de qualidade (e diferenciada) para os seus filhos, querem que os jovens tenham acesso às universidades, querem assistência em saúde (respeitosa e intercultural), oportunidades para a geração de renda; mas tudo isso sem precisar sair de seus territórios ou explorá-lo de forma predatória."
Preocupação muito grande
Minha avó fazia massa fresca todos os dias. Minha mãe, todos os domingos. Eu, meia dúzia de vezes ao ano. Esse é um caso em que a indústria de alimentos oferece bons produtos a um preço acessível, então, guardo minha energia para outras batalhas. Afinal, fazer massa demanda tempo e vontade.
Essa experiência familiar me traz uma sensação agridoce - com uma ligeira vantagem para o lado agri da força. É evidente que existe uma erosão daquilo que seria a nossa cultura. E essa erosão não é meramente uma questão ufanista, de orgulho, mas de perda de qualidade do que comemos. Porém, nossos hábitos me deixaram uma base que me guia por qual trilha seguir. Eu não como miojo, por exemplo, porque não o reconheço como parte da minha cultura - nem de cultura alguma.
Se olharmos para a geração seguinte da minha família, o lado agri da força ganha de 7 a 1. Aquilo que nós fazíamos, de sentarmos à mesa para preparar e consumir a refeição, já é bem menos valorizado. Eu me lembrei dessa trajetória todos os dias enquanto conversava com as famílias no rio Negro. Existe uma transformação visível nos modos de vida. Cada vez mais comunidades recebem antenas de internet da Starlink, o que é apontado por quase todos os mais velhos como um fator de erosão da agricultura e da vida social. Como uma transformação profunda da visão de mundo.
"Isso traz uma preocupação muito grande para nós." Leôncio Neri Bosco tinha 61 anos quando conversamos. Ele mora na comunidade Acaricuara, em Santa Isabel do Rio Negro. "Porque ninguém mais sabe fazer aturá. Ninguém sabe fazer peneira, tipiti. Não sabe como, onde, quem deve fazer a roça. Então, tudo está se perdendo."
Naqueles dois dias, Leôncio fez questão de destacar inúmeras vezes o orgulho com o neto, Lélis, por ter feito uma roça de mandioca para cuidar da família. Avô, pai e neto plantam numa área contígua, onde nós fomos durante a manhã. Enquanto o avô é comunicativo, o neto é tímido, econômico nas palavras.
"Quando eu nasci, eu vivi com meus técnicos, que são meus pais, meus avós, que me ensinaram a trabalhar de forma dentro da cultura", contou Leôncio. "Eles não estiveram sentados com ninguém, eles não estudaram na faculdade. Eles tinham uma ciência, o dom do que se tratava. Então, tudo era num tempo determinado, em conformidade com o tempo."
Leôncio enxerga no neto Lélis uma esperança para seguir em frente com o trabalho na roça. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Às vezes, parece que Lélis é a agulha no palheiro de Leôncio: alguém que o avô encontrou para se agarrar à esperança de que o cultivo de mandioca siga em frente. Sucessão rural é um problema em qualquer lugar do país. Em Acaricuara não é diferente. Leôncio repassou quatro ou cinco vezes a história do neto: ele tentou arrumar emprego na cidade, mas não deu certo, e acabou voltando. Hoje, pegou gosto pela agricultura. Uma sorte, um acaso ou um destino.
Hoje tem muita facilidade
Dona Orlanda Pereira Mesquita não quer protagonizar a conversa. Mantém a cabeça de lado, deitada sobre os punhos, enquanto o marido Veridiano Barreto Maia desfia histórias. Assente e torce a boca quando ele se queixa do desprezo dos mais jovens pela vida na roça. Às vezes dá risada e murmura algumas palavras.
Não é com palavras, e sim com gestos que dona Orlanda expressa orgulho por aquilo que faz. No fim da tarde, põe sobre a mesa vinho de açaí com a farinha de mandioca feita pela família. Pouco depois vem o jantar. Primeiro, a quinhapira. Também tem o peixe que foi grelhado pelos homens. E, no fim, quando mais nada parece ter espaço, aparece o peixe moqueado, uma espécie de defumado, junto do tucupi preto. Quatro ou cinco iguarias de uma vez só.
No dia seguinte, dona Orlanda e a família colocam sobre a mesa do centro comunitário um café da manhã farto: bolos, cuscuz, mingau, farofa de peixe, farofa de peixe-boi, beiju sica (um beiju sequinho), beiju curadá. Da mandioca se pode extrair ainda o pé de moleque (uma massa), a maçoca (uma farinha bem fininha) e mais um bocado de coisas.
Quando peço para conhecer o plantio, ela fala alguma coisa e segundos depois aparece de facão na mão. Dona Orlanda pisa firme pela trilha. É difícil acompanhar o ritmo.
- Hoje tem muita facilidade com essa comida. Leite, primeiro, não tinha. Café, não tinha. De manhã tomava mingau, caribé. Esse era o nosso alimento - diz seu Veridiano.
"Facilidade" é uma palavra que dá o que pensar. Ela apareceu muitas vezes e de muitas bocas diferentes. A localidade de Acaricuara, uma comunidade a uma hora de rabeta do centro de Santa Isabel, impressiona até mesmo os moradores de outras comunidades. "Você viu? O caminho parece um labirinto" foi o que várias pessoas me disseram naquela tarde. O povoado fica depois de alguns lagos nos quais a pesca é abundante. Todos invejam a quantidade de peixes disponível aos moradores dali. Mas, se para os moradores de Acaricuara já existe facilidade em acessar uma alimentação nada saudável, isso é um sinal preocupante.
- Não tinha comida dos brancos, não - diz dona Orlanda.
Dona Orlandina expressa em gestos, e não em palavras, o orgulho por aquilo que faz em torno da roça e da mandioca. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Em São Gabriel, lá no Alto Rio Negro, essa mudança é bem mais perceptível. A cidade tem muitos mercadinhos que basicamente oferecem ultraprocessados e bebidas alcoólicas. Embora ainda seja fácil, pelas ruas, avistar legumes, frutas e peixes, é inegável que hoje os alimentos frescos concorrem com salgadinhos, biscoitos, miojos e salsichas.
Um bocado mais protegido, Acaricuara é um povoado muito simpático, bem de frente para o rio onde a turma se banha de manhã e de tarde. É habitado principalmente pelos Baré, aos quais Orlanda e Veridiano pertencem, e pelos Baniwa.
De modo geral, a distância do rio Negro para os grandes centros opera a um só tempo proteção e obstáculo. A região está a uma distância imensa do pior inimigo da alimentação brasileira: o agronegócio. Não há pastos nem campos de soja. Não há rodovias ou ferrovias criadas para transportar bois e grãos. O alto custo logístico e a disponibilidade de áreas muito mais acessíveis para desmatar e grilar ainda são um escudo para os povos indígenas daqui. Por outro lado, o preço absurdo de escoamento da produção e a lonjura em relação aos grandes centros consumidores tornam muito pequeno o rol de opções disponíveis para comercialização. Menos de 100 mil pessoas moram nos três principais municípios do rio Negro - São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos.
- Mais ou menos dos anos 2000 pra cá, as coisas mudaram muito - queixa-se seu Veridiano.
Eles dizem que, antigamente, as pessoas moravam nos sítios. A comunidade foi criada para atender a uma necessidade - a escola -, o que afetou as dinâmicas sociais existentes até então. De novo, não é uma exclusividade de Acaricuara. Os núcleos urbanos têm um poder magnético de atração das pessoas que habitam as comunidades. A escola talvez tenha sido a precursora da formação desse campo de obrigatoriedade do estabelecimento de laços externos.
A projeção da imagem do "nada" tem servido, década após década, para justificar a derrubada da Amazônia. Em antítese ao nada, a escola é apresentada como o único caminho possível para ser "alguém na vida" - portanto, os amazônidas prévios a essa instituição eram "ninguém" morando sobre um grande "nada".
Férias na roça
- Meu Deus, minha mãe sempre dizia: 'Estuda pra você não trabalhar na roça'. Nada a ver. Assim, filho de agricultor sempre será agricultor. Então, a gente não tem como fugir da roça. Enquanto os outros vão pra férias, andar por aí, passear, fazer turismo, a gente vai pra roça ajudar a mamãe, né?
Florinda Lima Orjuela nasceu em 1985 no rio Tiquié. Ela é filha de dona Rosa, que você conheceu na primeira reportagem da série. Os Tuyuka e vários outros povos já moravam ali há muito tempo quando os não indígenas decidiram traçar uma fronteira. A família dela ficou do lado colombiano, razão pela qual Florinda aprendeu o espanhol e foi educada nos internatos das missionárias de lá.
Mas os parentes foram migrando a São Gabriel da Cachoeira, até que a família de Florinda também decidiu empreender viagem. Florinda havia finalizado na Colômbia o ensino médio, mas teve de fazer o curso da Educação de Jovens e Adultos para conseguir o diploma brasileiro e entrar na faculdade, no curso de Gestão do Turismo.
- Hoje, eu sei tudo. Como eu digo sempre pra minha mãe, a gente é doutora. Só falta o certificado. A gente é doutora na agricultura, a gente sabe de tudo, né? Só falta o certificado pra gente dizer que é doutor. O meu trabalho de conclusão de curso foi sobre a associação - as famílias Tuyuka migradas a São Gabriel criaram uma associação para poder comercializar a produção de alimentos e realizar uma feira cultural, como contamos na primeira reportagem da série - Ganhei nota 10 por causa disso. Por quê? Porque eu já conhecia a cultura. Como eu sempre falo: quando a gente conhece a nossa cultura, a gente não tem necessidade de pesquisar, né?
Florinda sente que na nova geração é preciso persistir bastante e ter firmeza nos propósitos para mostrar aos jovens que aprender a agricultura é algo importante.
- Durante as férias, eu não deixo meus filhos aqui na cidade. Eu levo pra roça. Porque, de qualquer forma, minha mãe sempre falava, vocês sempre tem que aprender dos dois lados. Estudar e trabalhar na roça. Porque nem sempre a gente tem essa sorte de graduar. Se demora de achar emprego, a gente tem a roça pra sobreviver, né? Fazer sua farinha, seu beiju, vender e sustentar nossos filhos. Então, pra mim, sempre foi esses dois lados de aprendizado que eu tive.
Esses povos não acumularam conhecimento da noite para o dia. Foram séculos de trocas, tentativas e erros. Lidar com a mandioca envolve um conjunto muito refinado de técnicas: começar uma roça, saber o tempo certo de plantar, entender quando a maniva não gosta mais daquela terra, extrair da raiz o veneno para poder consumir em segurança. As dezenas de preparações feitas a partir da mandioca simbolizam uma riqueza culinária que não é uma fórmula feita aos moldes ocidentais: ela tem uma sabedoria oral, transmitida pelo exemplo de geração em geração.
- Muitas pessoas já morreram, porque eles tomam manicuera de mandioca amarela - manicuera é o caldo que se extrai do cozimento da mandioca braba e com o qual se faz, por exemplo, a maniçoba - Sem cozinhar bem, acabaram morrendo. A gente tem a manicuera que cozinha da mandioca branca. Tem que ter um tempo.
O tempo certo de fazer as coisas: foi assim que Florinda classificou a maneira do povo Tuyuka de plantar. Sem agrônomo, sem medidas formais. Mas, ainda assim, com problemas que vão surgindo e se agravando.
- A gente sempre teve o tempo certo de fazer as coisas. Só que com essas mudanças climáticas que hoje em dia a gente tem, sempre fica um pouco difícil. A gente faz uma roça no tempo errado, às vezes a gente nem consegue queimar.
As mudanças climáticas e o avanço da quentura e da seca constituem uma ameaça para as roças e os modos de vida no Rio Negro. Foto: Paulo Castro/Rede Wayuri
Os tempos pela frente não são para qualquer um. A Amazônia cruzou a pior seca de que se tem notícia. Todo mundo reclama da quentura e mudança climática virou parte do vocabulário. "Na época que eu comecei, a gente via as coisas maravilhosas", contou seu Leôncio, em Araricuara. "Tudo que plantava na roça, dava. Mandioca, abacaxi, cará, batata, banana, todo tipo que era plantado. Carregava os cachos de banana grande, né? Ela está diminuindo, como eu estou dizendo. Planta abacaxi, ele vai dar uma frutinha."
Fui embora do rio Negro com a mesma sensação amarga de outras viagens: a noção de que existe algo valioso, mas que está com os dias contados. Porém, o tempo passou. E comecei a pensar na imensa diversidade construída socialmente por essa vastidão. Na resistência aos patrões que os exploraram. Aos missionários. Esses povos atravessaram tudo sem perder os idiomas. Sem perder os modos de plantar e de viver. Quem sabe, mais uma vez, ofereçam os caminhos que a gente anda precisando tanto pra poder resistir e existir.
* O deslocamento pelo rio Negro foi feito em uma embarcação cedida pelo ISA. A equipe de comunicação do ISA acompanhou a viagem. Os custos com combustível, pessoal e alimentação foram pagos pelo Joio.
https://ojoioeotrigo.com.br/2025/09/quem-ameaca-a-mandioca/
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