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Maranhão lidera presença quilombola na Amazônia, mas titulação continua travada
04/11/2025
Autor: Manuela Azevedo
Fonte: InfoAmazonia - https://infoamazonia.org/2025/11/02/maranhao-lidera-presenca-quilombola-na-amazonia-m
Maranhão lidera presença quilombola na Amazônia, mas titulação continua travada
Por Manuela Azevedo
Agência Tambor
2 novembro 2025 at 8:00 (Atualizado em 4 novembro 2025 at 15:32)
O estado tem 405 territórios quilombolas, maior quantidade da região. É, também, o segundo do país em casos de violência no campo, atrás apenas do Pará. Território de Alcântara, símbolo da resistência quilombola, segue sem título mesmo após julgamento histórico internacional.
No Maranhão, a luta dos territórios quilombolas e quilombos pela titulação vai além da posse da terra. É uma guerra pela sobrevivência - do meio ambiente, da cultura, da identidade e da própria vida de seu povo. O estado concentra a maior presença de quilombolas na Amazônia Legal (64,1% %), com 405 territórios quilombolas. No entanto, apenas 12,6% deles, ou seja, 51 territórios, têm título definitivo.
É o que mostra o estudo do Instituto Socioambiental (ISA) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). O levantamento integrou bases de dados sobre territórios quilombolas, áreas já delimitadas, e quilombos, comunidades quilombolas representadas por pontos no mapa da Amazônia Legal. Esta é a quinta reportagem da série Amazônia Quilombola, uma produção da Rede Cidadã InfoAmazonia em parceria com a Agência Tambor e InfoAmazonia.
Grande parte destas regiões têm sua trajetória marcada pela violência imposta pelo agronegócio, que avança sobre os territórios em um rastro de fogo, fumaça, tratores, armas e venenos. No entanto, a luta dos povos quilombolas não se restringe a estes ataques. Há 45 anos, durante a ditadura militar, 312 famílias quilombolas foram expulsas do território quilombola de Alcântara para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), espaço operado pela Força Aérea Brasileira (FAB) para lançar foguetes, satélites e experimentos científicos, em um dos episódios mais graves de violação de direitos humanos no país.
O caso, marcado por remoções forçadas, resultou décadas depois, em março de 2025, na condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), um marco histórico de resistência e reparação para o movimento quilombola. Apesar da decisão favorável, a luta ainda não terminou. O território segue sem o título definitivo.
Centro de Lançamento de Alcântara: um crime sentenciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação aos princípios legais dos territórios quilombolas. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil
Danilo Serejo, quilombola e coordenador do grupo de assessoria política do território, hoje formado em Direito e mestre em Ciências Políticas, nasceu e cresceu dentro desse conflito. Ao longo dos seus 41 anos, viu a comunidade e sua família viverem sem perspectiva. O quilombo em que ele vive não chegou a ser remanejado, mas está dentro da área considerada de expansão da base. "Viver sob angústia, ameaça e insegurança é viver sem futuro", descreve.
Viver sob angústia, ameaça e insegurança é viver sem futuro.
Danilo Serejo, quilombola e coordenador do grupo de assessoria política do território quilombola Alcântara
Violência fundiária: a regra do Maranhão
Além das dificuldades na regularização fundiária, o Maranhão enfrenta um cenário particular: é o estado com mais territórios quilombolas do país e o segundo em casos de violência no campo, atrás apenas do Pará. De acordo com o Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro (1985-2023), o estado registrou 4.593 confrontos rurais, sendo 2.466 envolvendo quilombos desde 2000, quando a categoria passou a ser específica.
Na avaliação de Rafael Silva, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a falta de titulação aumenta a vulnerabilidade das comunidades. O Maranhão concentra 22 dos 52 assassinatos de quilombolas no país entre 2005 e 2024, o equivalente a 42,3% do total. "Nenhum desses casos ocorreu em território titulado", ressalta.
Outra particularidade é a Lei no 12.169/2023, a chamada Lei da Grilagem, sancionada em dezembro de 2023 pelo governador Carlos Brandão (PSB). A norma ampliou o limite de regularização de 200 para 2.500 hectares e criou restrições ao reconhecimento de territórios tradicionais.
Organizações sociais e comunidades quilombolas afirmam que a lei favorece a legalização de áreas griladas. "O problema da lei não é, necessariamente, a inconstitucionalidade. O problema é exatamente o que ela permite enquanto uma lei constitucional de apropriação de terra pública pelo mercado, porque esses limites foram ampliados", pontua Rafael.
Tambor de Crioula: uma manifestação cultural que expressa o sincretismo religioso e está presente nos quilombos desde o período da escravidão. Foto: Lucas Ferreira/Festival Luz Negra
Além disso, o estudo aponta outra particularidade: o estado, por meio do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), apresenta "divergências em termos de número de territórios, status de regularização e na delimitação cartográfica de suas áreas". O levantamento destaca que as inconsistências podem comprometer o acesso aos direitos dos povos tradicionais.
O advogado alerta para a necessidade de monitoramento constante sobre como o Iterma tem conduzido os processos administrativos após a mudança legal: "Esse levantamento até agora ninguém acompanhou de perto", revela.
"Estamos dentro de um sistema econômico-capitalista que entende a terra como mercadoria, e os próprios processos de mercantilização da natureza são parte dessa estrutura fundiária do país desde o início do processo de colonização", pontua o advogado.
Questionado, o Iterma afirmou que "já promoveu a titulação de dezenas de comunidades e continua ampliando essas ações". O órgão reconhece que a "titulação definitiva assegura segurança jurídica e protege contra grilagem, desmatamento e conflitos fundiários". Os números oficiais não foram informados.
O peso histórico da exclusão da terra
Mais de 40 anos de resistência separam o território quilombola de Alcântara da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos - uma história que começa no regime militar e chega a 2025 com o reconhecimento da violação de direitos de 171 quilombos. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi acionado em 2001. Na época, Danilo tinha 17 anos. O processo teve audiências em 2008 e 2019, e chegou à Corte em 2022, sendo julgado até a sentença emitida neste ano.
A decisão condenou o Brasil por violações de direitos humanos, especialmente ao direito à propriedade coletiva, reconhecendo a responsabilidade do Estado pela desapropriação e remoção forçada de quilombolas para a construção do Centro de Lançamento de Alcântara. A Corte determinou que o país garanta a titulação coletiva de mais de 78 mil hectares e proibiu a ampliação do CLA. Também foi determinado o pagamento de uma multa de US$ 4 bilhões pela União.
Danilo relembra que as desigualdades são históricas e têm raízes profundas na formação do país. Apesar da Lei Áurea, de 1888, ter decretado a abolição formal da escravidão, apenas a Constituição Federal de 1988 reconheceu os quilombolas como sujeitos de direito, garantindo às comunidades a titulação de suas terras.
"Não tem como dizer que a dificuldade de titularização é um entrave burocrático. O que há é um legado de desamparo e invisibilidade. Uma falta de vontade diante de uma herança de racismo institucional e estrutural. Neste cenário, o futuro que ainda nos espera é o passado colonial", analisa Danilo.
Não tem como dizer que a dificuldade de titularização é um entrave burocrático. O que há é um legado de desamparo e invisibilidade. Uma falta de vontade diante de uma herança de racismo institucional e estrutural. Neste cenário, o futuro que ainda nos espera é o passado colonial.
Danilo Serejo, quilombola e coordenador do grupo de assessoria política do território quilombola Alcântara
No centro do município de Alcântara, na praça principal, o pelourinho usado para açoitar negros escravizados. Foto: Manuela Azevedo / Agência Tambor
Lidiane Carvalho Amorim Sousa, chefe da Divisão de Territórios Quilombolas da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Maranhão, reconhece ainda hoje esse traço da colonização brasileira. "Essa ausência e morosidade, ela não é aleatória. É resultado de uma estrutura racista que precisa assimilar que a titularização não é um problema, mas uma reparação histórica", analisa.
Segundo ela, um novo conjunto de normas está sendo trabalhado pela Conaq e pelo próprio Incra na busca de mais celeridade nas soluções. A previsão de entrega do documento é ainda em novembro deste ano. Outro ponto que a chefe da divisão considera um avanço é a criação da Diretoria de Territórios Quilombolas no Incra, responsável por coordenar a execução das atividades de identificação, de reconhecimento, de delimitação, de demarcação e de titulação das terras quilombolas.
Os territórios quilombolas de Alcântara aguardam a titulação determinada pela Corte Interamericana e homologada na justiça federal, no Governo Lula. Foto: Lucas Ferreira/Festival Luz Negra
A dificuldade de acesso a verba pública também é uma realidade. "No governo passado, o orçamento foi zero", afirma Lidiane, acrescentado que, mesmo quando possuem um fundo, ele sofre pressões no Congresso Nacional por deputados da bancada ruralista do país, e sofre cortes que prejudicam o desenvolvimento do trabalho.
Segundo ela, o Incra já atua em campo, e parte da titulação territorial acordada com o governo federal deve ocorrer em novembro. "Esse é o compromisso homologado na Justiça. Ainda não é o território todo, mas já temos 45 mil hectares em fase de desapropriação", afirma. A chefe da divisão acrescenta que a expectativa é concluir o processo até o fim de 2026, com toda a área registrada em nome de quem tem direito.
O processo de titulação é composto de etapas complexas que podem se arrastar por anos - como estudos antropológicos, perícias fundiárias, indenizações, reintegração e desapropriação. Para Elizabeth Santos, líder do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), a lentidão do Estado é uma crueldade, e reafirma a mesma realidade descrita pela infância de Danilo.
"Não é só a titulação; no momento em que ela não avança, nossas comunidades vivem sob constantes ameaças e vulnerabilidades. Vive-se com medo - medo de perder o seu direito, a sua moradia, o seu lugar. Essa insegurança afeta as nossas produções, o nosso sentimento de pertencimento e a nossa dignidade. A terra é o alicerce da nossa vida como povos tradicionais, como povo negro, como povo quilombola."
Em Alcântara, no litoral oeste do Maranhão, onde 85% da população se autodeclara quilombola, a comunidade enfrenta o Estado e interesses econômicos para garantir o seu direito de existir. Foto: Lucas Ferreira/Festival Luz Negra
O defensor público da união no Maranhão Yuri Costa define que essa "é uma política feita para não ser executada". Ele ressalta que nem tudo depende da lei, mas da vontade política institucional - que vá além de governos e se consolide como valor de Estado.
Rafael também reconhece que o Brasil possui uma legislação consistente para a proteção de territórios quilombolas, mas, segundo o advogado, "a questão é que, no processo de titulação, a previsão normativa de execução já é muito ampla".
Modo de vida quilombola
Alcântara, município que dá nome ao território, concentra a maior proporção de população quilombola do país: 18.467 habitantes, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos quais 85% se autodeclaram quilombolas. Para Danilo, o dado reflete "um reconhecimento de ancestralidade, identidade e cultura".
A significativa população quilombola reforça a importância da luta travada na Corte pelo reconhecimento do território. Além da exigência da titulação, a comunidade de Alcântara garantiu que qualquer medida na área precisa contar com a consulta prévia, livre e informada, assim como determina a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Mas a conquista é ainda mais profunda e determinante, "a titulação garante a comunidade autonomia e segurança. Com domínio da terra nas nossas mãos o diálogo é nivelado com o Estado. Teremos autonomia política e segurança jurídica", conclui Danilo.
Coleta de açaí no território quilombola de Alcântara (MA). Foto: Ana Mendes / Imagens Humanas
Mas não é só questão de propriedade, para o defensor, são dimensões sistemáticas, simbólicas e sagradas que não estão restritas a limites e demarcações. "A terra é um componente do território, mas o território é muito além disso para o modo de vida quilombola", resume.
"A gente tem um conceito de propriedade privada. O quilombo não. Na verdade, é dizer: 'nós só podemos sobreviver se todos usarem o território. Fazemos isso há 200 anos. Se dividir, cortar a terra, nós morremos. Porque eu posso ter acesso ao rio, mas eu não vou ter acesso ao babaçual. Eu posso ter acesso ao mar, mas eu não vou ter acesso ao local onde planta a mão de obra'", compartilha Yuri os ensinamentos que aprendeu - como mesmo declarou - não em sala de aula, mas nos quilombos de Alcântara.
Pescador no território quilombola de Alcântara (MA). Foto: Ana Mendes / Imagens Humanas
Ameaça e invisibilidade
Danilo não classifica o que acontece em Alcântara como um "ensinamento", pois cada território tem seus enfrentamentos, suas necessidades e formas de resistência. No entanto, não deixa de reconhecer os impactos positivos de Alcântara para a luta dos povos remanescentes.
"É a primeira vez que o Brasil é condenado por um crime à comunidade quilombola, escancarando o racismo estrutural e forçando este Estado a reconhecer o direito de propriedade coletiva do povo negro e rural - e além da resistência, todo isso foi possível diante da nossa formação política e técnica, alcançada ao longo do tempo", finaliza.
Apesar da vitória histórica em Alcântara, a maioria dos quilombos do Maranhão ainda vive sob ameaça e invisibilidade. O cenário não se restringe aos quilombos da Amazônia Legal. No quilombo Guarimã, também localizado no Maranhão, a espera pelo título se encontra com embates com o agronegócio. O processo iniciado em 2013, só avançou após o agravamento da violência no território e a atuação de órgãos federais.
"A organização política e a necessidade da regularização surgiu como resposta aos atos de violência", conta Maelson Bezerra, líder quilombola sob proteção federal e atual presidente da Associação dos Moradores do Povoado Guarimã.
No Quilombo Guarimã, Raimundo Nonato Lopes da Silva vive em conexão com a natureza e a água. Foto: Manuela Azevedo/Agência Tambor
Exemplo desta pressão é que em outubro de 2025, quando a reportagem estava na comunidade, fazendeiros atearam fogo próximo ao quilombo Cajueiro. Famílias tentaram conter as chamas com baldes d'água. "Aqui tinha palmeira, tinha muricizeiro. Tudo acabou. Eles querem expulsar a gente daqui. Mas não quero sair daqui", afirma o quilombola Wilton Rodrigues, de 61 anos, morador da comunidade Cajueiro.
Para a Defensoria Pública da União o cenário descrito pelos quilombolas é evidente. "A gente tem acompanhado, já faz um bom tempo. A cada pedido, a cada reivindicação desse direito [de titularização], a cada protocolo junto ao Incra para regularização, a cada pedido junto à Fundação Palmares de que seja expedido uma declaração, uma certificação de comunidade quilombola, a gente tem um acirramento de conflitos. É um acirramento que se alimenta da omissão estrutural do Estado brasileiro nesse processo", explica Yuri.
A violência atinge até a memória dos mortos. Cemitérios foram cercados e estão inacessíveis. "Aqui a gente está proibido até de morrer, porque não há nem onde se enterrar", denuncia Francisca Vieira, uma das moradoras do território. Cercados por arame e correntões, os quilombolas resistem. "Não há um pau em pé, nem uma palmeira. O correntão derrubou tudo", lamenta Wilton.
Números e indicadores não traduzem a violência que os quilombos enfrentam no Maranhão. Quando um território quilombola é violado, não é só a terra que se perde - o que já seria muito -, mas também o meio ambiente que sustenta a vida em todas as suas formas. Viola-se, ainda, a dignidade de um povo que é patrimônio de uma história e cultura presentes em cada brasileiro. O que se fere são os direitos de todos nós - quilombolas ou não - à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à saúde, ao trabalho e à expressão. Fere o que há de mais essencial na humanidade: o direito de existir como indivíduo em sua comunidade.
Esta reportagem é uma parceria da InfoAmazonia com Agência Tambor e faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia.
Ilustração de abertura: Utópika Estúdio
https://infoamazonia.org/2025/11/02/maranhao-lidera-presenca-quilombola-na-amazonia-mas-titulacao-continua-travada/
Por Manuela Azevedo
Agência Tambor
2 novembro 2025 at 8:00 (Atualizado em 4 novembro 2025 at 15:32)
O estado tem 405 territórios quilombolas, maior quantidade da região. É, também, o segundo do país em casos de violência no campo, atrás apenas do Pará. Território de Alcântara, símbolo da resistência quilombola, segue sem título mesmo após julgamento histórico internacional.
No Maranhão, a luta dos territórios quilombolas e quilombos pela titulação vai além da posse da terra. É uma guerra pela sobrevivência - do meio ambiente, da cultura, da identidade e da própria vida de seu povo. O estado concentra a maior presença de quilombolas na Amazônia Legal (64,1% %), com 405 territórios quilombolas. No entanto, apenas 12,6% deles, ou seja, 51 territórios, têm título definitivo.
É o que mostra o estudo do Instituto Socioambiental (ISA) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). O levantamento integrou bases de dados sobre territórios quilombolas, áreas já delimitadas, e quilombos, comunidades quilombolas representadas por pontos no mapa da Amazônia Legal. Esta é a quinta reportagem da série Amazônia Quilombola, uma produção da Rede Cidadã InfoAmazonia em parceria com a Agência Tambor e InfoAmazonia.
Grande parte destas regiões têm sua trajetória marcada pela violência imposta pelo agronegócio, que avança sobre os territórios em um rastro de fogo, fumaça, tratores, armas e venenos. No entanto, a luta dos povos quilombolas não se restringe a estes ataques. Há 45 anos, durante a ditadura militar, 312 famílias quilombolas foram expulsas do território quilombola de Alcântara para a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), espaço operado pela Força Aérea Brasileira (FAB) para lançar foguetes, satélites e experimentos científicos, em um dos episódios mais graves de violação de direitos humanos no país.
O caso, marcado por remoções forçadas, resultou décadas depois, em março de 2025, na condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), um marco histórico de resistência e reparação para o movimento quilombola. Apesar da decisão favorável, a luta ainda não terminou. O território segue sem o título definitivo.
Centro de Lançamento de Alcântara: um crime sentenciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação aos princípios legais dos territórios quilombolas. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil
Danilo Serejo, quilombola e coordenador do grupo de assessoria política do território, hoje formado em Direito e mestre em Ciências Políticas, nasceu e cresceu dentro desse conflito. Ao longo dos seus 41 anos, viu a comunidade e sua família viverem sem perspectiva. O quilombo em que ele vive não chegou a ser remanejado, mas está dentro da área considerada de expansão da base. "Viver sob angústia, ameaça e insegurança é viver sem futuro", descreve.
Viver sob angústia, ameaça e insegurança é viver sem futuro.
Danilo Serejo, quilombola e coordenador do grupo de assessoria política do território quilombola Alcântara
Violência fundiária: a regra do Maranhão
Além das dificuldades na regularização fundiária, o Maranhão enfrenta um cenário particular: é o estado com mais territórios quilombolas do país e o segundo em casos de violência no campo, atrás apenas do Pará. De acordo com o Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro (1985-2023), o estado registrou 4.593 confrontos rurais, sendo 2.466 envolvendo quilombos desde 2000, quando a categoria passou a ser específica.
Na avaliação de Rafael Silva, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a falta de titulação aumenta a vulnerabilidade das comunidades. O Maranhão concentra 22 dos 52 assassinatos de quilombolas no país entre 2005 e 2024, o equivalente a 42,3% do total. "Nenhum desses casos ocorreu em território titulado", ressalta.
Outra particularidade é a Lei no 12.169/2023, a chamada Lei da Grilagem, sancionada em dezembro de 2023 pelo governador Carlos Brandão (PSB). A norma ampliou o limite de regularização de 200 para 2.500 hectares e criou restrições ao reconhecimento de territórios tradicionais.
Organizações sociais e comunidades quilombolas afirmam que a lei favorece a legalização de áreas griladas. "O problema da lei não é, necessariamente, a inconstitucionalidade. O problema é exatamente o que ela permite enquanto uma lei constitucional de apropriação de terra pública pelo mercado, porque esses limites foram ampliados", pontua Rafael.
Tambor de Crioula: uma manifestação cultural que expressa o sincretismo religioso e está presente nos quilombos desde o período da escravidão. Foto: Lucas Ferreira/Festival Luz Negra
Além disso, o estudo aponta outra particularidade: o estado, por meio do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), apresenta "divergências em termos de número de territórios, status de regularização e na delimitação cartográfica de suas áreas". O levantamento destaca que as inconsistências podem comprometer o acesso aos direitos dos povos tradicionais.
O advogado alerta para a necessidade de monitoramento constante sobre como o Iterma tem conduzido os processos administrativos após a mudança legal: "Esse levantamento até agora ninguém acompanhou de perto", revela.
"Estamos dentro de um sistema econômico-capitalista que entende a terra como mercadoria, e os próprios processos de mercantilização da natureza são parte dessa estrutura fundiária do país desde o início do processo de colonização", pontua o advogado.
Questionado, o Iterma afirmou que "já promoveu a titulação de dezenas de comunidades e continua ampliando essas ações". O órgão reconhece que a "titulação definitiva assegura segurança jurídica e protege contra grilagem, desmatamento e conflitos fundiários". Os números oficiais não foram informados.
O peso histórico da exclusão da terra
Mais de 40 anos de resistência separam o território quilombola de Alcântara da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos - uma história que começa no regime militar e chega a 2025 com o reconhecimento da violação de direitos de 171 quilombos. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi acionado em 2001. Na época, Danilo tinha 17 anos. O processo teve audiências em 2008 e 2019, e chegou à Corte em 2022, sendo julgado até a sentença emitida neste ano.
A decisão condenou o Brasil por violações de direitos humanos, especialmente ao direito à propriedade coletiva, reconhecendo a responsabilidade do Estado pela desapropriação e remoção forçada de quilombolas para a construção do Centro de Lançamento de Alcântara. A Corte determinou que o país garanta a titulação coletiva de mais de 78 mil hectares e proibiu a ampliação do CLA. Também foi determinado o pagamento de uma multa de US$ 4 bilhões pela União.
Danilo relembra que as desigualdades são históricas e têm raízes profundas na formação do país. Apesar da Lei Áurea, de 1888, ter decretado a abolição formal da escravidão, apenas a Constituição Federal de 1988 reconheceu os quilombolas como sujeitos de direito, garantindo às comunidades a titulação de suas terras.
"Não tem como dizer que a dificuldade de titularização é um entrave burocrático. O que há é um legado de desamparo e invisibilidade. Uma falta de vontade diante de uma herança de racismo institucional e estrutural. Neste cenário, o futuro que ainda nos espera é o passado colonial", analisa Danilo.
Não tem como dizer que a dificuldade de titularização é um entrave burocrático. O que há é um legado de desamparo e invisibilidade. Uma falta de vontade diante de uma herança de racismo institucional e estrutural. Neste cenário, o futuro que ainda nos espera é o passado colonial.
Danilo Serejo, quilombola e coordenador do grupo de assessoria política do território quilombola Alcântara
No centro do município de Alcântara, na praça principal, o pelourinho usado para açoitar negros escravizados. Foto: Manuela Azevedo / Agência Tambor
Lidiane Carvalho Amorim Sousa, chefe da Divisão de Territórios Quilombolas da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Maranhão, reconhece ainda hoje esse traço da colonização brasileira. "Essa ausência e morosidade, ela não é aleatória. É resultado de uma estrutura racista que precisa assimilar que a titularização não é um problema, mas uma reparação histórica", analisa.
Segundo ela, um novo conjunto de normas está sendo trabalhado pela Conaq e pelo próprio Incra na busca de mais celeridade nas soluções. A previsão de entrega do documento é ainda em novembro deste ano. Outro ponto que a chefe da divisão considera um avanço é a criação da Diretoria de Territórios Quilombolas no Incra, responsável por coordenar a execução das atividades de identificação, de reconhecimento, de delimitação, de demarcação e de titulação das terras quilombolas.
Os territórios quilombolas de Alcântara aguardam a titulação determinada pela Corte Interamericana e homologada na justiça federal, no Governo Lula. Foto: Lucas Ferreira/Festival Luz Negra
A dificuldade de acesso a verba pública também é uma realidade. "No governo passado, o orçamento foi zero", afirma Lidiane, acrescentado que, mesmo quando possuem um fundo, ele sofre pressões no Congresso Nacional por deputados da bancada ruralista do país, e sofre cortes que prejudicam o desenvolvimento do trabalho.
Segundo ela, o Incra já atua em campo, e parte da titulação territorial acordada com o governo federal deve ocorrer em novembro. "Esse é o compromisso homologado na Justiça. Ainda não é o território todo, mas já temos 45 mil hectares em fase de desapropriação", afirma. A chefe da divisão acrescenta que a expectativa é concluir o processo até o fim de 2026, com toda a área registrada em nome de quem tem direito.
O processo de titulação é composto de etapas complexas que podem se arrastar por anos - como estudos antropológicos, perícias fundiárias, indenizações, reintegração e desapropriação. Para Elizabeth Santos, líder do Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), a lentidão do Estado é uma crueldade, e reafirma a mesma realidade descrita pela infância de Danilo.
"Não é só a titulação; no momento em que ela não avança, nossas comunidades vivem sob constantes ameaças e vulnerabilidades. Vive-se com medo - medo de perder o seu direito, a sua moradia, o seu lugar. Essa insegurança afeta as nossas produções, o nosso sentimento de pertencimento e a nossa dignidade. A terra é o alicerce da nossa vida como povos tradicionais, como povo negro, como povo quilombola."
Em Alcântara, no litoral oeste do Maranhão, onde 85% da população se autodeclara quilombola, a comunidade enfrenta o Estado e interesses econômicos para garantir o seu direito de existir. Foto: Lucas Ferreira/Festival Luz Negra
O defensor público da união no Maranhão Yuri Costa define que essa "é uma política feita para não ser executada". Ele ressalta que nem tudo depende da lei, mas da vontade política institucional - que vá além de governos e se consolide como valor de Estado.
Rafael também reconhece que o Brasil possui uma legislação consistente para a proteção de territórios quilombolas, mas, segundo o advogado, "a questão é que, no processo de titulação, a previsão normativa de execução já é muito ampla".
Modo de vida quilombola
Alcântara, município que dá nome ao território, concentra a maior proporção de população quilombola do país: 18.467 habitantes, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos quais 85% se autodeclaram quilombolas. Para Danilo, o dado reflete "um reconhecimento de ancestralidade, identidade e cultura".
A significativa população quilombola reforça a importância da luta travada na Corte pelo reconhecimento do território. Além da exigência da titulação, a comunidade de Alcântara garantiu que qualquer medida na área precisa contar com a consulta prévia, livre e informada, assim como determina a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Mas a conquista é ainda mais profunda e determinante, "a titulação garante a comunidade autonomia e segurança. Com domínio da terra nas nossas mãos o diálogo é nivelado com o Estado. Teremos autonomia política e segurança jurídica", conclui Danilo.
Coleta de açaí no território quilombola de Alcântara (MA). Foto: Ana Mendes / Imagens Humanas
Mas não é só questão de propriedade, para o defensor, são dimensões sistemáticas, simbólicas e sagradas que não estão restritas a limites e demarcações. "A terra é um componente do território, mas o território é muito além disso para o modo de vida quilombola", resume.
"A gente tem um conceito de propriedade privada. O quilombo não. Na verdade, é dizer: 'nós só podemos sobreviver se todos usarem o território. Fazemos isso há 200 anos. Se dividir, cortar a terra, nós morremos. Porque eu posso ter acesso ao rio, mas eu não vou ter acesso ao babaçual. Eu posso ter acesso ao mar, mas eu não vou ter acesso ao local onde planta a mão de obra'", compartilha Yuri os ensinamentos que aprendeu - como mesmo declarou - não em sala de aula, mas nos quilombos de Alcântara.
Pescador no território quilombola de Alcântara (MA). Foto: Ana Mendes / Imagens Humanas
Ameaça e invisibilidade
Danilo não classifica o que acontece em Alcântara como um "ensinamento", pois cada território tem seus enfrentamentos, suas necessidades e formas de resistência. No entanto, não deixa de reconhecer os impactos positivos de Alcântara para a luta dos povos remanescentes.
"É a primeira vez que o Brasil é condenado por um crime à comunidade quilombola, escancarando o racismo estrutural e forçando este Estado a reconhecer o direito de propriedade coletiva do povo negro e rural - e além da resistência, todo isso foi possível diante da nossa formação política e técnica, alcançada ao longo do tempo", finaliza.
Apesar da vitória histórica em Alcântara, a maioria dos quilombos do Maranhão ainda vive sob ameaça e invisibilidade. O cenário não se restringe aos quilombos da Amazônia Legal. No quilombo Guarimã, também localizado no Maranhão, a espera pelo título se encontra com embates com o agronegócio. O processo iniciado em 2013, só avançou após o agravamento da violência no território e a atuação de órgãos federais.
"A organização política e a necessidade da regularização surgiu como resposta aos atos de violência", conta Maelson Bezerra, líder quilombola sob proteção federal e atual presidente da Associação dos Moradores do Povoado Guarimã.
No Quilombo Guarimã, Raimundo Nonato Lopes da Silva vive em conexão com a natureza e a água. Foto: Manuela Azevedo/Agência Tambor
Exemplo desta pressão é que em outubro de 2025, quando a reportagem estava na comunidade, fazendeiros atearam fogo próximo ao quilombo Cajueiro. Famílias tentaram conter as chamas com baldes d'água. "Aqui tinha palmeira, tinha muricizeiro. Tudo acabou. Eles querem expulsar a gente daqui. Mas não quero sair daqui", afirma o quilombola Wilton Rodrigues, de 61 anos, morador da comunidade Cajueiro.
Para a Defensoria Pública da União o cenário descrito pelos quilombolas é evidente. "A gente tem acompanhado, já faz um bom tempo. A cada pedido, a cada reivindicação desse direito [de titularização], a cada protocolo junto ao Incra para regularização, a cada pedido junto à Fundação Palmares de que seja expedido uma declaração, uma certificação de comunidade quilombola, a gente tem um acirramento de conflitos. É um acirramento que se alimenta da omissão estrutural do Estado brasileiro nesse processo", explica Yuri.
A violência atinge até a memória dos mortos. Cemitérios foram cercados e estão inacessíveis. "Aqui a gente está proibido até de morrer, porque não há nem onde se enterrar", denuncia Francisca Vieira, uma das moradoras do território. Cercados por arame e correntões, os quilombolas resistem. "Não há um pau em pé, nem uma palmeira. O correntão derrubou tudo", lamenta Wilton.
Números e indicadores não traduzem a violência que os quilombos enfrentam no Maranhão. Quando um território quilombola é violado, não é só a terra que se perde - o que já seria muito -, mas também o meio ambiente que sustenta a vida em todas as suas formas. Viola-se, ainda, a dignidade de um povo que é patrimônio de uma história e cultura presentes em cada brasileiro. O que se fere são os direitos de todos nós - quilombolas ou não - à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à saúde, ao trabalho e à expressão. Fere o que há de mais essencial na humanidade: o direito de existir como indivíduo em sua comunidade.
Esta reportagem é uma parceria da InfoAmazonia com Agência Tambor e faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia.
Ilustração de abertura: Utópika Estúdio
https://infoamazonia.org/2025/11/02/maranhao-lidera-presenca-quilombola-na-amazonia-mas-titulacao-continua-travada/
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