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Índios e não índios - Antropólogo fala sobre preconceitos que andam escancarados pelas ruas de MS

31/12/2009

Fonte: Revista Premissas - Universidade Federal da Grande Dourados



Levi Marques Pereira possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas, doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Etnologia Sul-Americana, atuando principalmente nos seguintes temas: parentesco e organização social, educação indígena, antropologia da religião, infância e gênero, história indígena, terras indígenas e movimento social.

Entre os projetos de pesquisa em desenvolvimento na Faculdade Ciências Humanas da UFGD estão "Levantamento histórico e antropológico de comunidades Kaiowa que vivem em margens de rodovia no Estado de MS" e "Identificação de terras quilombolas em MS: Família Jarcem, Família Araújo Ribeiro, Família Bispo, Família Quintinos e Comunidade Tia Eva". Levi realizou diversas perícias antropológicas em processos envolvendo direitos territoriais, criminais e de crianças indígenas para Justiça Estadual de Mato Grosso do Sul e para Justiça Federal. Realizou ainda diversas consultorias e assessoria para órgãos públicos como UNESCO, UNICEF, FUNAI, INCRA, Secretarias de Governo estaduais e municipais.

Um desses trabalhos está publicado em formato de livro, produzido em co-autoria como o professor Jorge Eremites de Oliveira, intitulado "Ñande Ru Marangatu: laudo pericial sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai". O título foi lançado em outubro de 2009 e está disponível para download no endereço eletrônico da Editora da UFGD (www.ufgd.edu.br/editora/catalogo). Outra obra de sua autoria disponibilizada na página da Editora é "Os Terena de Buriti: formas organizacionais, territorialização e representação da identidade", também publicado em 2009.

Premissas - Quais as diferenças de significado da terra para índios e não índios no contexto de MS? E qual a importância de viver no tekoha (lugar onde realizam seu modo de ser)?

As Ciências Humanas, em especial a Antropologia, definem o Homem como um ser cultural. A cultura é construída a partir da experiência histórica e social de cada grupo humano. Como tal experiência é única, resulta daí que cada cultura é sui generis, ou seja, constitui-se de maneira diferente para cada povo.

Uma propriedade importante da cultura é que ela cobre toda a experiência humana, orientando o modo como moldamos nossa experiência com outros seres humanos, ou seja, o meio social. Ela molda também nossas relações com divindades que escolhemos adorar e ainda com o ambiente de vida, incluindo o que definimos em nossa própria cultura como recursos naturais, como a terra. As sociedades cristãs ocidentais são guiadas pelo princípio cosmológico de que a terra é um bem entregue por Deus para que os humanos possam dele dispor livremente, apropriando-se e dela fazendo uso sem nenhuma limitação. Isto está escrito na nossa gênese, que autoriza o Homem a possuir e dominar a terra.

A corrente predominante na teologia bíblica apresenta a terra apenas um bem, sendo que esta visão se aprofundou com o desenvolvimento do sistema capitalista, embora muitos teólogos encontrem indícios de outras visões concorrentes na Bíblia, com perfil, diríamos, mais ecológico. Nesse aspecto, a cultura dos índios kaiowa e guarani que habitam a região sul de Mato Grosso do Sul é totalmente diferente. Discuto a questão em profundidade no quarto capítulo de minha tese de doutorado e resumidamente poderia dizer que, a rigor, para os kaiowa e guarani não existe a ideia de meio físico ou de reino mineral, vegetal e animal. Todos os espaços são habitados e controlados por seres com disposições antropocêntricas, associados a acidentes geográficos, animais ou plantas. Todos estes seres dispõem em maior ou menor grau de intencionalidade, desejo, vontade e capacidade de comunicação.

Daí a ideia de tekoha, que não é simplesmente uma terra, como por exemplo, uma fazenda, mas um território no qual vive uma comunidade kaiowa ou guarani, segundo seu modo próprio de ser. A própria etimologia da palavra indica que teko, entre outras coisas, significa modo de ser ou cultura e ha significa lugar. O modo de ser desenvolvido no tekoha se dá em intensa comunicação e negociação com um grande número de seres não humanos, que com eles compartilham espaços comuns e com os quais vivem em intensa interação e cooperação, sempre mediadas pelos xamãs ou rezadores humanos e outras ordens de seres com propriedades xamânicas.

Premissas - Nessa linha, o que o senhor pode dizer sobre o argumento de que "lugar de índio é na Amazônia, por que não mandar os daqui pra lá?" E de que os índios de MS não são mais índios, não andam pelados, que "índio de verdade é da Amazônia"?

Quanto a questão de que "lugar de índio é na Amazônia, por que não mandar os daqui pra lá?", devemos retomar a resposta da questão anterior. O território do tekoha não é qualquer lugar, é um território onde o histórico das relações aí desenvolvidas entre humanos e divindades criou o sentimento de identidade social do grupo como o território no qual seguidas gerações praticaram seu modo próprio de ser.

A outra questão, "de que os índios de MS não são mais índios, não andam pelados, que índio que é índio está na Amazônia", aparece mais como tentativa de negar o óbvio. Deparamo-nos todo dia com os índios na porta de nossas casas, na rua, nos bancos, no comércio, nas universidades, etc. Todos que vivem no sul de MS sabem que os kaiowa e guarani falam uma língua diferente da nossa, têm uma ascendência cultural pré-colombiana e praticam uma cultura própria. É claro que a cultura deles também muda, como a nossa, mas sua cultura segue sendo indígena, como nós seguimos sendo brasileiros.

Premissas - Outra afirmação utilizada por alguns grupos que são contra a demarcação é de que esta ideia vem de ONGs internacionais que querem a independência (separação) das terras indígenas para criação de outras nações, controladas por eles, inclusive usando o jargão "nação indígena ou pátria amada Brasil". Tal hipótese tem alguma coerência no caso das demarcações no sul de MS?

Os kaiowa e guarani de MS se empenham em construir sua própria rede de apoiadores no esforço pela regularização fundiária das terras que consideram de ocupação tradicional de suas comunidades. Fazem isto com bem menos recursos do que seus opositores.

Ao contrário do que muita gente pensa, não existe uma "grande mente", planejando as ações de apoio aos índios, nem mesmo entre os órgãos governamentais. Um dos maiores problemas enfrentados pelos índios está justamente na falta de coesão de seus apoiadores. Eles pertencem a instituições como igrejas, partidos, órgãos governamentais, universidades, ONGs, etc., que possuem suas próprias agendas, pautas e atuação com interesses próprios, nem sempre coincidentes com as demandas indígenas. Isto acaba por promover grande divisão entre os índios, vinculados a projetos de várias instituições.

Tal fragmento dificulta que os índios atuem politicamente com mais coesão e finalidade de propósitos, como fazem, por exemplo, os proprietários rurais. Não tenha dúvida, se a rede de apoiadores dos índios fosse mais coesa, eles teriam ações com muito mais impacto e eficiência política.

Premissas - Também circulam afirmações de que por aqui em MS o problema não seria a terra, de que não há falta de terra e sim falta de assistência para plantar, para a saúde, saneamento, que as instituições ligadas aos índios estariam falidas e assim por diante. Sem ficar redundante, o senhor possui dados sobre a questão de terras insuficientes, chamada de "confinamento" por quem é a favor da demarcação?

Não nego que a FUNAI seja um órgão sucateado em termos de recursos materiais e desaparelhado em termos de recursos humanos. Mesmo com o esforço heroico por parte de seus quadros, o órgão é ausente e ineficiente. As terras destinadas aos índios kaiowa e guarani não são suficientes. Diversos estudos de natureza acadêmica, realizados no âmbito administrativo e mesmo em perícias judiciais, apontam que muitas comunidades sofreram esbulho de suas terras de ocupação tradicional. Há registros de que fatos dessa natureza ocorreram até cerca de duas décadas. Isto remete a questões de âmbito jurídico, que os especialistas na área podem discutir com maior propriedade.

As populações das comunidades expropriadas de suas terras foram recolhidas nas oito reservas demarcadas até 1928 pelo Serviço de Proteção ao Índio - SPI, muitas vezes com o recurso de força policial. A reserva indígena de Dourados é uma dessas áreas destinadas ao recolhimento dos índios, e reúne cerca de doze mil índios em menos de três mil e seiscentos hectares, cifra evidentemente insuficiente para assegurar a reprodução física e cultural da população das diversas comunidades aí recolhidas.

Existe ainda o agravante de que muitas dessas comunidades não reconhecem a reserva como seu tekoha e querem retornar para o espaço onde viveram seus antepassados e os membros mais velhos do grupo. Tal fato se repete nas demais reservas. Muitas famílias que perderam sua terra decidem tentar reocupar as terras que consideram seus antigos tekoha ou acampam em margens de rodovia para ganhar visibilidade e pressionar os órgãos públicos responsáveis por uma solução como aponta a recente dissertação de mestrado de Aline Castilho Crespe Lutti, defendida no Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados.

Premissas - Quais as diferenças no uso da terra e na produção agrícola entre índios e não índios? No caso do Panambi (área demarcada na região de Dourados), por exemplo, alguns reclamam que agora só tem "mato", acusam os índios de vagabundos...

A demarcação da terra assegura aos índios o usufruto exclusivo, de acordo com seus usos, costumes e tradições. Assim, eles não têm a obrigação de dar à terra o mesmo destino que davam os colonos. É claro que eles também não dispõem de recursos para investimento em insumos e equipamentos. A terra desmatada, destocada, cultivada com máquinas agrícolas e tratada com insumos é considerada uma terra valorizada para agricultura comercial. Ao contrário, para os kaiowa e guarani a terra verdadeiramente "boa" é a terra com mata, onde existe uma infinidade de recursos que sabem explorar e onde podem praticar com eficiência a agricultura de coivara. A terra cultivada é para eles uma terra arruinada. Isto requer planos de manejo que os órgãos indigenistas até o momento não souberam elaborar. Tais planos de manejo deveriam se esforçar por conciliar conhecimentos agronômicos indígenas com recursos tecnológicos de nossa própria sociedade. Defendo a ideia de que, sem esses planos de manejo, as demarcações não cumprirão eficazmente seu propósito: o de assegurar a reprodução física e cultural das comunidades kaiowa e guarani.

Evidentemente que isto não pode ser um argumento para não demarcar as terras nos casos em que se demonstre a tradicionalidade da ocupação indígena. Nesses casos, se os recursos das terras foram dilapidados, eles deveriam contar com apoio do governo e da sociedade nacional para recompor as condições ambientais necessárias à reprodução de sua cultura atual, o que não implica em viver do mesmo modo que viviam antes do contato com a sociedade nacional.

Premissas - Outro argumento que é muito repetido em comentários de notícias na internet e também nas rodas de bate-papo é sobre uma integração do índio como cidadão comum brasileiro e não como "índio tutelado". Dizem que agora o índio quer celular, internet e emprego e não quer mais viver na tradição. O que o senhor pode falar acerca da aculturação? O índio deixa de ser índio?

Não existe nenhum movimento coletivo em MS no sentido dos índios deixarem de ser índios. É claro que isto não impede que algum indivíduo de origem indígena possa, de forma isolada, sentir-se assimilado à cultura não indígena. Até recentemente era comum a prática de adoção de crianças indígenas, embora casos deste tipo muitas vezes resultavam em sérios conflitos de identidade pessoal. Acontece também de alguns indígenas que passaram pelo processo de escolarização fora da reserva se sentirem inclinados para cultura não indígena, mas tais casos são numericamente inexpressíveis quando se considera o número dos que, mesmo passando pelo processo de escolarização e tendo bom domínio dos padrões de comportamento da cultura geral brasileira, externam o pertencimento à cultura indígena, sendo assim reconhecido por seus pares.

A ideia de aculturação se remete aos estudos do assunto originados na Antropologia praticada nos Estados Unidos na década de 1940 e que tiveram grande presença na Antropologia brasileira até a década de 1960. Na Antropologia atual essa discussão é considerada como teoricamente superada, mas continua muito presente no senso comum e mesmo em estudos acadêmicos realizados fora da Antropologia.

A ideia básica dos estudos de aculturação e de que, com o contato entre as culturas a cultura mais empoderada submete a mais fragilizada à pressão aculturativa, resultando na perda gradativa de sua contrastividade cultural. Acontece que estudos mais recentes, realizados em várias partes do mundo, demonstraram que o processo é muito mais complexo, podendo acontecer o contrário, ou seja, a pressão de mudança cultural estimular o fortalecimento ou ressurgimento étnico, tal como aconteceu no processo de dissolução do bloco socialista a antiga URSS. Outros exemplos, seriam o movimento basco na Espanha ou os irlandeses no território britânico.

A tradição não é feita só do uso de elementos da cultura material. Nós brasileiros utilizamos hoje - como parte dos índios - uma série de instrumentos eletrônicos fabricados no Japão ou na China e nem por isto estamos nos tornando japoneses ou chineses. Não há motivo para argumentar que os benefícios dos inventos realizados por uma cultura devam permanecer restritos a ela. As diversas sociedades humanas utilizam uma série de invenções indígenas, como as plantas domesticadas como alimentos, tais como o milho, o amendoim, a batata, o tomate, a mandioca etc, a vestimenta do fio de algodão, ou mesmo remédios e cosméticos que têm na sua fórmula princípios ativos de plantas que já eram utilizadas com a mesma finalidade pelas populações indígenas. Mesmo realizando estes empréstimos, as populações dos diversos países não se sentem índias, como os índios não se sentem não índios quando utilizam um celular ou fazem uso de outro recurso tecnológico de nossa sociedade.

Premissas - Nessa questão da demarcação de terras no sul de MS, existe um lado "certo" e outro "errado"?

O Estado é o grave vilão. Até porque, no período em que as terras de ocupação indígena foram expropriadas, existiam leis que deveriam assegurar a permanência dos índios nas terras que viviam. No antigo estado de Mato Grosso a máquina pública foi apropriada e corrompida pela elite agrária, interessada em legalizar terras como propriedades particulares, mesmo que para isto tivessem que expropriar comunidades indígenas. As ilegalidades em Cuiabá eram tantas, que o departamento de terras teve de ser fechado várias vezes, sofrendo intervenção federal. Uma vez legalizadas, as terras foram vendidas a outros proprietários. Com as seguidas transferências na cadeia dominial, a maioria dos atuais proprietários muitas vezes nem tem conhecimento de que suas terras foram de ocupação indígena no passado. Neste caso, não seria correto imputar-lhes o ônus pela expulsão dos índios de suas terras.

Premissas - Por que os procedimentos de demarcação estão ocorrendo somente agora no sul de MS, e não desde a Constituição de 88? Por que não no prazo dos cinco anos após a publicação da Constituição, como está previsto em atos institucionais? O que faltava antes existe agora?

A regularização fundiária de terras indígenas é sempre permeada por muitos conflitos. Normalmente ela opõe, por um lado, proprietários rurais que dispõem de apoio político e recursos para recorrer ao judiciário e, por outro lado, comunidades indígenas que dependem quase que exclusivamente da ação de órgãos governamentais sobre os quais nem sempre têm o poder de exercer pressão suficiente para que cumpram suas obrigações constitucionais.

Quando ao que "faltava antes e agora existe", é possível apontar a ação do Ministério Público. A partir da atribuição de defesa dos direitos das sociedades indígenas, ela passou a se organizar para atuar de modo mais incisivo e eficaz na exigência do cumprimento da obrigatoriedade da regularização fundiária das terras indígenas.

O próprio movimento de lideranças indígenas passou a ter mais conhecimento do processo e a procurar constituir uma rede de aliados, mesmo com as dificuldades apontadas anteriormente. Estas são algumas condições que surgiram nos últimos anos que favorecem a entrada das demarcações na agenda política do governo. Não podemos esquecer que o processo de consolidação das instituições democráticas na sociedade brasileira favorece uma maior atenção aos direitos sociais e étnicos.

Premissas - Para encerrar, o que senhor recomenda para as pessoas que desejam estar melhor informadas sobre a discussão da demarcação de terras em MS? E por que a publicação do livro sobre o laudo pericial em Antônio João?

Com raras exceções, as informações veiculadas na imprensa sul-mato-grossense sobre os povos indígenas são péssima qualidade, seja por desinformação dos profissionais de imprensa ou por compromisso com grupos políticos com interesses contrários aos direitos indígenas. Os sites da FUNAI e do Instituto Sócio Ambiental apresentam muitas matérias bem escritas. Existem também sites de revistas eletrônicas, como a revista História em Reflexão da UFGD e da revista Tellus da UCDB, que disponibilizam importantes artigos.

A publicação do livro também pretende contribuir para informar melhor a sociedade. Na obra, a análise do caso de uma comunidade particular serve como referência para entender dezenas de situações de conflitos agrários entre índios e proprietários, noticiados com frequência na imprensa.

http://www.pontaodeculturaguaicuru.org.br/avamarandu/noticia.php?not_id=36
 

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