De Pueblos Indígenas en Brasil
Noticias
"A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas"
31/07/1998
Autor: RICARDO, Beto
Fonte: Parabólicas, n. 41, jul. 1998, p. 12
"A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas"
Virgínia Valadão (13/08/52 - 02/06/98).
Beto Ricardo
Virgínia foi a primeira filha de um casal de funcionários públicos, católicos, de classe média, do bairro de Perdizes em São Paulo. Cursou o primário vestindo saia pregueada azul marinho e camisa cor-de-rosa, com o emblema em alto relevo do tradicional Externato Assis Pacheco. Seguiu os estudos no Colégio de Aplicação, uma escola experimental vinculada à Faculdade de Filosofia da USP, e sua adolescência coincidiu com o período de agitação política marcado pelo AI-5 (1968) e o recrudescimento da ditadura militar no Brasil. Sua liderança e "sensibilidade para o social", como se dizia naquela época, foram identificadas pelos recrutadores das organizações políticas que radicalizavam a luta contra o autoritarismo. Em 1970, aos 17 anos, caiu presa e amargou alguns dias na temível Operação Bandeirante, juntamente com outros companheiros, militantes juniores de um grupo de estudo e apoio da VAR-Palmares.
Formou-se em Ciências Sociais na Unicamp (1972/77), onde cursou pós-graduação em Antropologia (1977/79). Sempre residindo em São Paulo, juntou-se a um grupo de jovens antropólogos para fundar (1979) e dirigir o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), ONG que tem marcado de maneira positiva e inovadora a cena do indigenismo brasileiro.
Foi no CTI que Virgínia ancorou quase 20 anos de atividades relacionadas aos povos indígenas, seus direitos e suas formas de expressão. Apesar de ter abraçado uma causa que tradicionalmente corrói esperanças, sempre manteve ânimo e alegria de viver. Escreveu vários relatórios, pareceres, laudos e perícias, a maior parte não publicados, frutos de trabalho de campo com pelo menos uma dezena de povos indígenas: Xavante (MT/1977), Urubu-Kaapor (MA/1978), Nhambiquara (MT/1980 e 1986-90), Tembé-Tenetehara (PA/1980-81), Guarani (SP/1983), Tenharim (AM/1987), Enawenê-Nawê (MT/1990-95), Xokleng (SC/1991) isolados do Igarapé Omerê (RO/1995-96), Asurini do Xingu (1997).
Transitou entre temas variados: linguagem corporal, migração e chefia, liderança feminina, ritual, alternativas de desenvolvimento sustentável e, especialmente, o da territorialidade, sobretudo buscando o reconhecimento das terras de índios cada vez mais encurralados pelo vendaval de falso progresso que detonou Rondônia nas três últimas décadas. Foi consultora do Banco Mundial na formulação do Projeto de Demarcação das Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL, 1992) e também a antropóloga responsável no processo de tombamento da Serra do Mar e preservação das vilas caiçaras de S. Paulo (1984/86).
AUDIOVISUAIS
O que ela mais gostava era criar roteiros para audiovisuais. Além de trabalhar com craques, como o maranhense Murilo Santos (de Tenetehara) e Vincent Carelli (de Festa da Moça e tantos outros), dirigiu ela mesma alguns vídeos. Para o público, o melhor trabalho disponível de Virgínia está em YÃKWA - O Banquete dos Espíritos. Trata-se de um longa (54´), em quatro partes, sobre o mais importante ciclo ritual dos Enawenê-Nawê, uma tribo aruak que vive de maneira tradicional no Mato Grosso. Um dos mais belos documentários sobre uma sociedade indígena contemporânea no Brasil, premiado no Japão (16o Tokyo Video Festival, 1995), em Salvador (ABA, 1996) e no Rio (12o RioCine Festival, 1996). Em maio deste ano concluiu seis curtas temáticos para compor uma exposição multimídia que marcaria a implantação do Museu dos Povos Indígenas em Brasília.
Virgínia morreu em casa, cantando Gil e Caetano no chuveiro, depois de uma sessão de Tai Chi na Praça do Pôr-do-Sol. A notícia me fulminou em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro. Eu e Fany havíamos estado juntos com ela, na mesma praça, na belíssima manhã do domingo anterior, conversando sobre a vida. Ela estava animada com o projeto de instalação que idealizara para a abertura do Museu em Brasília, preocupada com a situação dos índios diante da baixaria predatória que continua rolando em Rondônia e com o futuro profissional, diante da crônica insegurança financeira das ONGs. Cansada, como de resto todos nós que, com tantos sonhos, enfrentamos os limites dos financiamentos e a burocracia do mercado de projetos, falou com carinho da opção do filho Pedro pela Física e do bom desempenho da filha Rita numa escola de teatro do bairro.
A Antropologia perde uma trabalhadora de campo a serviço dos direitos e da expressão indígenas. O CTI perde o seu sinal de mais. Eu, como tantos outros, dona Verônica Tembé lá do Gurupi (MA), inclusive, perdi uma amiga querida que imediatamente me fez reler Pessoa, de onde tirei o título deste escrito (Dois Excertos de Odes, 441.2, in Ficções do Interlúdio, Poesias de Álvaro de Campos).
Parabólicas, n. 41, jul. 1998, p. 12.
Virgínia Valadão (13/08/52 - 02/06/98).
Beto Ricardo
Virgínia foi a primeira filha de um casal de funcionários públicos, católicos, de classe média, do bairro de Perdizes em São Paulo. Cursou o primário vestindo saia pregueada azul marinho e camisa cor-de-rosa, com o emblema em alto relevo do tradicional Externato Assis Pacheco. Seguiu os estudos no Colégio de Aplicação, uma escola experimental vinculada à Faculdade de Filosofia da USP, e sua adolescência coincidiu com o período de agitação política marcado pelo AI-5 (1968) e o recrudescimento da ditadura militar no Brasil. Sua liderança e "sensibilidade para o social", como se dizia naquela época, foram identificadas pelos recrutadores das organizações políticas que radicalizavam a luta contra o autoritarismo. Em 1970, aos 17 anos, caiu presa e amargou alguns dias na temível Operação Bandeirante, juntamente com outros companheiros, militantes juniores de um grupo de estudo e apoio da VAR-Palmares.
Formou-se em Ciências Sociais na Unicamp (1972/77), onde cursou pós-graduação em Antropologia (1977/79). Sempre residindo em São Paulo, juntou-se a um grupo de jovens antropólogos para fundar (1979) e dirigir o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), ONG que tem marcado de maneira positiva e inovadora a cena do indigenismo brasileiro.
Foi no CTI que Virgínia ancorou quase 20 anos de atividades relacionadas aos povos indígenas, seus direitos e suas formas de expressão. Apesar de ter abraçado uma causa que tradicionalmente corrói esperanças, sempre manteve ânimo e alegria de viver. Escreveu vários relatórios, pareceres, laudos e perícias, a maior parte não publicados, frutos de trabalho de campo com pelo menos uma dezena de povos indígenas: Xavante (MT/1977), Urubu-Kaapor (MA/1978), Nhambiquara (MT/1980 e 1986-90), Tembé-Tenetehara (PA/1980-81), Guarani (SP/1983), Tenharim (AM/1987), Enawenê-Nawê (MT/1990-95), Xokleng (SC/1991) isolados do Igarapé Omerê (RO/1995-96), Asurini do Xingu (1997).
Transitou entre temas variados: linguagem corporal, migração e chefia, liderança feminina, ritual, alternativas de desenvolvimento sustentável e, especialmente, o da territorialidade, sobretudo buscando o reconhecimento das terras de índios cada vez mais encurralados pelo vendaval de falso progresso que detonou Rondônia nas três últimas décadas. Foi consultora do Banco Mundial na formulação do Projeto de Demarcação das Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL, 1992) e também a antropóloga responsável no processo de tombamento da Serra do Mar e preservação das vilas caiçaras de S. Paulo (1984/86).
AUDIOVISUAIS
O que ela mais gostava era criar roteiros para audiovisuais. Além de trabalhar com craques, como o maranhense Murilo Santos (de Tenetehara) e Vincent Carelli (de Festa da Moça e tantos outros), dirigiu ela mesma alguns vídeos. Para o público, o melhor trabalho disponível de Virgínia está em YÃKWA - O Banquete dos Espíritos. Trata-se de um longa (54´), em quatro partes, sobre o mais importante ciclo ritual dos Enawenê-Nawê, uma tribo aruak que vive de maneira tradicional no Mato Grosso. Um dos mais belos documentários sobre uma sociedade indígena contemporânea no Brasil, premiado no Japão (16o Tokyo Video Festival, 1995), em Salvador (ABA, 1996) e no Rio (12o RioCine Festival, 1996). Em maio deste ano concluiu seis curtas temáticos para compor uma exposição multimídia que marcaria a implantação do Museu dos Povos Indígenas em Brasília.
Virgínia morreu em casa, cantando Gil e Caetano no chuveiro, depois de uma sessão de Tai Chi na Praça do Pôr-do-Sol. A notícia me fulminou em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro. Eu e Fany havíamos estado juntos com ela, na mesma praça, na belíssima manhã do domingo anterior, conversando sobre a vida. Ela estava animada com o projeto de instalação que idealizara para a abertura do Museu em Brasília, preocupada com a situação dos índios diante da baixaria predatória que continua rolando em Rondônia e com o futuro profissional, diante da crônica insegurança financeira das ONGs. Cansada, como de resto todos nós que, com tantos sonhos, enfrentamos os limites dos financiamentos e a burocracia do mercado de projetos, falou com carinho da opção do filho Pedro pela Física e do bom desempenho da filha Rita numa escola de teatro do bairro.
A Antropologia perde uma trabalhadora de campo a serviço dos direitos e da expressão indígenas. O CTI perde o seu sinal de mais. Eu, como tantos outros, dona Verônica Tembé lá do Gurupi (MA), inclusive, perdi uma amiga querida que imediatamente me fez reler Pessoa, de onde tirei o título deste escrito (Dois Excertos de Odes, 441.2, in Ficções do Interlúdio, Poesias de Álvaro de Campos).
Parabólicas, n. 41, jul. 1998, p. 12.
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