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Ameaçados de despejo, indígenas Warao em Boa Vista não sabem para onde ir
23/05/2025
Autor: Felipe Medeiros
Fonte: Amazonia Real - https://amazoniareal.com.br
Boa Vista (RR) - A tensão cresce entre as famílias indígenas Warao que vivem na ocupação Yakera Ine, no bairro Pintolândia, em Boa Vista, diante da ameaça de desocupação e da falta de alternativas de moradia. O governo de Roraima planeja desalojar os indígenas da ocupação, que fica em um terreno onde há um antigo ginásio desportivo, para a construção de uma maternidade com recursos federais do PAC (Programa Nacional de Acelaramento). Desde o início de 2025, quando foram informados que terão que sair do local, os Warao convivem com um clima de medo e de insegurança pelo receio de serem retirados à força a qualquer momento,.
Eles relatam que no último domingo (18) policiais militares estiveram na ocupação sem informar o motivo. Os indígenas contaram à Amazônia Real que foram intimidados pelos policiais. Antes da chegada deles, duas pessoas desconhecidas dos indígenas visitaram o local, sem se identificarem, e fizeram "medições" da área.
Ao perceber que a ação estava sendo filmada pelos indígenas, um dos policiais reagiu de forma intimidadora. "Tá filmando por que? Tá doido?! Posso te processar!", ameaçou o PM enquanto caminhava em direção a um dos Warao. [vídeo]
Na última terça-feira (20), a Amazônia Real esteve na ocupação, quando presenciou o clima de medo das famílias de serem expulsas e da incerteza de não ter para onde ir. Em abril, a expectativa de remoção do local já havia sido acompanhada pela reportagem.
Desde janeiro deste ano, os Warao recebem repetidos comunicados não oficiais de representantes do governo de Roraima de que precisam sair do local. As notícias têm causado estresse e abalo na saúde mental das famílias que moram na ocupação. O primeiro aviso aconteceu no dia 24 de janeiro, quando foram informados que teriam "40 dias para sair do terreno", conforme relatos das lideranças indígenas.
Um dos líderes da ocupação, Euligio Baez, que pronuncia o português com dificuldade, disse que o primeiro comunicado aconteceu de forma oral por dois servidores que se identificaram serem da Secretaria Estadual de Saúde (Sesau) e estavam escoltados com policiais do Bope. "Pedimos documento, falaram que não tinha, tinha que imprimir", contou a liderança Warao.
Após essa comunicação informal, os caciques Warao procuraram o Ministério Público Federal. Segundo Euligio, o órgão conseguiu prorrogar esse prazo para o dia 30 de abril.
"Quando fomos no Ministério Público falaram que tinha que ter uma consulta aqui na comunidade, para escutar o povo. O doutor [referindo-se ao procurador da república Alisson Marugal] disse que tinha que ter uma consulta antes", lembrou Euligio.
Nessa altura, com o MPF como mediador do conflito, um ofício foi enviado pela Secretaria Estadual de Saúde para o procurador pedindo um "plano de desocupação" com "diálogo pacífico". Entretanto, na prática, atualmente, os indígenas enfrentam a pressão de agentes públicos ao entrarem sem comunicação no local e com atos de intimidação, como mostrado na filmagem de domingo passado.
"Estávamos esperando que no dia 30 viesse alguma autoridade, como falaram. Mas ninguém apareceu", relata Euligio. Após a primeira comunicação de desocupação, os indígenas receberam a professora Priscila Cardoso, do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Roraima (UFRR), com outras autoridades para ouvir a proposta da comunidade.
À Amazônia Real, Priscila Cardoso ressaltou as dificuldades que os indígenas Warao já enfrentam, como insegurança alimentar, falta de saneamento e abandono por parte do poder público. Ela alerta que esta situação de vulnerabilidade pode tornar-se ainda mais grave as condições dos indígenas.
"A tragédia já está acontecendo. Mas ela pode escalar para algo ainda mais grave, se essas violações continuarem invisibilizadas. Não há diálogo real quando o governo ignora a mediação do MPF e entra à força em território indígena", avaliou Priscila. Ela lembrou que é "dever do Estado de realizar consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas" toda vez que for preciso tomar medidas que afetem esse povo.
Priscila Cardoso avalia que é preciso respeitar o processo e o tempo da escuta da comunidade. Segundo ela, a escuta é feita pelo Observatório de Direitos Humanos, Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
"Não é o tempo do Estado, é o tempo desses indígenas. Existe um risco sim de que as pessoas acabem sendo colocadas na rua, mas isso é algo que nós vamos buscar nas últimas instâncias para não acontecer".
Conforme Priscila, se os Warao forem despejados, o Observatório vai buscar apoio de organizações internacionais de direitos humanos, porque o que está acontecendo viola direitos fundamentais básicos dos povos indígenas.
"Eu acredito que é um processo violento por parte do Estado que pode ocorrer de os indígenas serem retirados de forma truculenta", criticou a postura do governo.
'Se cacique não tivesse se afastado teria apanhado'
Outra liderança da comunidade, o cacique Jimenez Nunez [ele que filmou a ação da PM no domingo], disse que eles sempre se sentem hostilizados com as abordagens da polícia.
"Eles chegaram bravos, já [prontos] para bater. Nós queremos diálogo, mas com a polícia não tem muito diálogo. Não sabemos qual instituição mandou eles pra cá, se foi a Secretaria de Saúde, a empresa. Qual a empresa? Não sabemos quem foi", questiona. "Eu fiquei com medo, porque já vi policiais baterem com arma", relembra.
Apesar dos indígenas terem questionado os policiais sobre o motivo das suas presenças, eles foram ignorados. Os policiais preferiram se dirigir apenas a uma estudante de mestrado não indígena que faz trabalho voluntário na comunidade e que estava presente no momento do episódio.
Benedetta Spadoni, que é italiana, disse à Amazônia Real que os policiais ficaram na entrada, enquanto os outros [homens com equipamentos topográficos] começaram a fazer o levantamento, conta. Segundo ela, um dos policiais não demonstrou interesse em explicar para os indígenas, mas sim, apenas a ela, em português.
"Tentei traduzir um pouco para tranquilizar, dizendo que não iam tirar eles de lá naquele dia. Os policiais deviam ter feito uma abordagem mais cuidadosa. Podiam se comunicar melhor e ser mais sensíveis com o uso das palavras. Acho que se podia evitar serem agressivos".
Euligio contou que se o cacique [Jimenez] não tivesse se afastado dos policiais a tempo a liderança teria apanhado".
"As crianças, as mulheres, todos ficaram com muito medo. A gente sabe o que já aconteceu com outros povos indígenas. A polícia chega para agredir", contou à reportagem.
Esta foi a segunda vez, em um período de uma semana, que homens entraram sem permissão ou sem identificação na ocupação Yakera Ine para realizar serviços topográficos, segundo Euligio Baez.
No dia 13 de maio, a Amazônia Real recebeu um outro vídeo de uma situação semelhante ocorrida na semana passada, onde após medirem o muro, homens entram em um veículo da Secretaria de Infraestrutura (Seinf) e saem após serem abordados pelos caciques. A maneira de agir foi a mesma do último domingo, só que desta última vez com a presença da PM e agressividade.
"Eles não conversaram com ninguém. Só disseram que o lugar não era nosso. E nós estamos aqui desde 2017", afirma o cacique Euligio.
Após a chegada de mais moradores e da mediação feita pela voluntária, os policiais deixaram o local. "Explicamos que estamos em diálogo com a Funai, o Ministério Público Federal e o Estadual. Não somos contra a construção da maternidade, só queremos outro espaço com dignidade", conclui.
Carmen Ramirez, de 39 anos, é mãe de sete filhos, todos em idade escolar. Ela afirma que a comunidade está com medo diante da forma como as abordagens estão sendo feitas, sem diálogo prévio e, atualmente, com a presença de armamento. Ela destaca que, apesar de a comunidade querer buscar soluções, o espaço hoje representa um território de convivência e organização, com lideranças que eles respeitam.
"Eu falei ao senhor policial que, como autoridade aqui em Boa Vista, ele deveria respeitar a comunidade. Se uma pessoa chega, tem que conversar. Vamos entender o que ele diz e ele tem que entender o que nós dizemos. Se houver problemas, é preciso explicar. Nós não temos armas, só podemos nos defender falando. Queremos sair daqui com dignidade, mas este já é um espaço que formamos como comunidade", ressalta.
Falta diálogo e local para ficar
Os indígenas Warao moram no local desde 2017, quando ainda era um abrigo mantido pela Operação Acolhida, do governo federal. Quando o local foi desativado, cerca de 90 famílias preferiram continuar na área. "Queremos um lugar onde possamos viver tranquilos, sem perseguição, sem a ameaça de ter que sair de um dia para o outro", diz o cacique Euligio.
Ele ressalta que a comunidade precisa permanecer em Boa Vista, pois as crianças já estão estudando na cidade. "Se perde uma vaga, é muito difícil conseguir outra. Nós queremos uma vida melhor para nossos filhos, que estudem, tenham uma profissão e uma casa", completa.
Mesmo com tentativas de diálogo, como a elaboração de questionários para saber se as famílias preferem áreas urbanas ou rurais, não houve avanço, segundo o padre argentino Juan Carlos, que acompanha os Warao desde 2012, tanto na Venezuela quanto no Brasil.
O padre desenvolve ações de apoio espiritual e social, como celebrações religiosas, mediação com instituições e projetos de recreação infantil. Ele avalia que os migrantes têm interesse no diálogo e na busca de alternativas que garantam sua permanência em Boa Vista.
Vulnerabilidade na saúde
Desde que chegaram ao Brasil em 2015, os indígenas do povo Warao enfrentam um ciclo contínuo de violências e deslocamentos forçados, avalia Márcia Oliveira, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF-UFRR). "Eles foram o primeiro povo a sofrer uma ameaça de deportação em massa em 2016", relembra.
Essa tentativa só foi barrada após intensa mobilização da sociedade civil, do Ministério Público e de instituições internacionais. Mesmo assim, os Warao seguem sendo alvos de decisões unilaterais e sem consulta prévia, como o fechamento abrupto dos abrigos Janokoida (onde também viviam o povo E'ñepá) e Pintolândia (atual ocupação espontânea Yakera Ine), segundo Márcia Oliveira. "A Operação Acolhida decidiu pela desocupação da noite para o dia, sem comunicar, sem negociar, sem nenhuma possibilidade de evitar o fechamento", denuncia.
A pesquisadora destaca que a desativação do abrigo Pintolândia, em 2022, agravou ainda mais a crise humanitária. "Os povos indígenas foram totalmente desacolhidos, remanejados para abrigos de não indígenas [ou mistos], o que gerou uma crise tremenda entre as famílias", afirma a pesquisadora da UFRR. "Tudo é decidido de cima para baixo, de forma arbitrária, militarizada e sem respeitar a Convenção 169 da OIT."
As dificuldades logísticas e financeiras impossibilitam os migrantes da ocupação Yakera Ine de conseguirem por conta própria outro espaço para recomeçarem. Além disso, o grupo enfrenta condições sanitárias alarmantes de doenças graves, como tuberculose. Nas ruas, a situação pode se agravar ainda mais.
"O perigo que corremos é de um etnocídio, ou seja, a morte da cultura e da identidade por causa dessa ofensiva contra os deslocados", alerta Márcia.
Condição precária
Com o avanço do período de chuvas em Boa Vista, as estruturas dos barracos improvisados em Yakera Ine começam a se deteriorar mais rápido. A ocupação acumula água e se torna ainda mais insalubre, conforme testemunhou a Amazônia Real.
Sem condições sanitárias básicas, os casos de tuberculose aumentaram, relatam os indígenas. A reportagem presenciou a agente de saúde, Ana Alice de Souza, de 42 anos, saindo da ocupação após dar medicação para um paciente com mais de 70 anos.
"Tem muitos casos aqui. Alguns recorrentes. A gente tá tentando fazer esses dias um rastreio, pegar umas amostras pra gente ver como é que está", diz a servidora da Prefeitura de Boa Vista. Ela vai a ocupação todos os dias fazer o tratamento do idoso. "É muito insalubre aqui, pra ter ideia eu trago água. Não tem alimentação direito."
Os indígenas Warao tem um histórico de enfermidades que remonta os impactos da indústria petrolífera no Delta Orinoco, na Venezuela, que resultaram em contaminação de ambientes naturais provocando várias doenças, como tuberculose e infecções sexualmente transmissíveis, conforme relatório do ACNUR.
Sem atenção médica e baixas taxas de tratamento, os Warao estão entre os indígenas com maiores probabilidades de doenças infecto-contagiosas no país. São comuns relatos de casos de tuberculose na ocupação, conforme atestou a Amazônia Real. Estudos também apontam para aumento de casos de doenças sexualmente transmissíveis que indica a disparidade social sobre este grupo indígena.
Com ampla experiência em projetos de saúde pública no Brasil e no exterior, o consultor Paulo Meireles, formado em relações internacionais, atuou entre 2021 e 2024 no apoio à Unesco e ao Unaids, contribuindo com a elaboração e execução de estratégias locais de educação em saúde, prevenção e enfrentamento de HIV/Aids no contexto da Operação Acolhida. Segundo ele, a insalubridade enfrentada pela comunidade indígena Warao em ocupações improvisadas em Roraima acentua riscos já elevados. "Esses espaços, muitas vezes superlotados e sem condições básicas de higiene, tornam-se ambientes propícios para a disseminação de infecções e doenças evitáveis", alerta.
Meireles chama atenção para fatores que tornam os migrantes mais vulneráveis: "barreira linguística e o estigma social". Para ele essa população precisa ser acolhida com dignidade, ter acesso à saúde, educação, moradia e, se possível, a uma terra onde possam manter suas tradições. "Há um nível elevado de vulnerabilidade e a urgência de políticas públicas mais atentas a essas especificidades", disse.
O que dizem as autoridades
Procurada pela Amazônia Real, a Secretaria de Comunicação do Governo de Roraima disse que a maternidade faz parte do plano do governo federal e que, "como o terreno e o prédio já se tratam de áreas próprias do Estado de Roraima, técnicos da Secretaria de Infraestrutura, conferidos de atuação legal e pautados pelo interesse público, já estiveram, visitam e continuarão visitando regularmente o local para fazer o trabalho necessário de topografia e sondagem fotográfica do espaço ocupado irregularmente, e não precisam da autorização ou permissão de pessoas alheias à administração pública estadual."
O governo informou que, no dia 18 de março, funcionários da Setrabes (Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social) e da Sesau (Secretaria de Saúde) "realizaram a primeira escuta com os indígenas dessa ocupação"
Segundo a nota do governo, "a consulta faz parte de um compromisso legal para garantir que os povos indígenas sejam ouvidos antes da execução de projetos que possam impactar as famílias, conforme assegurado por convenções e tratados, reforçando a necessidade de diálogo entre os órgãos públicos e a população indígena".
O governo afirma que, "na ocasião [dia 18 de março], foi explicado de forma clara sobre a implantação de nova maternidade estadual, bem como os recursos envolvidos e o impacto social positivo para a população de Roraima, sendo beneficiados inclusive aquelas famílias. Na sequência, todos os líderes e grupos que ocupam o local participaram, explanando dúvidas e expectativas. Após a audiência pública e diante do acordado junto à comunidade, entre os dias 19 e 20 de março, foi realizado novo levantamento socioeconômico."
A Secom cita várias atividades feitas junto aos Warao e afirma que "as providências até o momento incluem interlocuções com órgãos competentes." (leia a nota completa)
A nota não informou sobre o grupo de pessoas que foi até a ocupação no último dia 18 (domingo) e nem por que policiais militares estiveram no local.
O MPF em Roraima disse que aguarda um posicionamento formal das instituições que participaram de reuniões para discutir a situação dos Warao para que seja encontrada "uma solução definitiva e adequada para este conflito, garantindo os direitos da comunidade Warao".
Entre estes órgãos estão Funai, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (SEPI) e órgãos do governo de Roraima, "com o propósito de assegurar o direito dos indígenas à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé em relação a qualquer medida que possa afetá-los."
O MPF disse que instaurou um procedimento interno específico para tratar da ameaça de desocupação desta comunidade indígena. "O objetivo principal desta atuação é mediar um diálogo construtivo entre os diversos órgãos competentes e os representantes dos indígenas Warao", diz a nota. O MPF não informou quando haverá uma nova reunião.
https://amazoniareal.com.br/ameacados-de-despejo-indigenas-warao-em-boa-vista-nao-sabem-para-onde-ir/
Eles relatam que no último domingo (18) policiais militares estiveram na ocupação sem informar o motivo. Os indígenas contaram à Amazônia Real que foram intimidados pelos policiais. Antes da chegada deles, duas pessoas desconhecidas dos indígenas visitaram o local, sem se identificarem, e fizeram "medições" da área.
Ao perceber que a ação estava sendo filmada pelos indígenas, um dos policiais reagiu de forma intimidadora. "Tá filmando por que? Tá doido?! Posso te processar!", ameaçou o PM enquanto caminhava em direção a um dos Warao. [vídeo]
Na última terça-feira (20), a Amazônia Real esteve na ocupação, quando presenciou o clima de medo das famílias de serem expulsas e da incerteza de não ter para onde ir. Em abril, a expectativa de remoção do local já havia sido acompanhada pela reportagem.
Desde janeiro deste ano, os Warao recebem repetidos comunicados não oficiais de representantes do governo de Roraima de que precisam sair do local. As notícias têm causado estresse e abalo na saúde mental das famílias que moram na ocupação. O primeiro aviso aconteceu no dia 24 de janeiro, quando foram informados que teriam "40 dias para sair do terreno", conforme relatos das lideranças indígenas.
Um dos líderes da ocupação, Euligio Baez, que pronuncia o português com dificuldade, disse que o primeiro comunicado aconteceu de forma oral por dois servidores que se identificaram serem da Secretaria Estadual de Saúde (Sesau) e estavam escoltados com policiais do Bope. "Pedimos documento, falaram que não tinha, tinha que imprimir", contou a liderança Warao.
Após essa comunicação informal, os caciques Warao procuraram o Ministério Público Federal. Segundo Euligio, o órgão conseguiu prorrogar esse prazo para o dia 30 de abril.
"Quando fomos no Ministério Público falaram que tinha que ter uma consulta aqui na comunidade, para escutar o povo. O doutor [referindo-se ao procurador da república Alisson Marugal] disse que tinha que ter uma consulta antes", lembrou Euligio.
Nessa altura, com o MPF como mediador do conflito, um ofício foi enviado pela Secretaria Estadual de Saúde para o procurador pedindo um "plano de desocupação" com "diálogo pacífico". Entretanto, na prática, atualmente, os indígenas enfrentam a pressão de agentes públicos ao entrarem sem comunicação no local e com atos de intimidação, como mostrado na filmagem de domingo passado.
"Estávamos esperando que no dia 30 viesse alguma autoridade, como falaram. Mas ninguém apareceu", relata Euligio. Após a primeira comunicação de desocupação, os indígenas receberam a professora Priscila Cardoso, do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Federal de Roraima (UFRR), com outras autoridades para ouvir a proposta da comunidade.
À Amazônia Real, Priscila Cardoso ressaltou as dificuldades que os indígenas Warao já enfrentam, como insegurança alimentar, falta de saneamento e abandono por parte do poder público. Ela alerta que esta situação de vulnerabilidade pode tornar-se ainda mais grave as condições dos indígenas.
"A tragédia já está acontecendo. Mas ela pode escalar para algo ainda mais grave, se essas violações continuarem invisibilizadas. Não há diálogo real quando o governo ignora a mediação do MPF e entra à força em território indígena", avaliou Priscila. Ela lembrou que é "dever do Estado de realizar consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas" toda vez que for preciso tomar medidas que afetem esse povo.
Priscila Cardoso avalia que é preciso respeitar o processo e o tempo da escuta da comunidade. Segundo ela, a escuta é feita pelo Observatório de Direitos Humanos, Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
"Não é o tempo do Estado, é o tempo desses indígenas. Existe um risco sim de que as pessoas acabem sendo colocadas na rua, mas isso é algo que nós vamos buscar nas últimas instâncias para não acontecer".
Conforme Priscila, se os Warao forem despejados, o Observatório vai buscar apoio de organizações internacionais de direitos humanos, porque o que está acontecendo viola direitos fundamentais básicos dos povos indígenas.
"Eu acredito que é um processo violento por parte do Estado que pode ocorrer de os indígenas serem retirados de forma truculenta", criticou a postura do governo.
'Se cacique não tivesse se afastado teria apanhado'
Outra liderança da comunidade, o cacique Jimenez Nunez [ele que filmou a ação da PM no domingo], disse que eles sempre se sentem hostilizados com as abordagens da polícia.
"Eles chegaram bravos, já [prontos] para bater. Nós queremos diálogo, mas com a polícia não tem muito diálogo. Não sabemos qual instituição mandou eles pra cá, se foi a Secretaria de Saúde, a empresa. Qual a empresa? Não sabemos quem foi", questiona. "Eu fiquei com medo, porque já vi policiais baterem com arma", relembra.
Apesar dos indígenas terem questionado os policiais sobre o motivo das suas presenças, eles foram ignorados. Os policiais preferiram se dirigir apenas a uma estudante de mestrado não indígena que faz trabalho voluntário na comunidade e que estava presente no momento do episódio.
Benedetta Spadoni, que é italiana, disse à Amazônia Real que os policiais ficaram na entrada, enquanto os outros [homens com equipamentos topográficos] começaram a fazer o levantamento, conta. Segundo ela, um dos policiais não demonstrou interesse em explicar para os indígenas, mas sim, apenas a ela, em português.
"Tentei traduzir um pouco para tranquilizar, dizendo que não iam tirar eles de lá naquele dia. Os policiais deviam ter feito uma abordagem mais cuidadosa. Podiam se comunicar melhor e ser mais sensíveis com o uso das palavras. Acho que se podia evitar serem agressivos".
Euligio contou que se o cacique [Jimenez] não tivesse se afastado dos policiais a tempo a liderança teria apanhado".
"As crianças, as mulheres, todos ficaram com muito medo. A gente sabe o que já aconteceu com outros povos indígenas. A polícia chega para agredir", contou à reportagem.
Esta foi a segunda vez, em um período de uma semana, que homens entraram sem permissão ou sem identificação na ocupação Yakera Ine para realizar serviços topográficos, segundo Euligio Baez.
No dia 13 de maio, a Amazônia Real recebeu um outro vídeo de uma situação semelhante ocorrida na semana passada, onde após medirem o muro, homens entram em um veículo da Secretaria de Infraestrutura (Seinf) e saem após serem abordados pelos caciques. A maneira de agir foi a mesma do último domingo, só que desta última vez com a presença da PM e agressividade.
"Eles não conversaram com ninguém. Só disseram que o lugar não era nosso. E nós estamos aqui desde 2017", afirma o cacique Euligio.
Após a chegada de mais moradores e da mediação feita pela voluntária, os policiais deixaram o local. "Explicamos que estamos em diálogo com a Funai, o Ministério Público Federal e o Estadual. Não somos contra a construção da maternidade, só queremos outro espaço com dignidade", conclui.
Carmen Ramirez, de 39 anos, é mãe de sete filhos, todos em idade escolar. Ela afirma que a comunidade está com medo diante da forma como as abordagens estão sendo feitas, sem diálogo prévio e, atualmente, com a presença de armamento. Ela destaca que, apesar de a comunidade querer buscar soluções, o espaço hoje representa um território de convivência e organização, com lideranças que eles respeitam.
"Eu falei ao senhor policial que, como autoridade aqui em Boa Vista, ele deveria respeitar a comunidade. Se uma pessoa chega, tem que conversar. Vamos entender o que ele diz e ele tem que entender o que nós dizemos. Se houver problemas, é preciso explicar. Nós não temos armas, só podemos nos defender falando. Queremos sair daqui com dignidade, mas este já é um espaço que formamos como comunidade", ressalta.
Falta diálogo e local para ficar
Os indígenas Warao moram no local desde 2017, quando ainda era um abrigo mantido pela Operação Acolhida, do governo federal. Quando o local foi desativado, cerca de 90 famílias preferiram continuar na área. "Queremos um lugar onde possamos viver tranquilos, sem perseguição, sem a ameaça de ter que sair de um dia para o outro", diz o cacique Euligio.
Ele ressalta que a comunidade precisa permanecer em Boa Vista, pois as crianças já estão estudando na cidade. "Se perde uma vaga, é muito difícil conseguir outra. Nós queremos uma vida melhor para nossos filhos, que estudem, tenham uma profissão e uma casa", completa.
Mesmo com tentativas de diálogo, como a elaboração de questionários para saber se as famílias preferem áreas urbanas ou rurais, não houve avanço, segundo o padre argentino Juan Carlos, que acompanha os Warao desde 2012, tanto na Venezuela quanto no Brasil.
O padre desenvolve ações de apoio espiritual e social, como celebrações religiosas, mediação com instituições e projetos de recreação infantil. Ele avalia que os migrantes têm interesse no diálogo e na busca de alternativas que garantam sua permanência em Boa Vista.
Vulnerabilidade na saúde
Desde que chegaram ao Brasil em 2015, os indígenas do povo Warao enfrentam um ciclo contínuo de violências e deslocamentos forçados, avalia Márcia Oliveira, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras (PPGSOF-UFRR). "Eles foram o primeiro povo a sofrer uma ameaça de deportação em massa em 2016", relembra.
Essa tentativa só foi barrada após intensa mobilização da sociedade civil, do Ministério Público e de instituições internacionais. Mesmo assim, os Warao seguem sendo alvos de decisões unilaterais e sem consulta prévia, como o fechamento abrupto dos abrigos Janokoida (onde também viviam o povo E'ñepá) e Pintolândia (atual ocupação espontânea Yakera Ine), segundo Márcia Oliveira. "A Operação Acolhida decidiu pela desocupação da noite para o dia, sem comunicar, sem negociar, sem nenhuma possibilidade de evitar o fechamento", denuncia.
A pesquisadora destaca que a desativação do abrigo Pintolândia, em 2022, agravou ainda mais a crise humanitária. "Os povos indígenas foram totalmente desacolhidos, remanejados para abrigos de não indígenas [ou mistos], o que gerou uma crise tremenda entre as famílias", afirma a pesquisadora da UFRR. "Tudo é decidido de cima para baixo, de forma arbitrária, militarizada e sem respeitar a Convenção 169 da OIT."
As dificuldades logísticas e financeiras impossibilitam os migrantes da ocupação Yakera Ine de conseguirem por conta própria outro espaço para recomeçarem. Além disso, o grupo enfrenta condições sanitárias alarmantes de doenças graves, como tuberculose. Nas ruas, a situação pode se agravar ainda mais.
"O perigo que corremos é de um etnocídio, ou seja, a morte da cultura e da identidade por causa dessa ofensiva contra os deslocados", alerta Márcia.
Condição precária
Com o avanço do período de chuvas em Boa Vista, as estruturas dos barracos improvisados em Yakera Ine começam a se deteriorar mais rápido. A ocupação acumula água e se torna ainda mais insalubre, conforme testemunhou a Amazônia Real.
Sem condições sanitárias básicas, os casos de tuberculose aumentaram, relatam os indígenas. A reportagem presenciou a agente de saúde, Ana Alice de Souza, de 42 anos, saindo da ocupação após dar medicação para um paciente com mais de 70 anos.
"Tem muitos casos aqui. Alguns recorrentes. A gente tá tentando fazer esses dias um rastreio, pegar umas amostras pra gente ver como é que está", diz a servidora da Prefeitura de Boa Vista. Ela vai a ocupação todos os dias fazer o tratamento do idoso. "É muito insalubre aqui, pra ter ideia eu trago água. Não tem alimentação direito."
Os indígenas Warao tem um histórico de enfermidades que remonta os impactos da indústria petrolífera no Delta Orinoco, na Venezuela, que resultaram em contaminação de ambientes naturais provocando várias doenças, como tuberculose e infecções sexualmente transmissíveis, conforme relatório do ACNUR.
Sem atenção médica e baixas taxas de tratamento, os Warao estão entre os indígenas com maiores probabilidades de doenças infecto-contagiosas no país. São comuns relatos de casos de tuberculose na ocupação, conforme atestou a Amazônia Real. Estudos também apontam para aumento de casos de doenças sexualmente transmissíveis que indica a disparidade social sobre este grupo indígena.
Com ampla experiência em projetos de saúde pública no Brasil e no exterior, o consultor Paulo Meireles, formado em relações internacionais, atuou entre 2021 e 2024 no apoio à Unesco e ao Unaids, contribuindo com a elaboração e execução de estratégias locais de educação em saúde, prevenção e enfrentamento de HIV/Aids no contexto da Operação Acolhida. Segundo ele, a insalubridade enfrentada pela comunidade indígena Warao em ocupações improvisadas em Roraima acentua riscos já elevados. "Esses espaços, muitas vezes superlotados e sem condições básicas de higiene, tornam-se ambientes propícios para a disseminação de infecções e doenças evitáveis", alerta.
Meireles chama atenção para fatores que tornam os migrantes mais vulneráveis: "barreira linguística e o estigma social". Para ele essa população precisa ser acolhida com dignidade, ter acesso à saúde, educação, moradia e, se possível, a uma terra onde possam manter suas tradições. "Há um nível elevado de vulnerabilidade e a urgência de políticas públicas mais atentas a essas especificidades", disse.
O que dizem as autoridades
Procurada pela Amazônia Real, a Secretaria de Comunicação do Governo de Roraima disse que a maternidade faz parte do plano do governo federal e que, "como o terreno e o prédio já se tratam de áreas próprias do Estado de Roraima, técnicos da Secretaria de Infraestrutura, conferidos de atuação legal e pautados pelo interesse público, já estiveram, visitam e continuarão visitando regularmente o local para fazer o trabalho necessário de topografia e sondagem fotográfica do espaço ocupado irregularmente, e não precisam da autorização ou permissão de pessoas alheias à administração pública estadual."
O governo informou que, no dia 18 de março, funcionários da Setrabes (Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social) e da Sesau (Secretaria de Saúde) "realizaram a primeira escuta com os indígenas dessa ocupação"
Segundo a nota do governo, "a consulta faz parte de um compromisso legal para garantir que os povos indígenas sejam ouvidos antes da execução de projetos que possam impactar as famílias, conforme assegurado por convenções e tratados, reforçando a necessidade de diálogo entre os órgãos públicos e a população indígena".
O governo afirma que, "na ocasião [dia 18 de março], foi explicado de forma clara sobre a implantação de nova maternidade estadual, bem como os recursos envolvidos e o impacto social positivo para a população de Roraima, sendo beneficiados inclusive aquelas famílias. Na sequência, todos os líderes e grupos que ocupam o local participaram, explanando dúvidas e expectativas. Após a audiência pública e diante do acordado junto à comunidade, entre os dias 19 e 20 de março, foi realizado novo levantamento socioeconômico."
A Secom cita várias atividades feitas junto aos Warao e afirma que "as providências até o momento incluem interlocuções com órgãos competentes." (leia a nota completa)
A nota não informou sobre o grupo de pessoas que foi até a ocupação no último dia 18 (domingo) e nem por que policiais militares estiveram no local.
O MPF em Roraima disse que aguarda um posicionamento formal das instituições que participaram de reuniões para discutir a situação dos Warao para que seja encontrada "uma solução definitiva e adequada para este conflito, garantindo os direitos da comunidade Warao".
Entre estes órgãos estão Funai, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Secretaria de Estado dos Povos Indígenas (SEPI) e órgãos do governo de Roraima, "com o propósito de assegurar o direito dos indígenas à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé em relação a qualquer medida que possa afetá-los."
O MPF disse que instaurou um procedimento interno específico para tratar da ameaça de desocupação desta comunidade indígena. "O objetivo principal desta atuação é mediar um diálogo construtivo entre os diversos órgãos competentes e os representantes dos indígenas Warao", diz a nota. O MPF não informou quando haverá uma nova reunião.
https://amazoniareal.com.br/ameacados-de-despejo-indigenas-warao-em-boa-vista-nao-sabem-para-onde-ir/
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