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Desmatamento para energia renovável aumenta pressão sobre a Caatinga
02/09/2025
Autor: Adriana Amâncio
Fonte: Mongabay - https://brasil.mongabay.com/
Desmatamento para energia renovável aumenta pressão sobre a Caatinga
Ao longo dos anos, a produção de energias renováveis tem ampliado sua participação como vetor de pressão sobre a Caatinga. Números aos quais a Mongabay teve acesso com exclusividade revelam esse aumento. Segundo o MapBiomas, entre 2020 e 2024, a área desmatada na Caatinga para a instalação de parques eólicos e solares cresceu 558%.
No primeiro ano da série, a área desmatada foi de 503 hectares; no último ano, passou para 3.315 hectares. Nesse tempo, 12.850 hectares de vegetação nativa foram cortados. A média anual de desmatamento no período é de 2 mil hectares, ritmo que, se for mantido, em dez anos, a perda total de vegetação pode chegar a 40 mil hectares.
O pesquisador do MapBiomas Caatinga, Nerivaldo Santos, afirma que "a agropecuária continua sendo a atividade que exerce maior pressão sobre o bioma. No entanto, a cada ano, as renováveis têm ampliado a pressão, algo que tem chamado a atenção dos pesquisadores", observa.
Ele explica que esses dados têm uma margem de omissão de 5%, "o que é considerada baixa, levando em conta que as áreas são analisadas 12 vezes. Se em um mês algo não foi percebido, porque havia uma nuvem naquela área, no mês seguinte temos a oportunidade de checar".
Embora as áreas ocupadas por eólicas em comparação com as áreas de agropecuária sejam pequenas, o que está em jogo aqui são os impactos que esses empreendimentos causam às comunidades. Segundo Nerivaldo, "não é só a promessa de desenvolvimento e de empregos que deve ser levada em conta; se colocar na balança esses impactos sociais negativos, esse dado é alarmante".
Novos empreendimentos, velhas práticas
A Bahia é o segundo estado que mais produz energia eólica, atrás do Rio Grande do Norte, conforme o ranking da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica). São 312 usinas eólicas, com previsão de construção de outras 63, o que totalizará 375 grandes empreendimentos que devem rasgar a Caatinga sertão adentro nos próximos anos. Os investimentos no setor têm se intensificado, dando claros indícios de que o estado marcha para ocupar o primeiro lugar tanto na oferta de equipamentos para o setor quanto na construção de usinas.
Em 1992, o Brasil recebeu o primeiro aerogerador com capacidade para produção de 225 kW. O equipamento, fruto de uma parceria entre o Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) e a Companhia Energética de Pernambuco (Celpe), foi instalado em Fernando de Noronha, Pernambuco. Com os históricos apagões de 2002, foi criado o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) para impulsionar outras matrizes energéticas, entre elas a eólica.
O Proinfa promoveu avanços tecnológicos e regulatórios, o que desembocou na instalação de 111 novas usinas eólicas em 2015, um incremento de 2,75 GW, segundo a ABEEólica. Desde então, o Nordeste mantém o protagonismo na geração de energia em relação às demais regiões brasileiras, passando de uma produção de 9,36 TWh (terawatt-hora), em 2015, para 95,24 TWh, em 2024.
Especialistas atribuem à ocorrência de ventos alísios e unidirecionais, típicos do Nordeste, o grande potencial para a produção de energia eólica. Os ventos alísios são um tipo de vento constante e úmido. Na região Nordeste, eles ainda são unidirecionais, o que facilita a produção por dispensar ajuste do equipamento para captação.
Geovana Freitas, pesquisadora e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), estuda as injustiças sociais aplicadas à paisagem. Ao lado de uma equipe de pesquisadores, há anos ela acompanha o avanço de usinas eólicas na região de Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina, Bahia. O resumo dos seus achados foram publicados em um estudo.
Segundo ela, as análises comprovam que, após implantada, uma usina chega a desmatar 200 mil m², "impactando tanto a paisagem que suas intervenções afetam a vida de milhares de pessoas." Ela assegura ainda que, assim como a hidrelétrica, a energia eólica tem um lado positivo e outro negativo.
"Vem com discurso de sustentabilidade, de salvação da humanidade, de descarbonização do planeta, mas a gente sabe que tem sido um instrumento de poder, que se materializa na paisagem. Um projeto de governo que está a serviço do capital externo, porque a gente sabe que essas empresas são europeias", diz Geovana.
Outros dois pontos relevantes do seu estudo tratam de como o preconceito contra a Caatinga tem sido vantajoso para essas empresas e sobre as mudanças de leis para favorecer a instalação dos empreendimentos.
A diferença de preços praticados pelas empresas em cada bioma chega a ser dez vezes maior. No caso da Caatinga, a ideia preconceituosa de que o bioma é pobre e sem vida pesa tanto que os valores pagos pelos terrenos no Semiárido são bem baixos. "Eles chegam a oferecer R$ 10 mil para colocar um aerogerador no Rio Grande do Sul e o dono diz 'não, não compensa'. Mas oferecem R$ 1 mil no Semiárido, e a pessoa acaba aceitando. O discurso da sustentabilidade tem sido injusto, apoiando-se em práticas espaciais excludentes, sem diálogo e sem participação social", exemplifica Geovana.
Os licenciamentos para os parques eólicos estão apoiados na resolução n. 279 de 2001 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que os coloca como sendo de "pequeno impacto". Com isso, as próprias prefeituras podem cuidar de grande parte dessas documentações. Os órgãos estaduais e federais só são mobilizados quando existem "problemas maiores" que precisam ser resolvidos em outras esferas. Como, por exemplo, a alteração de alguns limites justamente para que as obras possam ser realizadas.
Em suas análises científicas, a pesquisadora se deparou com o caso de uma unidade de conservação (UC) de proteção integral que teve seus limites alterados para dar passagem aos aerogeradores. "O Parque Estadual Morro do Chapéu foi reconfigurado. Ele não diminuiu de tamanho, só mudou o formato. Eles trocaram as áreas [para livrar] uma área potencial para instalação de aerogerador", informa Geovana.
Ela se refere ao parque criado em 1998 no município homônimo de Morro do Chapéu, medindo 46 mil hectares. O intuito da unidade é preservar uma importante área de transição entre Caatinga e Cerrado, com diversas espécies raras de fauna e flora, além de ser rota da onça-pintada.
Em 2013, os limites do Parque Estadual Morro do Chapéu foram definidos pelo Decreto estadual 12.924. O novo traçado acrescentou mais de 5 mil hectares à área, que, ao final, ficou com 51.955 hectares, sob o argumento de que a mudança foi "a introdução de áreas com grande biodiversidade e monumentos geológicos, que antes estavam desprotegidos".
Quatro anos mais tarde, em 2015, quando os empreendimentos eólicos aportaram no Brasil com mais ênfase, ficou claro que a reconfiguração era uma forma de acomodar tais empresas. "O governo reorganizou a paisagem para dar conta de sua pauta energética, que iria chegar por meio das empresas. Estrategicamente, não perdeu área da unidade de conservação. Até aumentaram, mas, em direção a áreas do município que não fossem de interesse eólico", resume Geovana.
Com a reconfiguração da unidade, observa ainda a pesquisadora, a rota da onça-pintada foi alterada. Ela passou a circular por uma comunidade próxima ao empreendimento. "Uma pessoa que eu entrevistei em campo falou: 'olha, meu galinheiro está em risco, porque a onça que não passava aqui agora tá passando'. Eu fiquei chocada, pois, apesar dessa comunidade estar a 300 metros de um aerogerador, não tinha acesso à energia elétrica", complementa a pesquisadora.
Desmatamento da Caatinga no Matopiba vem crescendo
O agricultor Jonas Pereira dos Santos, de 59 anos, é um homem quilombola, que, desde que nasceu, vive nos quilombos Riacho da Sacutiaba e Sacutiaba, no município de Wanderley, a 781 km de Salvador. Apesar da comunidade ser reconhecida como remanescente de quilombo, em 2004, pela Fundação Cultural Palmares, e ter o seu território reconhecido e delimitado em pouco mais de 12 mil hectares pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), as terras nunca foram demarcadas.
Wanderley fica no sudoeste da Bahia, na área do Matopiba, região de transição entre a Caatinga e o Cerrado formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que representa a nova fronteira agrícola do agronegócio.
Apesar do Cerrado ser o bioma mais pressionado nessa área, dados exclusivos fornecidos pelo MapBiomas à Mongabay revelam que o desmatamento da Caatinga no Matopiba aumentou 143% entre 2019 e 2024. A área desmatada em 2024 é 2,4 vezes maior do que a registrada em 2019, primeiro ano da série.
Essa atividade intensiva foi notada por Jonas, que "lida com a terra desde quando começou a pegar entendimento, quando tinha uns 8 anos". A produção sempre foi para subsistência da família, formada por esposa e quatro filhos. "Às vezes, quando o milho dá bom, eu vendo um saco", explica. Além do milho, tem feijão-de-corda, abóbora, melancia e mandioca.
Ele conta que sempre viveu cercado pela imensidão de água do Rio Grande, principal fonte hídrica do quilombo, e "pela fartura do braço d'água, que trazia o recurso precioso do rio pra perto da roça, garantindo a produção de alimentos e a criação animal".
Nos últimos oito anos, o agricultor conta que viu as condições no quilombo mudarem radicalmente. "Veio uma firma, uma fazenda de um lado, e outra do outro. Uma planta feijão, milho, soja e capim; e a outra planta capim e cria gado, e o quilombo ficou no meio", explica. O quilombola se refere às fazendas Conceição e Boca do Taboleiro.
Depois disso, o líder do quilombo conta que viu o nível do rio baixar e os braços ficarem com água só até o mês de agosto. "Uma das fazendas usa pivô de irrigação e construiu um reservatório que tá puxando muita água do rio", comenta. Ele se queixa também da redução das caças, antes abundantes na área. "Antes, a gente via tatu, tatu-bola, caititu, porco-do-mato, veado, tá sumindo bastante. Tá bem fraco mesmo", lamenta.
As pulverizações aéreas de agrotóxicos, ainda segundo ele, "passam por cima do Rio Grande e queimam os lodos, as mata ciliares; deixa um fedor grande. O avião passa por cima de quem mora perto; passa nas plantações, morre milho, morre feijão, nenhuma [planta] aguenta, prejudica muito", reclama Jonas.
Com pouca caça e pouca água, Jonas diz que "estamos nos virando como podemos. Pesca um peixe, uma caça aqui e acolá, quando aparece, e farinha mandioca e milho. E a água, a gente usa pouco, pois não plantamos nada grave [com forte impacto ambiental]", relata.
Neste momento, Jonas trava uma disputa com o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) contra uma multa aplicada, em abril de 2023, pelo órgão em função do desmate de 3,30 m³ de aroeira, um tipo de madeira. No documento oficial do órgão ambiental, consta que o conflito surgiu em função de uma disputa de terra entre Jonas e outra pessoa da mesma família, envolvendo a área da Fazenda Nova, que fica no território do quilombo.
A disputa chegou à Justiça, o que levou Jonas a erguer uma cerca para delimitar a área de uso comum do quilombo, diz um trecho do documento. Na construção da cerca, segundo o Inema, "foram utilizados 850 m³ madeira, em grande parte aroeira, e também havia uma porção de angico, espécies raras protegidas por lei", diz o documento. Após a fiscalização de campo, o órgão ambiental aplicou multa no valor de R$ 1.200.
A associação do quilombo entrou com um recurso, alegando que "os locais do corte e aplicação da madeira protegida por lei são inseridos nas terras reconhecidas e declaradas, segundo a Portaria n. 155 do Incra, como terras da Comunidade Remanescente de Quilombo Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba".
No documento, os quilombolas argumentam também que, por se tratar de um território tradicional, "não existem posses ou propriedades particulares dentro do território, e sim, arranjos e acordos comunitários".
No recurso, a associação pondera que "o corte e a aplicação dos 3,30 m³ de madeira protegida por lei foram realizados ao mesmo tempo em que ocorreu o desmatamento autorizado de 2.978 hectares de vegetação nativa na fazenda vizinha 'Conceição' e o desmatamento autorizado de 1.304 hectares de vegetação nativa na fazenda vizinha 'Boca do Tabuleiro'. Diante disso, questiona a "razoabilidade da multa aplicada contra elas enquanto ficam impunes as áreas vizinhas que causaram danos um tanto maiores".
Por fim, os quilombolas relatam que "antes da autuação em curso, as comunidades não tinham conhecimento de que não poderiam aproveitar a madeira da aroeira para fins de manejos necessários no território próprio delas" e pedem um abatimento de 30% no valor da multa, bem como o parcelamento da multa em 12 vezes. Ambos os pleitos, segundo consta no recurso, estão amparados no Decreto 14.024, que regulamenta a Política de Meio Ambiente e de Proteção à Diversidade do Estado da Bahia.
O coordenador Geral da Agência 10envolvimento e diácono permanente da Diocese de Barreiras, organização que apoia os quilombos, Martin Mayr, afirma que "o modelo aplicado ao Cerrado vem avançando para a Caatinga. Esse desmatamento que avança na Caatinga é justamente nas áreas que podem ser irrigadas".
Ele avalia que o Inema age com pesos diferentes em relação aos quilombolas e aos grandes empresários."Os desmatamentos nas propriedades privadas, em grande parte, são autorizados, mas não se fiscaliza o que acontece depois. Desmataram, deixaram de pé as espécies nativas, mas em segundo plano desmataram as nativas e o órgão fiscalizador não vê isso", observa.
Fizemos contato por telefone e por email com o Inema, perguntando se o órgão gostaria de comentar as questões aqui citadas, mas não obtivemos retorno até o fechamento desta reportagem.
https://brasil.mongabay.com/2025/09/desmatamento-para-energia-renovavel-aumenta-pressao-sobre-a-caatinga/
Ao longo dos anos, a produção de energias renováveis tem ampliado sua participação como vetor de pressão sobre a Caatinga. Números aos quais a Mongabay teve acesso com exclusividade revelam esse aumento. Segundo o MapBiomas, entre 2020 e 2024, a área desmatada na Caatinga para a instalação de parques eólicos e solares cresceu 558%.
No primeiro ano da série, a área desmatada foi de 503 hectares; no último ano, passou para 3.315 hectares. Nesse tempo, 12.850 hectares de vegetação nativa foram cortados. A média anual de desmatamento no período é de 2 mil hectares, ritmo que, se for mantido, em dez anos, a perda total de vegetação pode chegar a 40 mil hectares.
O pesquisador do MapBiomas Caatinga, Nerivaldo Santos, afirma que "a agropecuária continua sendo a atividade que exerce maior pressão sobre o bioma. No entanto, a cada ano, as renováveis têm ampliado a pressão, algo que tem chamado a atenção dos pesquisadores", observa.
Ele explica que esses dados têm uma margem de omissão de 5%, "o que é considerada baixa, levando em conta que as áreas são analisadas 12 vezes. Se em um mês algo não foi percebido, porque havia uma nuvem naquela área, no mês seguinte temos a oportunidade de checar".
Embora as áreas ocupadas por eólicas em comparação com as áreas de agropecuária sejam pequenas, o que está em jogo aqui são os impactos que esses empreendimentos causam às comunidades. Segundo Nerivaldo, "não é só a promessa de desenvolvimento e de empregos que deve ser levada em conta; se colocar na balança esses impactos sociais negativos, esse dado é alarmante".
Novos empreendimentos, velhas práticas
A Bahia é o segundo estado que mais produz energia eólica, atrás do Rio Grande do Norte, conforme o ranking da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica). São 312 usinas eólicas, com previsão de construção de outras 63, o que totalizará 375 grandes empreendimentos que devem rasgar a Caatinga sertão adentro nos próximos anos. Os investimentos no setor têm se intensificado, dando claros indícios de que o estado marcha para ocupar o primeiro lugar tanto na oferta de equipamentos para o setor quanto na construção de usinas.
Em 1992, o Brasil recebeu o primeiro aerogerador com capacidade para produção de 225 kW. O equipamento, fruto de uma parceria entre o Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) e a Companhia Energética de Pernambuco (Celpe), foi instalado em Fernando de Noronha, Pernambuco. Com os históricos apagões de 2002, foi criado o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) para impulsionar outras matrizes energéticas, entre elas a eólica.
O Proinfa promoveu avanços tecnológicos e regulatórios, o que desembocou na instalação de 111 novas usinas eólicas em 2015, um incremento de 2,75 GW, segundo a ABEEólica. Desde então, o Nordeste mantém o protagonismo na geração de energia em relação às demais regiões brasileiras, passando de uma produção de 9,36 TWh (terawatt-hora), em 2015, para 95,24 TWh, em 2024.
Especialistas atribuem à ocorrência de ventos alísios e unidirecionais, típicos do Nordeste, o grande potencial para a produção de energia eólica. Os ventos alísios são um tipo de vento constante e úmido. Na região Nordeste, eles ainda são unidirecionais, o que facilita a produção por dispensar ajuste do equipamento para captação.
Geovana Freitas, pesquisadora e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), estuda as injustiças sociais aplicadas à paisagem. Ao lado de uma equipe de pesquisadores, há anos ela acompanha o avanço de usinas eólicas na região de Morro do Chapéu, na Chapada Diamantina, Bahia. O resumo dos seus achados foram publicados em um estudo.
Segundo ela, as análises comprovam que, após implantada, uma usina chega a desmatar 200 mil m², "impactando tanto a paisagem que suas intervenções afetam a vida de milhares de pessoas." Ela assegura ainda que, assim como a hidrelétrica, a energia eólica tem um lado positivo e outro negativo.
"Vem com discurso de sustentabilidade, de salvação da humanidade, de descarbonização do planeta, mas a gente sabe que tem sido um instrumento de poder, que se materializa na paisagem. Um projeto de governo que está a serviço do capital externo, porque a gente sabe que essas empresas são europeias", diz Geovana.
Outros dois pontos relevantes do seu estudo tratam de como o preconceito contra a Caatinga tem sido vantajoso para essas empresas e sobre as mudanças de leis para favorecer a instalação dos empreendimentos.
A diferença de preços praticados pelas empresas em cada bioma chega a ser dez vezes maior. No caso da Caatinga, a ideia preconceituosa de que o bioma é pobre e sem vida pesa tanto que os valores pagos pelos terrenos no Semiárido são bem baixos. "Eles chegam a oferecer R$ 10 mil para colocar um aerogerador no Rio Grande do Sul e o dono diz 'não, não compensa'. Mas oferecem R$ 1 mil no Semiárido, e a pessoa acaba aceitando. O discurso da sustentabilidade tem sido injusto, apoiando-se em práticas espaciais excludentes, sem diálogo e sem participação social", exemplifica Geovana.
Os licenciamentos para os parques eólicos estão apoiados na resolução n. 279 de 2001 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que os coloca como sendo de "pequeno impacto". Com isso, as próprias prefeituras podem cuidar de grande parte dessas documentações. Os órgãos estaduais e federais só são mobilizados quando existem "problemas maiores" que precisam ser resolvidos em outras esferas. Como, por exemplo, a alteração de alguns limites justamente para que as obras possam ser realizadas.
Em suas análises científicas, a pesquisadora se deparou com o caso de uma unidade de conservação (UC) de proteção integral que teve seus limites alterados para dar passagem aos aerogeradores. "O Parque Estadual Morro do Chapéu foi reconfigurado. Ele não diminuiu de tamanho, só mudou o formato. Eles trocaram as áreas [para livrar] uma área potencial para instalação de aerogerador", informa Geovana.
Ela se refere ao parque criado em 1998 no município homônimo de Morro do Chapéu, medindo 46 mil hectares. O intuito da unidade é preservar uma importante área de transição entre Caatinga e Cerrado, com diversas espécies raras de fauna e flora, além de ser rota da onça-pintada.
Em 2013, os limites do Parque Estadual Morro do Chapéu foram definidos pelo Decreto estadual 12.924. O novo traçado acrescentou mais de 5 mil hectares à área, que, ao final, ficou com 51.955 hectares, sob o argumento de que a mudança foi "a introdução de áreas com grande biodiversidade e monumentos geológicos, que antes estavam desprotegidos".
Quatro anos mais tarde, em 2015, quando os empreendimentos eólicos aportaram no Brasil com mais ênfase, ficou claro que a reconfiguração era uma forma de acomodar tais empresas. "O governo reorganizou a paisagem para dar conta de sua pauta energética, que iria chegar por meio das empresas. Estrategicamente, não perdeu área da unidade de conservação. Até aumentaram, mas, em direção a áreas do município que não fossem de interesse eólico", resume Geovana.
Com a reconfiguração da unidade, observa ainda a pesquisadora, a rota da onça-pintada foi alterada. Ela passou a circular por uma comunidade próxima ao empreendimento. "Uma pessoa que eu entrevistei em campo falou: 'olha, meu galinheiro está em risco, porque a onça que não passava aqui agora tá passando'. Eu fiquei chocada, pois, apesar dessa comunidade estar a 300 metros de um aerogerador, não tinha acesso à energia elétrica", complementa a pesquisadora.
Desmatamento da Caatinga no Matopiba vem crescendo
O agricultor Jonas Pereira dos Santos, de 59 anos, é um homem quilombola, que, desde que nasceu, vive nos quilombos Riacho da Sacutiaba e Sacutiaba, no município de Wanderley, a 781 km de Salvador. Apesar da comunidade ser reconhecida como remanescente de quilombo, em 2004, pela Fundação Cultural Palmares, e ter o seu território reconhecido e delimitado em pouco mais de 12 mil hectares pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), as terras nunca foram demarcadas.
Wanderley fica no sudoeste da Bahia, na área do Matopiba, região de transição entre a Caatinga e o Cerrado formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que representa a nova fronteira agrícola do agronegócio.
Apesar do Cerrado ser o bioma mais pressionado nessa área, dados exclusivos fornecidos pelo MapBiomas à Mongabay revelam que o desmatamento da Caatinga no Matopiba aumentou 143% entre 2019 e 2024. A área desmatada em 2024 é 2,4 vezes maior do que a registrada em 2019, primeiro ano da série.
Essa atividade intensiva foi notada por Jonas, que "lida com a terra desde quando começou a pegar entendimento, quando tinha uns 8 anos". A produção sempre foi para subsistência da família, formada por esposa e quatro filhos. "Às vezes, quando o milho dá bom, eu vendo um saco", explica. Além do milho, tem feijão-de-corda, abóbora, melancia e mandioca.
Ele conta que sempre viveu cercado pela imensidão de água do Rio Grande, principal fonte hídrica do quilombo, e "pela fartura do braço d'água, que trazia o recurso precioso do rio pra perto da roça, garantindo a produção de alimentos e a criação animal".
Nos últimos oito anos, o agricultor conta que viu as condições no quilombo mudarem radicalmente. "Veio uma firma, uma fazenda de um lado, e outra do outro. Uma planta feijão, milho, soja e capim; e a outra planta capim e cria gado, e o quilombo ficou no meio", explica. O quilombola se refere às fazendas Conceição e Boca do Taboleiro.
Depois disso, o líder do quilombo conta que viu o nível do rio baixar e os braços ficarem com água só até o mês de agosto. "Uma das fazendas usa pivô de irrigação e construiu um reservatório que tá puxando muita água do rio", comenta. Ele se queixa também da redução das caças, antes abundantes na área. "Antes, a gente via tatu, tatu-bola, caititu, porco-do-mato, veado, tá sumindo bastante. Tá bem fraco mesmo", lamenta.
As pulverizações aéreas de agrotóxicos, ainda segundo ele, "passam por cima do Rio Grande e queimam os lodos, as mata ciliares; deixa um fedor grande. O avião passa por cima de quem mora perto; passa nas plantações, morre milho, morre feijão, nenhuma [planta] aguenta, prejudica muito", reclama Jonas.
Com pouca caça e pouca água, Jonas diz que "estamos nos virando como podemos. Pesca um peixe, uma caça aqui e acolá, quando aparece, e farinha mandioca e milho. E a água, a gente usa pouco, pois não plantamos nada grave [com forte impacto ambiental]", relata.
Neste momento, Jonas trava uma disputa com o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) contra uma multa aplicada, em abril de 2023, pelo órgão em função do desmate de 3,30 m³ de aroeira, um tipo de madeira. No documento oficial do órgão ambiental, consta que o conflito surgiu em função de uma disputa de terra entre Jonas e outra pessoa da mesma família, envolvendo a área da Fazenda Nova, que fica no território do quilombo.
A disputa chegou à Justiça, o que levou Jonas a erguer uma cerca para delimitar a área de uso comum do quilombo, diz um trecho do documento. Na construção da cerca, segundo o Inema, "foram utilizados 850 m³ madeira, em grande parte aroeira, e também havia uma porção de angico, espécies raras protegidas por lei", diz o documento. Após a fiscalização de campo, o órgão ambiental aplicou multa no valor de R$ 1.200.
A associação do quilombo entrou com um recurso, alegando que "os locais do corte e aplicação da madeira protegida por lei são inseridos nas terras reconhecidas e declaradas, segundo a Portaria n. 155 do Incra, como terras da Comunidade Remanescente de Quilombo Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba".
No documento, os quilombolas argumentam também que, por se tratar de um território tradicional, "não existem posses ou propriedades particulares dentro do território, e sim, arranjos e acordos comunitários".
No recurso, a associação pondera que "o corte e a aplicação dos 3,30 m³ de madeira protegida por lei foram realizados ao mesmo tempo em que ocorreu o desmatamento autorizado de 2.978 hectares de vegetação nativa na fazenda vizinha 'Conceição' e o desmatamento autorizado de 1.304 hectares de vegetação nativa na fazenda vizinha 'Boca do Tabuleiro'. Diante disso, questiona a "razoabilidade da multa aplicada contra elas enquanto ficam impunes as áreas vizinhas que causaram danos um tanto maiores".
Por fim, os quilombolas relatam que "antes da autuação em curso, as comunidades não tinham conhecimento de que não poderiam aproveitar a madeira da aroeira para fins de manejos necessários no território próprio delas" e pedem um abatimento de 30% no valor da multa, bem como o parcelamento da multa em 12 vezes. Ambos os pleitos, segundo consta no recurso, estão amparados no Decreto 14.024, que regulamenta a Política de Meio Ambiente e de Proteção à Diversidade do Estado da Bahia.
O coordenador Geral da Agência 10envolvimento e diácono permanente da Diocese de Barreiras, organização que apoia os quilombos, Martin Mayr, afirma que "o modelo aplicado ao Cerrado vem avançando para a Caatinga. Esse desmatamento que avança na Caatinga é justamente nas áreas que podem ser irrigadas".
Ele avalia que o Inema age com pesos diferentes em relação aos quilombolas e aos grandes empresários."Os desmatamentos nas propriedades privadas, em grande parte, são autorizados, mas não se fiscaliza o que acontece depois. Desmataram, deixaram de pé as espécies nativas, mas em segundo plano desmataram as nativas e o órgão fiscalizador não vê isso", observa.
Fizemos contato por telefone e por email com o Inema, perguntando se o órgão gostaria de comentar as questões aqui citadas, mas não obtivemos retorno até o fechamento desta reportagem.
https://brasil.mongabay.com/2025/09/desmatamento-para-energia-renovavel-aumenta-pressao-sobre-a-caatinga/
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