De Pueblos Indígenas en Brasil
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Unicef denuncia ameaças à infância dos Yanomami
17/10/2025
Autor: Nicoly Ambrosio
Fonte: Amazonia Real - https://amazoniareal.com.br
Manaus (AM) - Assim que uma criança Yanomami nasce, ela é envolvida pelos braços de sua mãe (yakapuu, na língua Yanomami) e em seguida colocada junto ao peito. A partir daí, já considerada um membro da família, vai experimentar uma infância marcada pela autonomia, pelo cuidado e pela vivência em comunidade e com a floresta. Os pequenos Yanomami podem circular sem restrições pelas aldeias onde vivem, acompanhando as pescarias, o trabalho na roça, as expedições de coleta na floresta, as festas e as longas visitas a parentes de outras aldeias.
Carregados desde bebês em tipoias feitas de lã ou de casca de árvore por suas mães, as crianças Yanomami escolhem o que querem ver, conhecer e fazer parte, sem a vigilância que é imposta às crianças nos contextos não indígenas. Ser criança (oxë thëpë) é um processo de aprendizado livre na cultura Yanomami. Dentro da floresta e nas margens dos rios, elas correm, brincam, aprendem e se divertem.
Mas um alerta mundial mostra que esse cotidiano de liberdade e o próprio tecido social que sustenta a vida Yanomami estão em risco. É o que informa o novo relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com apoio da Hutukara Associação Yanomami (HAY), intitulado "Infância e Juventude Yanomami: O que significa ser criança e os desafios urgentes na Terra Indígena Yanomami", lançado na última quarta-feira (15). Elaborado com base em documentos, coleta de dados, estudos antropológicos, depoimentos de lideranças e experiências de vida, o estudo denuncia que na Terra Indígena Yanomami (TIY), maior território indígena do Brasil (são 9,6 milhões de hectares entre os estados do Amazonas e Roraima), o garimpo ilegal, que já chegou a reunir 20 mil invasores, destruiu roças, contaminou rios com mercúrio e comprometeu práticas tradicionais de caça e coleta.
O estudo mergulhou na cosmologia e na organização sociopolítica Yanomami para revelar como o contexto de devastação afetou a infância e juventude desse povo. Não apenas pela crise sanitária e ambiental que se instalou no território, mas também pela desorganização social e cultural provocada pela expansão das atividades do garimpo. O povo Yanomami é um dos maiores grupos indígenas do Brasil, com cerca de 31 mil pessoas vivendo em 376 comunidades em Roraima e no Amazonas.
De acordo com a antropóloga Ana Maria Machado, uma das responsáveis pelo estudo, os jovens que são cooptados para trabalhar no garimpo e passam a ter acesso a bens materiais como barcos, celulares, armas e roupas ganham prestígio entre seus pares. Nesse processo, lideranças tradicionais (pata thëpë) perdem influência e os jovens Yanomami acabam se afastando das atividades de caça, pesca, roça ou coleta da própria família.
Não se trata de um problema de agora. O xamã e grande liderança dos Yanomami, Davi Kopenawa, no livro "A queda do céu" (Companhia das Letras, 2010), escrito em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, já prenunciava o problema. "Seu pensamento se tornou obscuro diante da beleza das grandes redes de algodão, das panelas de metal e das espingardas novas dos brancos. Nem prestavam mais atenção nos próprios filhos e deixaram os garimpeiros pegarem suas mulheres. Seu pensamento passava o dia todo tomado só pela palavra das mercadorias. Não paravam de pedir, em língua de fantasma: 'Quero uma faca, um facão, uma bermuda, sandálias, cartuchos, biscoitos, sardinhas!'. (...) Pouco a pouco, viravam outros e dava dó ouvi-los. Vê-los secava o pensamento...", relatou.
"Entre os Yanomami têm as lideranças, os mais velhos e homens adultos que eles chamam de pata thëpë. São pessoas de autoridade na comunidade e que tem uma voz que é ouvida pelas outras pessoas, mas quando um jovem que acaba se envolvendo no garimpo e tem acesso a bens materiais, ele acaba também sendo ouvido por outros jovens. Isso leva a essa desorganização também geracional", explica a pesquisadora, que trabalha há 18 anos junto aos Yanomami.
O relatório alerta ainda que o avanço do ouro pode comprometer o futuro cultural do povo Yanomami. As crianças crescem expostas a doenças, destruição do meio ambiente e a um modelo de sociedade baseado no consumo e na ruptura dos vínculos comunitários, valores considerados opostos ao modo de vida Yanomami, que valoriza a reciprocidade e a coletividade. Em alguns casos, os jovens passam a ameaçar as lideranças que são contrárias ao garimpo.
Seduzidos pela vontade de adquirir produtos como celulares, jovens Yanomami acabam aliciados por garimpeiros. "Os mais velhos muitas vezes não são escutados pelos mais novos, que estão interessados em ir para o garimpo. Esses jovens muitas vezes acabam se empoderando e passam a não respeitar os mais velhos", alertou Ana Maria Machado.
Segundo a pesquisadora, o conhecimento tradicional, transmitido de geração em geração, também está ameaçado, uma vez que apenas cerca de 3% da população Yanomami tem mais de 60 anos e são os guardiões dos saberes de cura e xamanismo. Apesar disso, há movimentos internos de resistência para preservar e registrar os saberes Yanomami. "Isso é um movimento antigo, já temos mais de 20 livros publicados sobre o sistema Yanomami, sobre o conhecimento dos mais velhos".
Para a antropóloga, é fundamental compreender que as culturas estão sempre em movimento e que a juventude Yanomami também vive um processo de transformação, impulsionado pelo contato com as tecnologias e pela circulação entre floresta e cidade.
"O mais importante nesse ponto é que uma floresta preservada, uma floresta em pé, é também uma forma de preservação da cultura e dos modos de vida Yanomami. A entrada do garimpo e de tudo o que vem dele é uma forma de desestruturação de um modo de vida na floresta, que é precioso. Conhecimentos de saber viver na floresta e da floresta", disse.
As maiores vítimas
Com a segunda grande invasão garimpeira a partir de 2016, o território Yanomami passou a enfrentar a escalada de uma crise humanitária sem precedentes, aliada ao sucateamento da rede de atendimento de saúde, carente de medicamentos, equipamentos e funcionários. De acordo com o relatório do Unicef, no pico da crise, entre 2019 e 2022, os casos de malária registrados entre crianças de até cinco anos chegaram a 21.335, número próximo ao total acumulado nos dez anos anteriores. Nesse mesmo período, 47 crianças Yanomami morreram vítimas da doença, sete vezes mais que entre 2014 e 2018.
Em 2022, em todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas no Brasil, foram registrados 33.973 casos de malária, sendo 15.284 desses casos no Dsei Yanomami - ou seja, 44,5% do total de casos em áreas indígenas.
A ameaça é ainda maior considerando a composição demográfica dos Yanomami, já que cerca de 75% da população Yanomami tem menos de 30 anos de idade. É justamente essa geração de crianças e jovens que mais sofre os efeitos da devastação ambiental no território, como os altos índices de doenças e infestações parasitárias, diz o estudo. Entre 2019 e 2022, pelo menos 570 crianças com menos de cinco anos morreram por doenças tratáveis e evitáveis, como desnutrição, diarreia e pneumonia.
Mais da metade das crianças Yanomami acompanhadas em 2022 apresentava baixo ou baixíssimo peso. Em algumas comunidades, todas as amostras de exames indicaram parasitoses intestinais. Um estudo realizado em 2019 pelo Unicef em parceria com a FioCruz, Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), analisou índices de desnutrição em crianças Yanomami menores de cinco anos, em oito aldeias nas regiões de Awaris e Maturacá. Os dados revelaram que 81,2% dessas crianças apresentaram desnutrição crônica.
Diante da tragédia, no início de 2023 o governo federal decretou uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) no território Yanomami e todos os olhos se voltaram para as imagens da infância Yanomami desnutrida. Em janeiro do ano passado, uma nota técnica da Hutukara Associação Yanomami denunciou que a crise humanitária continuava na Terra Indígena, apesar das medidas emergenciais adotadas pelo governo Lula. Com novas estratégias, garimpeiros avançaram na exploração ilegal no território.
A chefe do escritório do Unicef em Roraima, Tâmara Simão, afirmou que desde a declaração da emergência sanitária no território Yanomami, a organização atua junto a diversas autoridades em todos os níveis federativos na articulação das respostas emergenciais e no fortalecimento de políticas públicas culturalmente adaptadas.
De acordo com Simão, o relatório será apresentado aos ministérios e órgãos públicos atuantes, com o objetivo de contribuir para o fortalecimento de políticas mais sensíveis à cultura e à realidade Yanomami, consolidando ações específicas, diferenciadas e essenciais para garantir resultados duradouros.
"A desintrusão do território é um passo essencial para a recuperação dos modos de vida Yanomami e para a melhora dos indicadores de saúde e nutrição das crianças e adolescentes. O desafio central é assegurar que as políticas e ações sejam sustentáveis e construídas junto com a população Yanomami. Somente com soluções de longo prazo e culturalmente adequadas será possível proteger as crianças e jovens", disse Simão.
Violência e exploração
Além da devastação ambiental e cultural, a presença dos garimpeiros trouxe um aumento alarmante da violência sexual e da exploração de jovens. "Junto com o garimpo chega também o que tem de pior da nossa sociedade, que é álcool, droga e um mundo de violência. Eles [garimpeiros] também aliciaram as meninas para trabalhos sexuais", denunciou Ana Maria Machado.
No relatório "Cicatrizes na Floresta: Evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020", as associações indígenas denunciaram o sequestro e a exploração sexual de uma adolescente de 16 anos por garimpeiros. Em maio de 2022, a Hutukara Associação Yanomami também relatou uma sequência de casos de abusos cometidos contra moradores da comunidade sanöma Aracaçá, na região do Waikas. São denúncias que expõem a realidade vivida por jovens e mulheres Yanomami, exploradas sexualmente por garimpeiros.
Há inúmeros relatos de meninas de até 12 anos abusadas em troca de algum tipo de pagamento. De acordo com o estudo do Unicef, meninas e mulheres que frequentam os garimpos se prostituem em troca de comida, em situações evidentes de exploração. Em comunidades da região do Parima, algumas meninas Yanomami se tornaram mães de filhos de garimpeiros. Como esses homens não assumem as crianças, muitas acabam criando os filhos sozinhas, o que aprofunda a desestruturação social e econômica das aldeias. Uma criança sem pai ou mãe enfrenta maiores dificuldades de desenvolvimento e de acesso a uma boa condição nutricional.
A situação se agrava diante do aumento das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) no território. Entre os Yanomami, não é comum o uso de preservativos, e as relações desprotegidas com garimpeiros têm causado uma disseminação alarmante de doenças como sífilis, gonorreia, herpes genital e HIV, afetando gravemente a saúde das mulheres. Elas relatam dores, sangramentos e abortos espontâneos.
"Anteriormente, as mulheres Yanomami não tinham a doença do abdômen. Portanto, nós Yanomami não conhecíamos essas doenças 'warasi' que deixam lesões na pele, quando as mulheres não sofriam de sangramentos. Agora, depois que os garimpeiros catadores de ouro, por causa do veneno da cachaça, começaram a ter relações com as mulheres, aprendemos o nome desta doença", relatou uma anciã Yanomami.
C. Yanomami, moradora da região da Missão Catrimani, relaciona diretamente o aumento das doenças com a intensificação do contato com os não indígenas. "Nós não vivemos mais onde nossos antepassados viviam, porém foi aqui nessa terra que essas mulheres começaram a sentir dores. Por causa disso alguns bebês saem antes da hora, algumas perdem sangue pela vagina. Agora estamos dentro da terra dos brancos e por isso nós estamos mal".
De olho nas tecnologias
O estudo também dedica atenção à educação escolar indígena, que passou por um período de efervescência entre 1992 e 2004, mas enfrentou declínio desde 2012, com escolas paralisadas e professores sem apoio. Os mais velhos lamentam que muitos jovens estejam "com o pensamento fixo nos celulares", deixando de aprender práticas tradicionais como caça e xamanismo. Ainda assim, o relatório reconhece que o celular também se tornou uma ferramenta política essencial para a mobilização entre floresta e cidade, especialmente nas denúncias de violações e na defesa dos direitos indígenas.
A pesquisadora Ana Maria Machado explica que as transformações trazidas pelos celulares representam um tipo de mudança que ocorre em toda a sociedade e que também está presente na floresta. Segundo ela, o tema foi central durante o 16o Encontro das Mulheres Yanomami, realizado há duas semanas no território Yanomami, do qual participou.
"O celular foi o tema central das discussões. A gente pensou em regras e formas de uso, porque, por outro lado, os celulares também permitem, por exemplo, que os Yanomami façam denúncias de garimpo, contra a presença de garimpeiros e narcotraficantes, ou denúncias sobre a precariedade no atendimento à saúde, entre outras", diz a antropóloga.
Machado destacou ainda que os aparelhos possibilitam a circulação de músicas, cantos e imagens das festas Yanomami, fortalecendo a troca cultural e o aspecto político das denúncias, com acesso facilitado às associações e órgãos públicos. Ela cita o sistema de alerta criado pelo Instituto Socioambiental, Hutukara e Unicef, para justamente permitir que os jovens Yanomami possam registrar e enviar denúncias sobre invasores e outras situações diretamente às autoridades competentes.
"A chegada dos celulares tem levado a muitas mudanças sociais na floresta. Cada vez mais, principalmente os mais jovens, têm acesso aos celulares. Mas essas novas tecnologias chegam também trazendo conteúdos ruins, assim, muitas vezes nesses aplicativos como TikTok, Kwai, ou mesmo no WhatsApp, que acaba dando margem para circulação de fofoca, pornografia e esse tipo de conteúdo, sem que tenha um debate e uma reflexão mais a fundo. É um desafio", disse Machado.
A partir das vozes Yanomami e da análise antropológica, o estudo apontou como caminhos centrais a necessidade de implementação do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Yanomami (PGTA), elaborado pelas próprias comunidades, como um guia para o bem-viver e a continuidade da vida; o fortalecimento de políticas públicas específicas e diferenciadas para os povos Yanomami; o combate ao garimpo ilegal e garantia a proteção territorial como condição básica para a sobrevivência, preservendo cultura e modos de vida; e o reconhecimento e apoio as organizações Yanomami, que representam grupos de diferentes regiões da floresta, e que têm papel central na defesa dos direitos e na mobilização comunitária.
Além disso, o documento é enfático em recomendar que a sociedade e o governo escutem as crianças e jovens Yanomami, pois a grande demanda dessas populações por acesso a novos conhecimentos, incluindo o uso de novas tecnologias, deve ser levada a sério, sobretudo como ferramentas na luta por respeito à sua dignidade.
"Proteger as crianças Yanomami exige respeitar suas especificidades, diversidades e cultura, fortalecer suas organizações indígenas, proteger seu território e garantir que suas vozes sejam ouvidas na formulação de políticas, entendendo seus anseios e desejos em um mundo em transformação. É um chamado à ação imediata para garantir o futuro de uma geração inteira", disse Joaquin Gonzalez-Aleman, representante do Unicef no Brasil.
Uma construção coletiva
Com apoio da Hutukara Associação Yanomami (HAY) e da Urihi Associação Yanomami, o estudo foi realizado pelos consultores e antropólogos Ana Maria Machado e Marcelo Moura. A publicação é uma iniciativa da área de Mudança Social e de Comportamento (SBC, pela sigla em inglês) e da Coordenadoria para Assuntos Indígenas do UNICEF Brasil, com financiamento da União Europeia, por meio do Departamento de Proteção Civil e Ajuda Humanitária (ECHO).
https://amazoniareal.com.br/unicef-denuncia-ameacas-a-infancia-dos-yanomami/
Carregados desde bebês em tipoias feitas de lã ou de casca de árvore por suas mães, as crianças Yanomami escolhem o que querem ver, conhecer e fazer parte, sem a vigilância que é imposta às crianças nos contextos não indígenas. Ser criança (oxë thëpë) é um processo de aprendizado livre na cultura Yanomami. Dentro da floresta e nas margens dos rios, elas correm, brincam, aprendem e se divertem.
Mas um alerta mundial mostra que esse cotidiano de liberdade e o próprio tecido social que sustenta a vida Yanomami estão em risco. É o que informa o novo relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com apoio da Hutukara Associação Yanomami (HAY), intitulado "Infância e Juventude Yanomami: O que significa ser criança e os desafios urgentes na Terra Indígena Yanomami", lançado na última quarta-feira (15). Elaborado com base em documentos, coleta de dados, estudos antropológicos, depoimentos de lideranças e experiências de vida, o estudo denuncia que na Terra Indígena Yanomami (TIY), maior território indígena do Brasil (são 9,6 milhões de hectares entre os estados do Amazonas e Roraima), o garimpo ilegal, que já chegou a reunir 20 mil invasores, destruiu roças, contaminou rios com mercúrio e comprometeu práticas tradicionais de caça e coleta.
O estudo mergulhou na cosmologia e na organização sociopolítica Yanomami para revelar como o contexto de devastação afetou a infância e juventude desse povo. Não apenas pela crise sanitária e ambiental que se instalou no território, mas também pela desorganização social e cultural provocada pela expansão das atividades do garimpo. O povo Yanomami é um dos maiores grupos indígenas do Brasil, com cerca de 31 mil pessoas vivendo em 376 comunidades em Roraima e no Amazonas.
De acordo com a antropóloga Ana Maria Machado, uma das responsáveis pelo estudo, os jovens que são cooptados para trabalhar no garimpo e passam a ter acesso a bens materiais como barcos, celulares, armas e roupas ganham prestígio entre seus pares. Nesse processo, lideranças tradicionais (pata thëpë) perdem influência e os jovens Yanomami acabam se afastando das atividades de caça, pesca, roça ou coleta da própria família.
Não se trata de um problema de agora. O xamã e grande liderança dos Yanomami, Davi Kopenawa, no livro "A queda do céu" (Companhia das Letras, 2010), escrito em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, já prenunciava o problema. "Seu pensamento se tornou obscuro diante da beleza das grandes redes de algodão, das panelas de metal e das espingardas novas dos brancos. Nem prestavam mais atenção nos próprios filhos e deixaram os garimpeiros pegarem suas mulheres. Seu pensamento passava o dia todo tomado só pela palavra das mercadorias. Não paravam de pedir, em língua de fantasma: 'Quero uma faca, um facão, uma bermuda, sandálias, cartuchos, biscoitos, sardinhas!'. (...) Pouco a pouco, viravam outros e dava dó ouvi-los. Vê-los secava o pensamento...", relatou.
"Entre os Yanomami têm as lideranças, os mais velhos e homens adultos que eles chamam de pata thëpë. São pessoas de autoridade na comunidade e que tem uma voz que é ouvida pelas outras pessoas, mas quando um jovem que acaba se envolvendo no garimpo e tem acesso a bens materiais, ele acaba também sendo ouvido por outros jovens. Isso leva a essa desorganização também geracional", explica a pesquisadora, que trabalha há 18 anos junto aos Yanomami.
O relatório alerta ainda que o avanço do ouro pode comprometer o futuro cultural do povo Yanomami. As crianças crescem expostas a doenças, destruição do meio ambiente e a um modelo de sociedade baseado no consumo e na ruptura dos vínculos comunitários, valores considerados opostos ao modo de vida Yanomami, que valoriza a reciprocidade e a coletividade. Em alguns casos, os jovens passam a ameaçar as lideranças que são contrárias ao garimpo.
Seduzidos pela vontade de adquirir produtos como celulares, jovens Yanomami acabam aliciados por garimpeiros. "Os mais velhos muitas vezes não são escutados pelos mais novos, que estão interessados em ir para o garimpo. Esses jovens muitas vezes acabam se empoderando e passam a não respeitar os mais velhos", alertou Ana Maria Machado.
Segundo a pesquisadora, o conhecimento tradicional, transmitido de geração em geração, também está ameaçado, uma vez que apenas cerca de 3% da população Yanomami tem mais de 60 anos e são os guardiões dos saberes de cura e xamanismo. Apesar disso, há movimentos internos de resistência para preservar e registrar os saberes Yanomami. "Isso é um movimento antigo, já temos mais de 20 livros publicados sobre o sistema Yanomami, sobre o conhecimento dos mais velhos".
Para a antropóloga, é fundamental compreender que as culturas estão sempre em movimento e que a juventude Yanomami também vive um processo de transformação, impulsionado pelo contato com as tecnologias e pela circulação entre floresta e cidade.
"O mais importante nesse ponto é que uma floresta preservada, uma floresta em pé, é também uma forma de preservação da cultura e dos modos de vida Yanomami. A entrada do garimpo e de tudo o que vem dele é uma forma de desestruturação de um modo de vida na floresta, que é precioso. Conhecimentos de saber viver na floresta e da floresta", disse.
As maiores vítimas
Com a segunda grande invasão garimpeira a partir de 2016, o território Yanomami passou a enfrentar a escalada de uma crise humanitária sem precedentes, aliada ao sucateamento da rede de atendimento de saúde, carente de medicamentos, equipamentos e funcionários. De acordo com o relatório do Unicef, no pico da crise, entre 2019 e 2022, os casos de malária registrados entre crianças de até cinco anos chegaram a 21.335, número próximo ao total acumulado nos dez anos anteriores. Nesse mesmo período, 47 crianças Yanomami morreram vítimas da doença, sete vezes mais que entre 2014 e 2018.
Em 2022, em todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas no Brasil, foram registrados 33.973 casos de malária, sendo 15.284 desses casos no Dsei Yanomami - ou seja, 44,5% do total de casos em áreas indígenas.
A ameaça é ainda maior considerando a composição demográfica dos Yanomami, já que cerca de 75% da população Yanomami tem menos de 30 anos de idade. É justamente essa geração de crianças e jovens que mais sofre os efeitos da devastação ambiental no território, como os altos índices de doenças e infestações parasitárias, diz o estudo. Entre 2019 e 2022, pelo menos 570 crianças com menos de cinco anos morreram por doenças tratáveis e evitáveis, como desnutrição, diarreia e pneumonia.
Mais da metade das crianças Yanomami acompanhadas em 2022 apresentava baixo ou baixíssimo peso. Em algumas comunidades, todas as amostras de exames indicaram parasitoses intestinais. Um estudo realizado em 2019 pelo Unicef em parceria com a FioCruz, Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), analisou índices de desnutrição em crianças Yanomami menores de cinco anos, em oito aldeias nas regiões de Awaris e Maturacá. Os dados revelaram que 81,2% dessas crianças apresentaram desnutrição crônica.
Diante da tragédia, no início de 2023 o governo federal decretou uma Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) no território Yanomami e todos os olhos se voltaram para as imagens da infância Yanomami desnutrida. Em janeiro do ano passado, uma nota técnica da Hutukara Associação Yanomami denunciou que a crise humanitária continuava na Terra Indígena, apesar das medidas emergenciais adotadas pelo governo Lula. Com novas estratégias, garimpeiros avançaram na exploração ilegal no território.
A chefe do escritório do Unicef em Roraima, Tâmara Simão, afirmou que desde a declaração da emergência sanitária no território Yanomami, a organização atua junto a diversas autoridades em todos os níveis federativos na articulação das respostas emergenciais e no fortalecimento de políticas públicas culturalmente adaptadas.
De acordo com Simão, o relatório será apresentado aos ministérios e órgãos públicos atuantes, com o objetivo de contribuir para o fortalecimento de políticas mais sensíveis à cultura e à realidade Yanomami, consolidando ações específicas, diferenciadas e essenciais para garantir resultados duradouros.
"A desintrusão do território é um passo essencial para a recuperação dos modos de vida Yanomami e para a melhora dos indicadores de saúde e nutrição das crianças e adolescentes. O desafio central é assegurar que as políticas e ações sejam sustentáveis e construídas junto com a população Yanomami. Somente com soluções de longo prazo e culturalmente adequadas será possível proteger as crianças e jovens", disse Simão.
Violência e exploração
Além da devastação ambiental e cultural, a presença dos garimpeiros trouxe um aumento alarmante da violência sexual e da exploração de jovens. "Junto com o garimpo chega também o que tem de pior da nossa sociedade, que é álcool, droga e um mundo de violência. Eles [garimpeiros] também aliciaram as meninas para trabalhos sexuais", denunciou Ana Maria Machado.
No relatório "Cicatrizes na Floresta: Evolução do garimpo ilegal na TI Yanomami em 2020", as associações indígenas denunciaram o sequestro e a exploração sexual de uma adolescente de 16 anos por garimpeiros. Em maio de 2022, a Hutukara Associação Yanomami também relatou uma sequência de casos de abusos cometidos contra moradores da comunidade sanöma Aracaçá, na região do Waikas. São denúncias que expõem a realidade vivida por jovens e mulheres Yanomami, exploradas sexualmente por garimpeiros.
Há inúmeros relatos de meninas de até 12 anos abusadas em troca de algum tipo de pagamento. De acordo com o estudo do Unicef, meninas e mulheres que frequentam os garimpos se prostituem em troca de comida, em situações evidentes de exploração. Em comunidades da região do Parima, algumas meninas Yanomami se tornaram mães de filhos de garimpeiros. Como esses homens não assumem as crianças, muitas acabam criando os filhos sozinhas, o que aprofunda a desestruturação social e econômica das aldeias. Uma criança sem pai ou mãe enfrenta maiores dificuldades de desenvolvimento e de acesso a uma boa condição nutricional.
A situação se agrava diante do aumento das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) no território. Entre os Yanomami, não é comum o uso de preservativos, e as relações desprotegidas com garimpeiros têm causado uma disseminação alarmante de doenças como sífilis, gonorreia, herpes genital e HIV, afetando gravemente a saúde das mulheres. Elas relatam dores, sangramentos e abortos espontâneos.
"Anteriormente, as mulheres Yanomami não tinham a doença do abdômen. Portanto, nós Yanomami não conhecíamos essas doenças 'warasi' que deixam lesões na pele, quando as mulheres não sofriam de sangramentos. Agora, depois que os garimpeiros catadores de ouro, por causa do veneno da cachaça, começaram a ter relações com as mulheres, aprendemos o nome desta doença", relatou uma anciã Yanomami.
C. Yanomami, moradora da região da Missão Catrimani, relaciona diretamente o aumento das doenças com a intensificação do contato com os não indígenas. "Nós não vivemos mais onde nossos antepassados viviam, porém foi aqui nessa terra que essas mulheres começaram a sentir dores. Por causa disso alguns bebês saem antes da hora, algumas perdem sangue pela vagina. Agora estamos dentro da terra dos brancos e por isso nós estamos mal".
De olho nas tecnologias
O estudo também dedica atenção à educação escolar indígena, que passou por um período de efervescência entre 1992 e 2004, mas enfrentou declínio desde 2012, com escolas paralisadas e professores sem apoio. Os mais velhos lamentam que muitos jovens estejam "com o pensamento fixo nos celulares", deixando de aprender práticas tradicionais como caça e xamanismo. Ainda assim, o relatório reconhece que o celular também se tornou uma ferramenta política essencial para a mobilização entre floresta e cidade, especialmente nas denúncias de violações e na defesa dos direitos indígenas.
A pesquisadora Ana Maria Machado explica que as transformações trazidas pelos celulares representam um tipo de mudança que ocorre em toda a sociedade e que também está presente na floresta. Segundo ela, o tema foi central durante o 16o Encontro das Mulheres Yanomami, realizado há duas semanas no território Yanomami, do qual participou.
"O celular foi o tema central das discussões. A gente pensou em regras e formas de uso, porque, por outro lado, os celulares também permitem, por exemplo, que os Yanomami façam denúncias de garimpo, contra a presença de garimpeiros e narcotraficantes, ou denúncias sobre a precariedade no atendimento à saúde, entre outras", diz a antropóloga.
Machado destacou ainda que os aparelhos possibilitam a circulação de músicas, cantos e imagens das festas Yanomami, fortalecendo a troca cultural e o aspecto político das denúncias, com acesso facilitado às associações e órgãos públicos. Ela cita o sistema de alerta criado pelo Instituto Socioambiental, Hutukara e Unicef, para justamente permitir que os jovens Yanomami possam registrar e enviar denúncias sobre invasores e outras situações diretamente às autoridades competentes.
"A chegada dos celulares tem levado a muitas mudanças sociais na floresta. Cada vez mais, principalmente os mais jovens, têm acesso aos celulares. Mas essas novas tecnologias chegam também trazendo conteúdos ruins, assim, muitas vezes nesses aplicativos como TikTok, Kwai, ou mesmo no WhatsApp, que acaba dando margem para circulação de fofoca, pornografia e esse tipo de conteúdo, sem que tenha um debate e uma reflexão mais a fundo. É um desafio", disse Machado.
A partir das vozes Yanomami e da análise antropológica, o estudo apontou como caminhos centrais a necessidade de implementação do Plano de Gestão Territorial e Ambiental da Terra Indígena Yanomami (PGTA), elaborado pelas próprias comunidades, como um guia para o bem-viver e a continuidade da vida; o fortalecimento de políticas públicas específicas e diferenciadas para os povos Yanomami; o combate ao garimpo ilegal e garantia a proteção territorial como condição básica para a sobrevivência, preservendo cultura e modos de vida; e o reconhecimento e apoio as organizações Yanomami, que representam grupos de diferentes regiões da floresta, e que têm papel central na defesa dos direitos e na mobilização comunitária.
Além disso, o documento é enfático em recomendar que a sociedade e o governo escutem as crianças e jovens Yanomami, pois a grande demanda dessas populações por acesso a novos conhecimentos, incluindo o uso de novas tecnologias, deve ser levada a sério, sobretudo como ferramentas na luta por respeito à sua dignidade.
"Proteger as crianças Yanomami exige respeitar suas especificidades, diversidades e cultura, fortalecer suas organizações indígenas, proteger seu território e garantir que suas vozes sejam ouvidas na formulação de políticas, entendendo seus anseios e desejos em um mundo em transformação. É um chamado à ação imediata para garantir o futuro de uma geração inteira", disse Joaquin Gonzalez-Aleman, representante do Unicef no Brasil.
Uma construção coletiva
Com apoio da Hutukara Associação Yanomami (HAY) e da Urihi Associação Yanomami, o estudo foi realizado pelos consultores e antropólogos Ana Maria Machado e Marcelo Moura. A publicação é uma iniciativa da área de Mudança Social e de Comportamento (SBC, pela sigla em inglês) e da Coordenadoria para Assuntos Indígenas do UNICEF Brasil, com financiamento da União Europeia, por meio do Departamento de Proteção Civil e Ajuda Humanitária (ECHO).
https://amazoniareal.com.br/unicef-denuncia-ameacas-a-infancia-dos-yanomami/
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