From Indigenous Peoples in Brazil
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News

Sonhos xavantes em músicas para todas as tribos

22/02/2012

Fonte: O Globo, Segundo Caderno, p. 8



Sonhos xavantes em músicas para todas as tribos
Cantor de aldeia em Mato Grosso lança disco inspirado na tradição indígena, com letras sobre ecologia e integração

Carlos Albuquerque
carlos.albuquerque@oglobo.com.br

A recomendação era ter paciência. Mesmo feita na hora marcada, a ligação poderia não ser atendida - ou ser, mas por uma pessoa que não entendesse português. Afinal, ela seria feita para um orelhão, o único existente dentro da aldeia Belém, na reserva indígena Pimentel Barbosa, em Canarana, Vale do Araguaia, Mato Grosso. O objetivo era falar com o cantor da aldeia Marcio Tserehité, autor de um inusitado e encantador disco, o recém-lançado "Marãiwatsihöiba", com 12 faixas de música xavante.
- Esse orelhão é a única maneira formal, tradicional, de falar com os habitantes da aldeia. E nem todos sabem português - explica Alexandre Lemos, músico paulistano radicado na região e produtor do disco.
Marcio Tserehité sabe, mas no disco (independente), ele interpreta as canções no idioma xavante (a'uwe mreme), com a letra original e a tradução para o português no encarte. Por cima de uma forte base rítmica, mântrica e hipnótica, embalada por sutis intervenções de guitarra, flautas e teclado, Tserehité canta músicas inspiradas em sonhos e nas tradições do seu povo, tocando também em temas como desmatamento, invasões, doenças, descaracterização da cultura e outros males que afligem os xavantes.
- É impossível traduzir literalmente essas letras. Há muitos simbolismos e expressões próprias da cultura xavante - explica o produtor. - O que fizemos foi mostrar esse material primeiro para os índios que atuam como professores dentro da aldeia e depois adaptá-las ao português.
Ex-estudante de Música da Unicamp, Alexandre Lemos mudou-se para São Félix do Araguaia, em Mato Grosso, no começo de 2009, acompanhado pela mulher, a bióloga (e flautista) Maíra Ribeiro. Atuando em pesquisas e projetos culturais na região desde então, ele conheceu Marcio Tserehité naquele mesmo ano, numa cidade próxima, Barra do Garças.
- Tinha ido buscar um amigo vindo de São Paulo e acabei conhecendo um cacique xavante. Conversei com ele e pedi permissão para ir à aldeia, já que gostaria de saber mais sobre a cultura musical na reserva - conta. - No começo, ele foi um pouco arredio, já que muitas pessoas fazem contato e depois somem. E os xavantes são um pouco bravos. Mas mostrei que meu trabalho era sério e consegui convencê-lo. Acabei passando alguns dias na aldeia, e foi quando conheci o Marcio, a pessoa responsável por passar adiante a cultura da tribo por meio da sua música.
Ao descobrir que o cantor xavante sabia tocar violão e flauta e tinha 12 músicas prontas, Alexandre Lemos se entusiasmou e se ofereceu para produzir um disco dele. Dois anos depois, com apoio do Programa de Microprojetos na Amazônia Legal, ele finalmente conseguiu recursos e alugou um horário em um estúdio em Barra do Garças.
- Era um estúdio bem simples, onde são gravados jingles para rádios locais. O Marcio Tserehité veio com um amigo da tribo que toca chocalho e que, no final das contas, serviu para lhe dar segurança. Gravamos o disco em uma semana, sempre com a preocupação de não descaracterizar o seu trabalho, que é absolutamente único e tem uma parte espiritual muito forte. Ele representa um estilo que é mais moderno dentro da cultura xavante, feito já a partir do contato com os brancos e com o uso de alguns instrumentos convencionais, como o violão e a bateria. Em alguns momentos, é um som que lembra a música africana, com pequenas variações no ritmo e na altura das vozes. É realmente mágico.
Depois das gravações no estúdio, Alexandre e Maíra (que atuou como assistente de produção do disco) foram para a aldeia com Tserehité, gravar sons complementares, como o barulho de pássaros e sons de rios e cachoeiras. Vozes de crianças da aldeia também foram gravadas e utilizadas como uma espécie de coro.
- Entramos na mata para fazer essas gravações, já que boa parte das letras dele conta o dia a dia dos índios, inclusive os seus rituais de caça - explica o produtor. - São efeitos sonoros naturais.
Shows no Rio e em SP
No próximo dia 24, "Marãiwatsihöiba" (que pode ser pedido no endereço virtual pro jetomale.wordpress.com) vai ser oficialmente lançado, com uma apresentação de Tserehité dentro da aldeia, durante um encontro de cantores xavantes. Apesar da singularidade do projeto, o produtor sonha também fazer shows no Rio, em São Paulo e em outras capitais.
- Em respeito a ele e aos xavantes, o lançamento vai ser primeiro dentro da aldeia. Mas estamos tentando montar uma estrutura para fazer alguns shows nessas capitais. Só que não estamos lidando com um artista comum. Por isso, tudo é mais difícil e mais demorado.
É preciso ter paciência. Depois de algumas tentativas em vão, sem que ninguém atendesse a ligação para o orelhão da aldeia, finalmente o próprio Tserehité surge ao telefone. A fala é pausada, mas firme, enquanto ele descreve a função do cantor da aldeia e a sensação de gravar o disco.
- Meu papel é preservar a cultura xavante para os mais jovens, não deixar essa herança desaparecer por causa do contato com os brancos - explica. - Por isso, gostei muito de gravar o disco. Nunca tinha entrado num estúdio. Mas o que me inspira mesmo é a floresta, as árvores, os rios, a chuva e o vento. Esse é o mundo xavante.

O Globo, 22/02/2012, Segundo Caderno, p. 8
 

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