From Indigenous Peoples in Brazil
The printable version is no longer supported and may have rendering errors. Please update your browser bookmarks and please use the default browser print function instead.
News
Um ianomâmi baleado
08/11/2015
Autor: FARKAS, João
Fonte: FSP, Ilustríssima, p. 7
Um ianomâmi baleado
JOÃO FARKAS
Ofuscada pela dimensão do garimpo de Serra Pelada, pouco se falou de uma outra corrida pelo ouro que acontecia na Amazônia na segunda metade da década de 1980. Em menos de dois anos cerca de cem pistas clandestinas para aviões de garimpo foram abertas em Roraima, numa área que viria a integrar o território ianomâmi. Com essa invasão, os choques e conflitos entre garimpeiros e indígenas eram inevitáveis.
Em 1988, junto com o jornalista e amigo Ricardo Lessa estávamos baseados em Rio Branco procurando acessar e documentar aquele avanço como parte de nosso trabalho sobre a ocupação da Amazônia. Um dos contatos locais era Carlo Zacquini, missionário que convivia desde 1965 com os ianomâmis. Fotógrafo amador, Carlo tinha colocado Claudia Andujar em contato com os indígenas em 1970, quando ela trabalhava em um ensaio para a revista "Realidade".
Enquanto tentávamos acessar a zona conflagrada, os missionários estavam impedidos de acessar o território e os garimpeiros decolavam de pistas não oficias nos arredores de Rio Branco, em pequenos monomotores sem porta, preparados para voos de lançamento de cargas e apoio aos garimpos clandestinos.
Certo dia, Carlo nos chama e pergunta se queremos fotografar um ianomâmi baleado. Era preciso agir rápido e discretamente porque as autoridades policiais tentavam encobrir o ocorrido.
Fui com Carlo até o pronto-socorro. Os ianomâmis são coletores, de aparência bela e delicada. A imagem daquele jovem pós-operado, em um quarto limpo, deitado sobre roupa de cama azul, vestido num pijama listrado e colorido, nos dizia que ele estava muito bem cuidado. Mas uma cicatriz enorme em seu abdômen recém costurado, escondia uma história brutal.
Fizemos as fotos rapidamente e saímos dali antes de sermos descobertos. Inédita a imagem permaneceu por mais de 20 anos e nunca mais revi Carlo ou soube do destino daquele jovem.
Em 2014, enquanto preparava a exposição "Amazônia Ocupada", reencontrei Claudia e Carlo em São Paulo e contei que guardava aquela imagem. Carlo se interessou em vê-la -"as minhas fotos não ficaram boas", ele me disse.
Marcamos, então, e fui com as fotos da exposição até o apartamento de Claudia. Ela olhava as imagens com atenção e com econômicos comentários esporádicos com seu sotaque magiar: "Bônito".
Quando a fotografia do ianomâmi surgiu, Carlo nos contou com minúcias a história de como aquele quase menino havia sido alvejado em seu primeiro contato com o homem branco.
Enquanto caçava, ele havia subido em uma árvore para recuperar uma flecha e, lá em cima, ouviu um grupo de garimpeiros que passava embaixo, de onde veio o grito: "Macaco!", e o disparo de uma arma. O jovem caiu no chão baleado, sangrando. Os garimpeiros fugiram, e ele foi carregado pelo pessoal de sua aldeia até uma clareira onde os pilotos de garimpo, para salvá-lo, o colocaram em seu helicóptero e o carregaram até uma das pistas de pouso de monomotores. Dali, novamente por compaixão, ele foi transportado até Rio Branco, e uma cirurgia de emergência lhe salvou a vida.
Uma imagem torna-se simbólica quando resume metaforicamente uma história complexa. No caso desta imagem, aquele quarto limpo, lençóis coloridos e o corpo delicado contrastam com a brutalidade de uma cicatriz desproporcional rasgada em sua pele. Na história revelada 25 anos depois, a violência gratuita daqueles garimpeiros se contrapõe à solidariedade e compaixão dos que salvaram um ianomâmi.
Minha emoção veio pela maneira como a história chegou até minha câmera, quase como se todo aquele resgate tivesse acontecido não apenas para salvar uma vida mas para que aquela história fosse registrada, contada e eu pudesse ter sido parte de sua perpetuação.
Carlo nos contou ainda que aquele índio está vivo, em sua aldeia, em território ianomâmi, território que ele e Claudia ajudaram a demarcar, constituir e proteger.
JOÃO FARKAS, 60, é fotógrafo e lança o livro "Amazônia Ocupada" (Edições Sesc e editora Madalena) no dia 18/11, às 19h, na galeria Marcelo Guarnieri, onde expõe cerca de 30 fotografias da região feitas entre 1986 e 1993.
FSP, 08/11/2015, Ilustríssima, p. 7
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/11/1703015-um-ianomami-baleado.shtml
JOÃO FARKAS
Ofuscada pela dimensão do garimpo de Serra Pelada, pouco se falou de uma outra corrida pelo ouro que acontecia na Amazônia na segunda metade da década de 1980. Em menos de dois anos cerca de cem pistas clandestinas para aviões de garimpo foram abertas em Roraima, numa área que viria a integrar o território ianomâmi. Com essa invasão, os choques e conflitos entre garimpeiros e indígenas eram inevitáveis.
Em 1988, junto com o jornalista e amigo Ricardo Lessa estávamos baseados em Rio Branco procurando acessar e documentar aquele avanço como parte de nosso trabalho sobre a ocupação da Amazônia. Um dos contatos locais era Carlo Zacquini, missionário que convivia desde 1965 com os ianomâmis. Fotógrafo amador, Carlo tinha colocado Claudia Andujar em contato com os indígenas em 1970, quando ela trabalhava em um ensaio para a revista "Realidade".
Enquanto tentávamos acessar a zona conflagrada, os missionários estavam impedidos de acessar o território e os garimpeiros decolavam de pistas não oficias nos arredores de Rio Branco, em pequenos monomotores sem porta, preparados para voos de lançamento de cargas e apoio aos garimpos clandestinos.
Certo dia, Carlo nos chama e pergunta se queremos fotografar um ianomâmi baleado. Era preciso agir rápido e discretamente porque as autoridades policiais tentavam encobrir o ocorrido.
Fui com Carlo até o pronto-socorro. Os ianomâmis são coletores, de aparência bela e delicada. A imagem daquele jovem pós-operado, em um quarto limpo, deitado sobre roupa de cama azul, vestido num pijama listrado e colorido, nos dizia que ele estava muito bem cuidado. Mas uma cicatriz enorme em seu abdômen recém costurado, escondia uma história brutal.
Fizemos as fotos rapidamente e saímos dali antes de sermos descobertos. Inédita a imagem permaneceu por mais de 20 anos e nunca mais revi Carlo ou soube do destino daquele jovem.
Em 2014, enquanto preparava a exposição "Amazônia Ocupada", reencontrei Claudia e Carlo em São Paulo e contei que guardava aquela imagem. Carlo se interessou em vê-la -"as minhas fotos não ficaram boas", ele me disse.
Marcamos, então, e fui com as fotos da exposição até o apartamento de Claudia. Ela olhava as imagens com atenção e com econômicos comentários esporádicos com seu sotaque magiar: "Bônito".
Quando a fotografia do ianomâmi surgiu, Carlo nos contou com minúcias a história de como aquele quase menino havia sido alvejado em seu primeiro contato com o homem branco.
Enquanto caçava, ele havia subido em uma árvore para recuperar uma flecha e, lá em cima, ouviu um grupo de garimpeiros que passava embaixo, de onde veio o grito: "Macaco!", e o disparo de uma arma. O jovem caiu no chão baleado, sangrando. Os garimpeiros fugiram, e ele foi carregado pelo pessoal de sua aldeia até uma clareira onde os pilotos de garimpo, para salvá-lo, o colocaram em seu helicóptero e o carregaram até uma das pistas de pouso de monomotores. Dali, novamente por compaixão, ele foi transportado até Rio Branco, e uma cirurgia de emergência lhe salvou a vida.
Uma imagem torna-se simbólica quando resume metaforicamente uma história complexa. No caso desta imagem, aquele quarto limpo, lençóis coloridos e o corpo delicado contrastam com a brutalidade de uma cicatriz desproporcional rasgada em sua pele. Na história revelada 25 anos depois, a violência gratuita daqueles garimpeiros se contrapõe à solidariedade e compaixão dos que salvaram um ianomâmi.
Minha emoção veio pela maneira como a história chegou até minha câmera, quase como se todo aquele resgate tivesse acontecido não apenas para salvar uma vida mas para que aquela história fosse registrada, contada e eu pudesse ter sido parte de sua perpetuação.
Carlo nos contou ainda que aquele índio está vivo, em sua aldeia, em território ianomâmi, território que ele e Claudia ajudaram a demarcar, constituir e proteger.
JOÃO FARKAS, 60, é fotógrafo e lança o livro "Amazônia Ocupada" (Edições Sesc e editora Madalena) no dia 18/11, às 19h, na galeria Marcelo Guarnieri, onde expõe cerca de 30 fotografias da região feitas entre 1986 e 1993.
FSP, 08/11/2015, Ilustríssima, p. 7
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/11/1703015-um-ianomami-baleado.shtml
The news items published by the Indigenous Peoples in Brazil site are researched daily from a variety of media outlets and transcribed as presented by their original source. ISA is not responsible for the opinios expressed or errors contained in these texts. Please report any errors in the news items directly to the source