From Indigenous Peoples in Brazil
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News

Entrevista com Bartolomeu Meliá na Assembléia Continental Guarani

05/02/2006

Autor: Priscila D. Carvalho

Fonte: Cimi-Brasília-DF



O jesuíta Bartolomeu Meliá estuda o povo Guarani e convive com ele há
mais de 50 anos, tendo contato especialmente com os grupos que vivem
no Paraguai. Logo antes de conceder entrevista a este boletim, Meliá
havia feito uma fala na plenária onde estavam reunidos os indígenas,
na Assembléia Continental Guarani. Comunicou-se com os indígenas em
idioma Guarani, que ele fala fluentemente. Na entrevista, perguntamos
a ele qual tinha sido sua mensagem aos participantes. "Eu disse que
estava muito feliz. Falei que provavelmente é a primeira vez na
historia que há uma reunião assim de todas as etnias Guarani, e que
não se precisa ter vergonha de ser Guarani, de manter a tradição. O
que não quer dizer que tem que só manter como estão. Se querem escola,
que seja uma escola que não seja um instrumento para ficar fora de si
mesmo", relatou.

A divisão entre etnias que ele cita refere-se aos grupos que fazem
parte do complexo cultural Guarani, que se dividem, segundo os
antropólogos, em pelo menos três grupos: os Kaiowá, Nhandeva, M¨bya.

Veja abaixo trechos da entrevista:

Qual a importância desta reunião Guarani?

Se alguém pensar que vai sair daqui vai sair uma confederação Guarani,
pode ser que saia, mas provavelmente não é isso que vai sair.

O que tem importante nessa reunião é que para muitos deles é a
primeira vez que escutam o discurso na língua do outro, é uma ocasião
de se encontrarem juntos, de se escutarem, de verem que os problemas
de um são os problemas de outro. Agora, a assembléia não é como a
nossa assembléia, com compromisso de conclusões, do que vai ser criado.

O povo Guarani que está aqui na Assembléia Continental é descendente
de Sepé Tiaraju?

Os descendentes de Sepé se misturaram com a população gaúcha
primitiva. Os povos das missões eram Guarani, mas sempre houve grupos
que ficaram fora das missões, na selva, todo o tempo colonial e da
independência. E agora, neste momento de crise, eles reaparecem porque
não há mais selva e eles têm que enfrentar esta situação onde o seu
modo de vida praticamente está sendo impossível. Mas eles estão
enfrentando a barra, com muito mais criatividade do que nós mesmos. É
uma situação difícil. É como um pingüim se adaptar ao calor. Eles
conseguem, mas tem muito sofrimento. São um povo não apenas
resistente, mas persistente.

Como o Sr. percebe o diálogo da cultura Guarani com outras culturas?

Eles são muito mais abertos do que nós para aprender as coisas dos
outros, eles dialogam com a gente. O dialogo intercultural não somos
nós que fazemos, são eles. Quantos de nós falamos Guarani? E quantos
deles sabem português? A maioria. Eles aprendem, mas também estão
escolhendo não sair do modo de vida deles. É uma escolha positiva, não
é porque não saibam sair, é que não querem sair.

Estes povos são exemplos pra nós de dialogo intercultural, que não e
botar água no vinho e fazer uma coisa que não é nem água nem vinho.
Diálogo cultural é beber água e beber vinho. Para fazer esse diálogo,
o Guarani não precisa deixar de ser Guarani. Pelo contrário, se ele
deixar de ser Guarani, acaba o diálogo intercultural.

Essa frase pode parecer sensacionalista, mas os Guarani são muito
modernos. Um mundo sustentável segundo o nosso modelo é impossível. Já
estamos percebendo que isso não vai pra frente.Esperava-se tudo do
petróleo, e o que está dando? Guerra, problema.

O Rio Grande do Sul se manteve com suas matas limpas, com seus arroios
limpos, com isso tudo o que nos achamos que é a riqueza dos Guarani. E
muito mais no Paraguai e na da Argentina. Graças ao povo Guarani.

O modo de vida Guarani em grande parte é bastante moderado. Claro que
agora tem os jovens, tem problemas, mas todos nós temos problemas.

Quais as diferenças entre os grupos Guarani?

Hoje mesmo, vocês não percebiam, mas cada um dos que falava era de uma
língua ligeiramente diferente, pelo sotaque, pelas formas de
expressão. Eles têm coisas diferentes, ainda que sejam pequenas. A
religião é diferente em cada grupo. Para uma comparação, é como se
alguém falasse: eu sou mais católico e os outros são mais protestante,
mas a estrutura é a mesma. O que faz a grande unidade do povo Guarani
- e de todos os povos indígenas -, é que são uma economia do dom. Nada
é vendido ou comprado, tudo é distribuído. Quem tem prestígio é aquele
que sabe dar. Nas missões, era essa a economia que existia. Não entrou
dinheiro, não circulava moeda, todo mundo recebia de acordo com as
suas necessidades. Essa economia era a força das missões jesuítas

E como era a relação dos Guarani com as missões? Como ficava a questão
religiosa?

Eles eram cristãos fazia 150 anos, mas eles de certo modo recriaram
uma cultura que continuava sendo Guarani, embora não fosse a religião
Guarani tradicional. Requer um certo tempo explicar isso. Sepé parecia
estar muito satisfeito com a Igreja nas cartas que enviaram ao rei da
Espanha. "Nós temos igreja de pedra, casa de pedra, ervais, algodoais"
diziam nas cartas. Na época, até tecnologicamente eles estavam muito
pela frente de Espanha e Portugal. Eles tiveram gráfica, que demorou
mais 100 anos para existir em Buenos Aires e 150 anos no Brasil.
Publicavam os próprios livros em Guarani. Eles faziam sinos de bronze,
instrumentos musicais, até a sua própria arte. Quando havia guerra na
Colônia de Sacramento[atualmente Uruguai], eram os Guarani que iam
defender a Coroa espanhola, e por isso que eles diziam: nós fizemos
tanto pela Coroa espanhola e agora eles querem que nós deixemos todas
estas cidades. Para comparar, até o gado quando é expulso de sua terra
ele ataca.

Ainda que fosse um espaço positivo, a Missão tinha problema de
imposição religiosa?

Não era tanto imposição. Foi uma atração. Houve sobretudo três
imposições fortes, que aparentemente não têm nada a ver com religião,
mas que chegam até ela. Foram o abandono da antropofagia, o vestir, e
deixar a poligamia. Mas mesmo a poligamia não foi assim da noite para
a manhã, foi um pouco assim... aliás, era não era geral, era mais dos
chefes.

E, efetivamente, eles trocaram de religião. Mas, também, a nova
religião trazia muita musica, e você sabe o quanto os Guarani gostam
de musica, de dançar. A língua, foi o missionário que foi convertido â
língua Guarani, que chegou a ser uma língua, podemos dizer, culta,
escrita, normalizada.

O sistema econômico da reciprocidade se manteve. As coisas eram
vendidas, mas fora da missão. O produto que era vendido entrava já em
forma de produto. As vezes tinha que comprar tecido, papel, papéis pra
musica, alguns instrumentos mais sofisticados. Mas isso era comprado
pela venda de praticamente quatro produtos: a erva mate, o fumo,
algodão e couros. Mas era o excedente, depois de satisfeita as
necessidades internas, que era vendido.

Não é como a nossa exportação, que se o povo passa fome mas a
exportação de gado dá mais proveito, exportamos o gado sem problema.

Os Guarani pensavam: Por que nos vamos ter que deixar o que já temos,
tinha custado trazer pedras, fazer as construções. Era um bem da
comunidade. Sepé e outros lideres resistiram durante 3 anos a fazer a
Guerra, e enquanto houve essa guerra de guerrilha eles estavam
vencendo. Mas chegou um momento que parecia que os brancos sõ
entendiam a linguagem da Guerra.

Sepé Tiaraju talvez teve o erro de querer fazer batalha como se fosse
exército grande, e ai exército contra exército eles foram esmagados.

E temos que reconhecer que os Jesuítas se omitiram. Alguns pensaram
que era uma guerra sem sentido, que não iam poder ganhar. Estavam a
favor dos índios, mas não sentiram a capacidade deles lutarem. E tinha
também que diziam que os Jesuítas tinham formado uma república, um
Estado dentro do Estado, que não obedeciam mais nem ao Rei de Portugal
nem ao rei da Espanha, e se eles entrassem na Guerra eles iam
comprovar isso. Era uma chantagem.

O Sr. Pode falar sobre as terras Guarani no Paraguai?

A terra Guarani é uma miséria. Como aconteceu no Brasil, os índios
perderam a terra sem perceber. Eles estavam no mato, depois chega um
dia alguém com um papel dizendo que a terra é deles, e não se pode
dizer em que momento foi isso. Não tem um só livro de história que
conte isso.

No Paraguai a desorganização até do cartório é tão grande que ninguém
mais sabe quem foi o último dono. Essas transferências de posse da
terra se fizeram sobretudo no tempo do [Alfredo] Stroessner [ditador
paraguaio] . Havia terras de 2 milhões de hectares. Hoje, as grandes
terras são vendidas aos brasileiros, que são quem paga melhor, depois
dizem que não sabiam que ali viviam índios. É uma novela de terror.

No melhor dos casos, se deixa as coisas como estão. Agora, reconhecer
as terras dos índios, não. Em alguns casos, e isso foi muito errado,
se comprou terras para os índios. Como comprar terras que já eram
deles? a igreja católica, outra religião e algumas ONGs fizeram isso.
Ms isso não vai muito longe, porque não temos capacidade de pagar o
que paga uma empresa brasileira.

O Sr. é um dos maiores estudiosos da cultura Guarani. O que te levou a
se dedicar a estes estudos?

Isso de maior não tem importância, é uma coisa ruim da nossa cultura.
Agora, o que me levou a estudar foi uma série de circunstâncias. Eu
estou no Paraguai faz 51 anos, desde 1954. Naquele tempo, muita gente
dizia que o Guarani não tinha futuro, que em 20 anos ninguém mais ia
falar Guarani. O padre nos disse que só íamos prosseguir os estudos se
aprendêssemos Guarani. Isso muda a vida da gente. Desde pequeno eu sou
bilíngüe, minha língua não é o espanhol, é um dialeto do Catalão, e
sem perceber, com isso você domina duas culturas. Quando eu aprendi o
Guarani foi uma terceira visão. Isso e extraordinário. Por isso
aprender uma língua, sobretudo quando você tem menos de 25 anos, é um
exercício que nenhuma universidade vai te dar. Depois que eu voltei da
França, em 1969, eu queria saber o que era o Guarani. Eu sabia a
língua, mas não sabia o que era o indígena Guarani do mato. Tive sorte
que houve um grande pesquisador paraguaio que praticamente me tomou
como seu filho, seu herdeiro. Ele me introduziu perto dos índios
Guarani. Todas as oportunidades que eu tinha, eu ia para o mato.
 

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