From Indigenous Peoples in Brazil
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Pioneirismo e legado: Eunice Paiva ajudou a Funai a demarcar territórios e contribuiu para o reconhecimento dos direitos indígenas

27/02/2025

Fonte: Funai - https://www.gov.br



Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva (1929-2018) foi uma das pioneiras na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil. Em 1976, aos 47 anos, ela se formou em Direito e contribuiu de forma significativa para a elaboração do capítulo da Constituição Federal de 1988 que trata sobre os direitos territoriais, o reconhecimento à diversidade étnica e cultural e à autonomia e autodeterminação dos povos indígenas. Eunice também atuou junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na década de 1980, tendo papel central na demarcação das terras Krikati e Awá, no Maranhão, e Xikrin do Rio Cateté, no Pará.

A história de Eunice Paiva ganhou os holofotes no Brasil e no mundo por meio do filme "Ainda Estou Aqui", que rendeu à Fernanda Torres a conquista inédita do Globo de Ouro para o Brasil na categoria de melhor atriz. No próximo domingo (2), o filme dirigido por Walter Salles vai concorrer ao Oscar 2025 nas categorias melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz.

A gente [Funai] só conseguiu demarcar a Terra Indígena Krikati depois que a Maria Eunice conseguiu anular todos os títulos de propriedade que tinham sido apresentados no processo. Foi a partir da atuação dela que a gente conseguiu destravar o processo depois de décadas. Artur Nobre, servidor da Funai que trabalhou com Eunice Paiva
Mãe de cinco filhos, Eunice Paiva se notabilizou como um símbolo de resistência e enfrentamento à ditadura militar no Brasil, que teve início em 1o de abril de 1964 e terminou em 15 de março de 1985. O período é considerado um dos mais sombrios da história do país, marcado por perseguições a opositores, censura e violações de direitos humanos.

O relatório de 2014 da Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que cerca de 434 pessoas foram mortas ou desapareceram durante os 21 anos do regime ditatorial. O documento também aponta que, entre outras violações aos direitos dos povos indígenas, "foram empregados centros clandestinos fora das grandes áreas urbanas, tais como os criados para prisão ilegal e arbitrária e outras violações de direitos humanos de indigenas em suas próprias terras, como ocorreu entre os Kaingang, Terena e Kadiwéu (respectivamente, povos indígenas do sul de São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul)".

Outros 20 mil brasileiros foram submetidos à tortura e mais de 4,8 mil punidos com perda de direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão. Entre eles Rubens Paiva, marido de Eunice, que teve o mandato de deputado federal cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos na legislatura 1963-1967, logo após o golpe militar. Em janeiro de 1971, o ex-deputado foi levado, torturado e assassinado por agentes da repressão. Com isso, Eunice Paiva, que chegou a ficar presa por 12 dias, travou uma verdadeira batalha contra o Estado para o reconhecimento da morte do marido, o que levou 25 anos para se tornar realidade. Somente em 1996 a advogada conseguiu a certidão de óbito de Rubens Paiva.

Eunice Paiva na Funai
Assim como milhares de brasileiros, Eunice Paiva sentiu na pele a violação de direitos durante a ditadura militar, o que contribuiu para a sua atuação voltada à proteção dos direitos humanos e promoção da defesa de grupos indígenas. A advogada era uma das poucas pessoas especializadas e comprometidas com os direitos indígenas na década de 1980. Por isso, nesse período, foi convidada para atuar como consultora da Funai no âmbito de um convênio com a Companhia Vale do Rio Doce devido à construção da Estrada de Ferro Carajás. Isso porque a ferrovia, que liga São Luís, no Maranhão, a Parauapebas, no Pará, afetou diversas terras indígenas nas proximidades.

Eunice Paiva, assim como outras pessoas dessa época, tinha uma visão da necessidade de fortalecer a autonomia dos povos indígenas contra uma tradição histórica de tutela, de dependência em relação ao Estado. Ela teve um grande engajamento desde o primeiro momento do processo de redemocratização, sendo, assim como outros, precursora de tudo que aconteceu depois.Márcio Santilli, deputado federal entre 1983 e 1987 e presidente da Funai em 1995
A consultoria de Eunice foi essencial, segundo o antropólogo Artur Nobre Mendes, atual coordenador-geral de Gestão Estratégica da Funai, que trabalhou com ela no convênio. Ele conta que a advogada foi contratada para atuar no processo de regularização fundiária dos territórios afetados pela ferrovia. Artur, servidor da Funai há 41 anos, define o resultado do trabalho de Eunice Paiva como "fantástico", especialmente na Terra Indígena (TI) Krikati, localizada no estado do Maranhão.

"A gente [Funai] só conseguiu demarcar a Terra Indígena Krikati depois que a Maria Eunice conseguiu, primeiro, anular todos os títulos de propriedade que tinham sido apresentados no processo como sendo válidos, mas que ela conseguiu anular um por um, monstrando que nenhum deles tinha validade. Ela conseguiu fazer com que o juiz nomeasse uma perita para fazer nova identificação da área. O próprio juiz homologou esse estudo e mandou demarcar a área. Então, foi a partir da atuação dela, que a gente conseguiu destravar o processo depois de décadas", destaca o servidor.

Segundo Artur Nobre, embora houvesse a vontade da Funai em demarcar a TI, o processo estava travado por decisões judiciais. Quando Eunice Paiva conseguiu a anulação dos títulos de propriedade e os ocupantes irregulares ficaram sem argumento jurídico para defender sua permanência no território, o processo pôde ser retomado. "Foi uma luta. Mesmo depois disso tudo a gente levou quase dez anos para conseguir demarcar a terra, porque havia uma resistência que já não era mais judicial, era uma resistência física mesmo, eles impediam a gente de demarcar", lembra. De ocupação tradicional do povo Krikati, o território foi homologado por decreto presidencial em 2004, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Documento histórico: parecer de Eunice Paiva que destravou demarcação da TI Krikati

Artur Nobre relata que Eunice se integrou perfeitamente ao grupo que atuava no convênio da Funai com a Companhia Vale do Rio Doce, constituído, em sua maioria, por antropólogos e indigenistas. "Ela era uma pessoa super fácil de lidar, uma pessoa tranquila. Era uma pessoa alegre, vivia sorrindo, igual à cena do filme 'Ainda Estou Aqui' em que ela diz aos filhos para sorrir. O fotógrafo queria eles tristes e ela falou: sorriam. Ela era uma pessoa que tinha sempre um sorriso no rosto, mas era contida. Uma pessoa muito delicada, muito simples, humilde. Falava baixo, não era de se exaltar, de falar alto", conta o antropólogo sobre o período em que trabalhou com Eunice Paiva.

O trabalho da advogada também foi essencial para a regularização da Terra Indígena Xikrin do Rio Cateté, no Pará. Na época em que atuou como consultora da Funai, havia uma fazenda dentro do território de ocupação tradicional do povo Kayapó que foi mantida no local por força de decisão judicial provisória.

A situação impedia a autarquia indigenista de demarcar a área, mesmo com a portaria de declaração de limites publicada. Diante disso, Eunice Paiva e o advogado da Funai Carlos Amaury da Mota atuaram em conjunto e demonstraram a inexistência de título de propriedade da fazenda. O parecer foi acatado pela justiça, o que permitiu à Funai demarcar a TI.

Documento histórico: parecer de Eunice Paiva e Carlos Amaury sobre a TI Xikrin do Rio Cateté

A atuação de Eunice também foi decisiva na demarcação da TI Awá, do povo Guajá, localizada no Maranhão. A advogada conseguiu a interdição urgente da área para proteger a comunidade indígena que estava sendo alvo de ataques de invasores. O parecer foi fundamental para a posterior demarcação do território pela Funai.

Direitos indígenas
A atuação de Eunice Paiva, assim como do grupo do qual fazia parte, na defesa dos direitos dos povos indígenas, pode ser analisada em duas perspectivas, baseadas na proteção da dignidade da pessoa humana. A primeira é a luta pela conquista de direitos com diálogo e participação dos povos indígenas. A advogada se fazia presente junto às comunidades com o objetivo de conhecer a realidade nas quais estavam inseridas. Em uma segunda perspectiva, Eunice trabalhou em busca da efetivação desses direitos reconhecidos. Ela defendia a demarcação dos territórios indígenas por entendê-los como fundamentais para a sobrevivência física e cultural desses povos.

Eunice Paiva e nomes como Ailton Krenak, Manuela Carneiro da Cunha, Dalmo Dallari, Carlos Marés, Carmem Junqueira e outros atuaram firmemente na elaboração da estrutura jurídica de proteção aos indígenas na década de 1980. No período, marcado pelo fim da ditadura militar e início do processo de redemocratização do país, ainda predominavam visões equivocadas. Entre elas, destaca-se a perspectiva de que ser indígena era uma condição transitória e que o Estado deveria adotar uma política de integração dos indígenas à sociedade nacional visando um suposto desenvolvimento econômico. Também de acordo com o entendimento do regime militar, os indígenas eram incapazes e, por isso, cabia à Funai exercer o regime de tutela.

Para reverter essa lógica, o grupo que lutava pelos direitos dos povos indígenas, do qual Eunice Paiva fazia parte, promoveu amplos debates, com participação dos povos indígenas, que contribuíram nas discussões da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e resultaram na construção dos dispositivos constitucionais sobre os direitos indígenas. Márcio Santilli foi deputado federal entre 1983 e 1987 e presidente da Funai em 1995. Ele lembra que a inclusão dos dispositivos sobre os indígenas no texto constitucional avançou mesmo com toda a resistência enfrentada na época, sobretudo, por parte de mineradoras. Santilli avalia que a Constituição facilitou a defesa e o acesso dos povos indígenas a direitos. Para o ex-deputado, Eunice Paiva e as poucas pessoas que atuavam por esses direitos tiveram uma participação fundamental no processo.

"Eunice Paiva, assim como outras pessoas dessa época, tinha uma visão da necessidade de fortalecer a autonomia dos povos indígenas contra uma tradição histórica de tutela, de dependência em relação ao Estado. A gente contava nos dedos os advogados, as advogadas com quem a gente podia contar nessa época. E ela era uma delas, então isso não tem preço. Ela teve um grande engajamento desde o primeiro momento do processo de redemocratização, sendo, assim como outros, precursora de tudo que aconteceu depois", pontua Márcio Santilli.

O ex-deputado enfatiza que, antes da Constituição, as competências em relação a todos os serviços destinados aos povos indígenas eram concentradas na Funai, entre eles, saúde e educação. A partir da nova Constituição as instituições públicas federais passaram a assumir suas competências específicas. A saúde passou a ser responsabilidade do Ministério da Saúde, e a educação ficou a cargo do Ministério da Educação, por exemplo.

Esse reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição brasileira com a responsabilidade compartilhada entre os entes federados é fruto da atuação de Eunice Paiva que se juntou à luta dos povos indígenas, juntamente com outros atores que também foram cruciais para a construção e consolidação do texto constitucional em favor dos direitos indígenas.

https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2025/eunice-paiva-ajudou-a-funai-a-demarcar-territorios-no-maranhao-e-no-para-e-contribuiu-para-o-reconhecimento-dos-direitos-indigenas
 

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