From Indigenous Peoples in Brazil
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'O mundo de vocês, brancos, me deixa muito triste'

15/05/2025

Autor: YAIRA, Yaira

Fonte: Sumaúma - https://sumauma.com/o-mundo-de-voces-brancos-me-deixa-muito-triste/



'O mundo de vocês, brancos, me deixa muito triste'
Nesta entrevista, a Indígena Ehuana Yaira conta a relação indissociável entre a mata e o corpo feminino. A artista e escritora Yanomami foi a primeira do seu povo a fazer uma fala pública na Europa, no ciclo "A Floresta É Mulher", do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona


Eliane Brum, Barcelona, Espanha
15 maio 2025

Ehuana Yaira Yanomami sofre. Os sapatos apertam, mas como pisar em terra asfixiada por concreto sem sapatos? Ehuana dói. "Por que os brancos não olham nos olhos uns dos outros?" Ehuana percebe, mas não entende. "Por que essas pessoas estão dormindo na rua? O que elas vão comer? Por que ninguém cuida delas?" Ehuana entra no apartamento e se espanta, ela cuja casa coletiva tem mais de 150 pessoas, a maioria delas mulheres: "Por que vocês vivem fechados em suas casas, como os tatus vivem em seus buracos?".

Ela chega a Barcelona vinda da Floresta Amazônica, da Terra Indígena Yanomami, entre os estados do Amazonas e de Roraima. Casa-Floresta de onde saiu só depois dos 16 anos, e poucas vezes. Para chegar à capital da Catalunha pegou sete voos. Ehuana é uma sonhadora de mundos que estranha Barcelona, um dos principais destinos turísticos da Europa. É arriscado nos descobrir pelos seus olhos, porque seu assombro revela nosso ridículo.

Ao lado dela está Ana Maria Machado, antropóloga, pesquisadora, tradutora do Yanomam, uma das seis línguas do povo Yanomami. Não é um encontro episódico. Uma não estaria ali sem a outra. A história dessas duas mulheres conta da possibilidade do encontro entre mundos. Do encontro não violento, do encontro solidário, do encontro amoroso. Uma traduz a outra para seu respectivo mundo, carrega a outra pela mão rumo ao desconhecido de uma, conhecido da outra. É um alumbramento vê-las juntas, nessa relação impenetrável para qualquer outra pessoa.

Estão ali para a primeira fala pública de uma mulher Yanomami na Europa. No Brasil, Ehuana só falaria em público pela primeira vez cinco meses mais tarde. Era o final do outono europeu e o frio já perturbava Ehuana, o frio do tempo, o frio das pessoas. Ehuana se horroriza com o que enxerga dos nossos hábitos, mas também ri muito de nós. Somos ao mesmo tempo uma civilização de triste figura, mas também muito engraçados, segundo ela. Compartilha em Yanomam suas observações com Ana, e as duas morrem de rir. Ehuana ri como no nosso mundo só as crianças (ainda) são capazes de rir.

Ehuana Yaira e Ana Maria Machado em Barcelona, onde participaram de uma série de palestras e entrevistas em novembro de 2024. Foto: Ilana Katz

As duas mulheres estão ali para a primeira entrevista pública do ciclo "A Floresta É Mulher", idealizado por mim durante uma residência de três meses no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, uma das instituições mais potentes da Europa, liderada majoritariamente por mulheres. As quatro entrevistas do ciclo serão publicadas por SUMAÚMA a partir desta semana, com o apoio do CCCB.

Todas elas iniciam por uma fala da entrevistada-protagonista em sua língua. Essa fala nunca é traduzida - é um aviso de que a plateia precisa se arriscar a um mundo que não compreende, que não conseguirá alcançar por completo mesmo com a melhor interpretação de palavras. A partir desse saber que não sabe, precisa fazer o esforço de se mover em direção a outra experiência de habitar a casa-planeta que compartilhamos. Ou melhor, que povos como o dela protegem - e uma minoria não Indígena destrói diante da omissão da maioria.

Sigo sem saber o que Ehuana disse naquela noite, para um público de 334 pessoas. Só Ana Maria foi capaz de entender. O que foi dito está guardado nelas, entre elas. Mas na plateia algumas pessoas choraram, porque o corpo inteiro de Ehuana dizia, para muito além das palavras.

Nesta entrevista, Ehuana faz a antropologia de seu próprio povo - e também antropologiza os não Indígenas, ao olhar para o objeto que somos nós, os comedores de mercadorias.

ELIANE BRUM - Como vocês se conheceram e o que significam uma para outra? Como definiriam essa relação?

EHUANA YAIRA YANOMAMI - Awei. Eu e a Ana Maria ficamos amigas faz muito tempo. Meu pai, que é um xamã, e o pai dela pensaram em nos fazer ao mesmo tempo, e, por isso, temos a mesma idade. Ela morava muito longe, mas ela chegou em nossa terra. Então eu pensei em fazer um livro sobre menstruação e a chamei. Conversamos muito e começamos a fazer pesquisa. Também fizemos juntas uma pesquisa sobre xamanismo. Nós nos ajudamos muito, nós mandamos nosso pensamento com força. Quando vou em outras terras, ela me ajuda, ela sabe falar muitas das línguas dos napë e também sabe a língua Yanomam, e também sabe falar a língua de vocês, que são outros napë. Nós damos os braços com firmeza. Quando vou em outras terras, ela me orienta, já que os caminhos de vocês, napë, são confusos. Ela me ensina. E quando ela chega em minha casa, eu também ensino ela. Eu também lhe dou minha língua Yanomam. É assim que fazemos, pois nós duas queremos lutar.

ANA MARIA MACHADO - Também fico muito emocionada porque nunca foi uma coisa que eu imaginei que aconteceria na vida, que uma das minhas melhores e mais próximas amigas vivesse em uma aldeia, em uma casa coletiva no meio da Amazônia, e que, apesar de falarmos línguas diferentes, o que nós construímos é de uma singularidade e de uma profundidade... Certamente Ehuana é uma das melhores amigas que eu tenho na vida.

Meses atrás nós estávamos fazendo o encontro das Mulheres Yanomami, que a Ehuana e eu, junto com a Hutukara Associação Yanomami e o Instituto Socioambiental, organizamos. É um encontro muito grande, com 80 mulheres. E nós passamos seis dias traduzindo e trabalhando juntas. E a Ehuana fala, e eu falo. E foram dias superexaustivos. À noite, ela sabia que eu estava triste, preocupada com os meus filhos. E ela falou: "Vamos lá, eu vou caminhar com você na Floresta à noite. Vamos na internet, pra você mandar uma mensagem para os seus filhos".

Então, faz muito pouco tempo que caminhávamos na Floresta, à noite, e eu me imaginava vendo de cima toda aquela imensidão, a Floresta cheia de vida, os barulhos dos animais, o escuro. Mas eu não tinha medo, porque nós estávamos juntas. E, passado muito pouco tempo, estamos juntas também caminhando à noite, mas os termos mudaram. Ehuana sofre porque usar sapato é muito difícil, e porque faz muito frio. O frio corta o rosto, não tem como escapar. São muitas coisas, muitas luzes, muitas informações, mas juntas nós damos os braços e seguimos, porque a vida é muita coisa.

Ehuana, o teu povo acabou de viver uma grande invasão garimpeira. Mais uma. Como o garimpo impactou as mulheres Yanomami, as mulheres adultas e as mulheres crianças?

EHUANA - Vou contar o que aconteceu em nossa terra. Entre 2018 e 2022, nossa terra foi invadida por milhares de garimpeiros. Morreram muitos dos nossos filhos e nós, mães, sofremos muito. Quando os garimpeiros chegam, eles nos fazem sofrer. Eles expulsam os animais de caça de perto das nossas casas, sujam nossos rios, nos fazem passar fome, espalham malária, diarreia, verminose, todo tipo de doença. E por isso eu vim até aqui, para falar sobre isso. Vocês, brancos, nos fizeram morrer, nos fizeram sofrer. E nós, mulheres, ficamos muito revoltadas com isso. Ficamos muito preocupadas, porque se no futuro tiver outro presidente como [Jair] Bolsonaro, como é que vamos ficar? Nós moramos muito longe na Floresta, mas vocês, napë, chegam e nos matam pela fome. E é por isso que eu estou muito revoltada. E é por isso que estou aqui lutando. Nós, mulheres, fazemos reunião pra falar sobre saúde, sobre como proteger a nossa Floresta. Nós não queremos e não vamos aceitar a volta dos garimpeiros. Porque quando chegam os garimpeiros, aquelas nossas filhas ainda muito pequenas, os garimpeiros chegam e comem suas vaginas, estupram essas meninas. Por isso, eu sinto muita raiva. Eles também aliciam nossos jovens, fazem nossos jovens trabalhar pra eles. Nós não aceitaremos isso. Nós, mulheres, que parimos os nossos filhos, não vamos aceitar e vamos continuar a lutar.

Ehuana no 14o Encontro das Mulheres Yanomami (2023), na comunidade Monopii; e com Ana Maria no 15o Encontro das Mulheres Yanomami (2024), na comunidade de Watoriki. Fotos: arquivo pessoal

Na primeira reportagem de SUMAÚMA, a plataforma de jornalismo que a gente criou na Amazônia, vocês, Ana e Ehuana, foram as intérpretes e tradutoras. E, naquele momento, uma das mulheres Yanomami perguntou por que os garimpeiros querem comer as vaginas das mulheres Yanomami. Ehuana, você pode falar um pouco sobre essa violência sexual que escutou também como intérprete?

EHUANA - Na nossa terra, quando chegam os garimpeiros, eles sempre fazem com que jovens e moças se aproximem do lugar onde eles trabalham. Eles chamam as meninas muito novas que moram perto do garimpo. É assim que eles agem. Primeiro vem um homem e estupra uma menina. E depois vem outro, outro, outro e estupra a mesma menina. E eu tenho muita raiva. Nós vimos uma menina que todos eles comeram a vagina dela até ela quase desmaiar, eles a entregaram desmaiada na comunidade dela. Ela quase morreu. Nós não queremos isso, nós não queremos isso de maneira alguma. Não queremos que eles comam a vagina das nossas filhas.

ANA MARIA - Vou só acrescentar uma informação: entre 2018 e 2022, a terra Yanomami, que é uma população de cerca de 31 mil pessoas, foi invadida por mais de 20 mil garimpeiros. E são majoritariamente homens que passam grandes períodos vivendo na terra Yanomami, trabalhando ilegalmente. E por isso também eles têm muito dinheiro, muita bebida, e vão atrás de meninas, às vezes muito novas, estupram essas meninas em troca de arroz, em troca de um frango ou de alguma outra coisa. E hoje tem muitas meninas que acabaram engravidando desses garimpeiros, o que deixa todas as mulheres muito revoltadas.

Ehuana, os napë, que é como os Yanomami chamam os brancos e também os inimigos, olham para a Floresta e veem mercadorias, ouro, cassiterita, madeira. Como vocês, Yanomami, se relacionam com a Floresta?

EHUANA - Nós, Yanomami, não nos relacionamos com mercadorias, com ouro, cassiterita, madeira. Nós, Yanomami, nos relacionamos com a Floresta. Nós somos mais de 30 mil pessoas e vivemos na Amazônia. Mas vocês chegam até a Floresta onde vivemos e acham que ela existe sem razão. Mas não é assim. Nós, Yanomami, já moramos ali. É a nossa casa. É também a casa dos xapiri, [que são os espíritos auxiliares, pequenos seres de luz, que ajudam os xamãs]. E moram também os animais, as árvores. Mas vocês chegam ali e estragam tudo. "Aqui tem ouro! Vamos pegar essas madeiras!" Vocês só pensam nisso. Mas nós, Yanomami, não pensamos assim. Nós, Yanomami, defendemos a Floresta. Pois ali existe Urihinari, que é o espírito da Floresta. Existe também Arokohiriwë, que é o espírito da árvore do Jatobá. Maamariwë, o espírito das pedras, Yariporari, o ser das tempestades. E é por existir todos esses seres que a Floresta é perfumada, é fresca. E é por isso que nós cuidamos dela. Nós estamos ali e a protegemos. Se estragarmos a Floresta, como é que vamos ficar? Tudo vai se transformar. Não pense que a Floresta existe sem razão. Se vocês destruírem a Floresta, todos nós iremos sofrer. Se acabarmos com a Floresta, os xapiri se vingarão, eles não morrem. Apesar de o pai do xapiri [o xamã] morrer, apesar de seu pai já ter se acabado, o seu espectro é vingativo. Quando eles se juntarem, seus espectros se vingarão e matarão vocês, napë. É isso o que dizem os xamãs e é isso o que explicam. E eu guardo em meus ouvidos.

Sua irmã foi a primeira xamã da sua comunidade, né, Ehuana? Como foi que ela se tornou uma xamã?

EHUANA - Entre nós, existem muitos xamãs homens. Meu pai, já falecido, foi um grande xamã. Eu não sou xamã, mas sonho muito, eu sei sonhar bem. Mas a minha irmã se tornou xamã. É muito difícil para uma mulher se tornar xamã. Mas, em algum momento, ela ficou doente. Ficamos muito preocupados. Pensávamos o que ela tinha, que doença seria, se ela iria morrer. Um dia, ela saiu correndo pela Floresta. E, aos poucos, entendemos que eram os espíritos xapiri que antes viviam no peito de meu pai e que agora voltavam para fazer de minha irmã uma xamã. E que minha irmã precisaria se tornar xamã para que não morresse. E foi assim que ela se tornou xamã, a primeira xamã mulher de nossa comunidade. Eu não me tornei xamã, mas eu sou uma liderança responsável em minha comunidade. Então, ela luta no mundo dos xamãs, e eu luto no mundo dos napë.

Ehuana, a Floresta acolhe as crianças que nascem. E você fez três dos seus quatro partos na Floresta, na mata. Você pode nos contar como é um parto na Floresta? E por que é preciso da Floresta para fazer parto?

EHUANA - Nós fazemos nossos filhos nascerem na Floresta. A forma como nossos filhos nascem, como temos o nosso parto, é diferente de como vocês, brancas, fazem. Nós fazemos da mesma forma que os nossos antigos também faziam. Na primeira vez, em nosso primeiro parto, sempre temos ajuda. Então, várias pessoas acompanham, às vezes dez pessoas, a mãe, irmãs, cunhadas. Os homens nunca podem participar, nunca podem ver o parto. Então, no meu primeiro parto, de meu primeiro filho, minha mãe e minha irmã me ajudaram. Mas, já no segundo, eu fui sozinha para a Floresta. Minha filha nasceu ali, quando eu estava de cócoras. Cortei o cordão umbilical sozinha. Peguei a placenta e coloquei no alto de uma árvore, onde tinha o ninho das formigas Tucandeiras, [que são formigas das mais venenosas que tem na Amazônia]. E nós colocamos a placenta ali, que é para que a criança se torne valente quando ela crescer.

É assim que nós, Yanomami, fazemos. Nós não sabemos ter filhos na cidade. Nós não sabemos ter filhos deitadas. Nós precisamos do apoio de uma árvore para parir. E é por isso que estamos lutando, porque muitas mulheres sofrem quando vão para os hospitais na cidade, quando precisam ter o parto ali. Não aceitamos ter a mão enfiada [na vagina para puxar o bebê], é isso o que estamos dizendo agora que estamos nessa luta [contra a violência obstétrica].

Ana Maria com seu filho Lino e Ehuana com sua filha Delmira. A maternidade sempre foi uma ponte entre os mundos tão diversos dessas duas mulheres. Foto: Helder Perri/arquivo pessoal

Ehuana, a sua quarta filha nasceu na cidade, na Casa de Apoio à Saúde Indígena, a Casai de Boa Vista. Como foi essa experiência?

EHUANA - Eu estava acompanhando o tratamento de saúde da minha filha, e aí entrei em trabalho de parto. Mas, como eu estava com muito medo dos napë, fui pra um lugar onde tinha uma pequena mata, e ali eu tive minha filha sozinha. E é assim que nós fazemos. Nós criamos nossos filhos e filhas na beira do fogo. E assim fazemos que eles cresçam com saúde.

Ehuana, eu queria que você nos contasse o que é um napë...

EHUANA - Eu não conhecia os napë quando eu era pequena, e havia apenas aberto o meu pensamento. "Será que só existem nós, os Yanomami?" Era isso o que eu pensava. Depois, quando abri meu pensamento, eu vi muitos de vocês, napë. Quando chegaram em minha terra, outros napë que tinham o rosto cheio de pelos, aqueles com grandes barbas, me fizeram sofrer. Os napë têm pelos no rosto, e aquilo me deixava cheia de medo. Então eu cresci. Quando meu pensamento era ainda pequeno, eu não havia visto vocês e não pensava que vocês fossem tantos.

Mas eu cresci e, quando fiz 15 anos, tive meu primeiro filho e apareceu em mim uma grande tristeza. Naquela época, meu tio, a liderança Davi Kopenawa, junto com a fotógrafa Claudia Andujar, o antropólogo Bruce Albert e o missionário Carlo Zacquini, lutaram e conseguiram a demarcação da nossa terra. Era 1992.

Depois daquele momento, a nossa terra estava demarcada, estávamos mais protegidos, mas aí meu tio chegou e levou uma televisão para a aldeia, pois ele queria mostrar para nós os riscos que corríamos. Ele mostrou um vídeo onde tinha outros Indígenas sofrendo, onde uma Indígena era estuprada, e eu chorei muito vendo aquele filme, porque não sabia que existia aquilo.

Então, mais tarde, quando meu filho nasceu, Davi Kopenawa explicou, no meio da nossa grande casa coletiva, em uma conversa onde todos escutam o que eles falam. Ele disse: "Meu povo, vamos ficar espertos, tem coisas muito ruins acontecendo com a gente, os brancos fazem coisas muito ruins". Naquele momento, eu senti uma dor profunda, sofri muito, não consegui dormir. Tinha meu filho muito pequeno no colo e pensava: "Como é que eu vou fazer, como vou alimentar meu filho, onde vamos morar?". E foi por isso, por causa dessa grande preocupação e por causa dessa tristeza, que eu pensei em lutar. Eu passei a noite sozinha, pensando naquilo, sofrendo, e é por isso que hoje estou aqui lutando.

O antropólogo Bruce Albert, o líder Yanomami Davi Kopenawa, a fotógrafa Claudia Andujar, Ana Maria e Ehuana na abertura da exposição 'The Yanomami Struggle', em 2023, em Nova York. Foto: arquivo pessoal

Ehuana, não foi fácil para você se tornar uma liderança sendo mulher, não foi fácil você ser a primeira mulher a falar nesse mesmo lugar onde só os homens falavam. Como foi na primeira vez, como você fez para ter coragem de falar, de ser uma mulher falando pela primeira vez num lugar onde só homens falavam?

EHUANA - Eu tinha menos de 30 anos, em 2011, e me tornei professora. Então, pensei sobre isso, sobre precisar falar. Um outro professor de nossa aldeia disse que eu precisava ir até o meio da casa coletiva e dizer uma mensagem para os alunos.

ANA MARIA - Um parêntese meu: essa é uma arte verbal chamada hereamu, feita majoritariamente pelos homens, e é uma forma de transmitir recados ou fazer discursos moralizantes aos jovens. O homem vai para o meio da casa e todas as pessoas que estão deitadas em suas redes escutam o que ele está falando.

EHUANA - Então, eu fui até o meio da casa. Mas eu tinha muita vergonha, tinha muito medo. Fui até o meio da casa, mas não senti coragem. Me agachei e fiz xixi, pois é ali que nós fazemos xixi à noite. E voltei depois pra minha rede e me deitei. No outro dia, tentei novamente fazer o discurso hereamu, mas, mais uma vez, não tive coragem. Então, no terceiro dia, eu consegui.

Eu fui pro meio e falei o que eu precisava falar. Então, mais tarde, quando teve o encontro dos 25 anos da demarcação do território Yanomami, me chamaram e eu fiz uma pequena fala em uma reunião, mas era ainda uma fala curta. Com o tempo, a minha raiva aumentou e as minhas palavras também aumentaram. E hoje eu consigo falar.

Quando eu era pequena, quando eu era criança, as mulheres não falavam. Eu abri esse caminho sozinha. A Fátima, que é a mulher da grande liderança Davi Kopenawa, hoje ela é responsável por prestar atenção na saúde e por cuidar. Eu abri o caminho pra ela também. Hoje ela faz os discursos hereamu. Hoje ela vai na frente e fala. Antes, eu falava sozinha, mas agora, em nossa comunidade, nós somos sete mulheres que falam. Elas falam, elas lutam dentro da comunidade. Elas não viajam longe como eu. Elas não têm identidade, não têm foto de documento, não tem como elas irem para terras distantes. Como eu e minha cunhada [Ana Maria Machado] nos demos os braços, fizemos meus documentos, então eu viajo. Vou pra terras distantes e carrego as palavras que essas outras mulheres dizem. Eu apenas carrego suas palavras em minha boca. E foi assim que abrimos o nosso pensamento. Nós, mulheres, estamos sempre lutando pela nossa terra.

Ehuana, eu queria saber o que você acha de nós, brancos. O que te chamou a atenção quando conheceu o nosso mundo, o nosso jeito de viver?

EHUANA - Eu não sabia como era. A cidade é muito ruim, o ar é muito ruim. Por que, apesar de vocês serem tantas pessoas, vocês vivem todos fechados? Por que vocês não se olham uns aos outros? Vocês são como os Tatus, que vivem dentro de um buraco, fechados. E isso me deixa muito triste.

Nós, Yanomami, nós estamos sempre perto uns dos outros. Nós vivemos perto, ninguém vive sozinho. E eu fico triste quando venho às cidades. Outra coisa que me deixa muito triste quando venho até a terra de vocês é que penso por que existem pessoas deitadas na rua. Como é que essa pessoa vai dormir? Tem velhos, crianças, moças, jovens. É muito feio, é muito triste. Onde é que elas vão comer? Onde é que vão beber água?

É isso o que eu penso sobre vocês. Porque nós não somos assim. Nós cuidamos, nós sabemos cuidar bem uns dos outros. Nós temos as famílias, nós moramos em uma grande casa coletiva, talvez vocês já tenham visto a imagem. E ali nós moramos uns próximos aos outros e nos vemos nos olhos. Vemos também o sofrimento nos olhos dos outros quando eles sofrem. E assim, quando um está com fome, nós damos comida. Quando estamos com sede, vamos lá e simplesmente bebemos água, sem precisar comprar. Mas vocês, brancos, vocês sofrem. Vocês fazem seus filhos, vocês têm filhos, suas crianças, mas, depois que eles crescem, alguns deles vivem na rua. Por quê? Eu sofro ao ver pessoas morando na rua. Em Nova York, vi uma senhora que dormia no inverno, fazia muito frio, e eu pensava: "Será que ela não tem filho? Será que não tem filha? Não tem neto? Não tem família? Não tem casa?". Tudo isso do mundo de vocês me deixa muito triste.

Na casa coletiva de Watoriki, onde vivem Ehuana e Davi Kopenawa, moram mais de 150 pessoas. Foto: Pablo Alvarenga/SUMAÚMA

A gente agora vai abrir para as perguntas, mas antes de vocês perguntarem para a Ehuana, a Ehuana quer fazer perguntas a vocês.

EHUANA - Essa é a minha primeira vez fazendo uma pergunta. Então, vou perguntar: por que, de fato, vocês, não Indígenas, querem ouro? Por que, de fato, vocês vão longe destruir a nossa terra pra isso? Por que vocês destroem a terra, destroem as árvores da nossa terra? É isso que nós, Yanomami, queremos saber de vocês.

Quem gostaria de responder?

Plateia - Primeiro, meus respeitos a Ehuana e à comunidade Yanomami. Obrigada por vir até aqui, ainda que seja para dizer as verdades. Como responder a essa pergunta? Acho que é porque nossa sociedade tem coisas tão estúpidas, como valorizar coisas que alguém decidiu que tem valor só por serem escassas na Natureza. Mas a verdade é que nós deveríamos aprender com vocês e dar valor a outras coisas.

Plateia - Muita gratidão pela presença, por tantas palavras profundas e importantes. Minha pergunta é de onde vem a resiliência do povo Yanomami para preservar a sua cultura durante tanto tempo, apesar de tantas invasões?

EHUANA - Nós queremos continuar vivendo na nossa terra como ela é. Queremos continuar vivendo fortes e com saúde. E é por isso que a defendemos. Nós temos também os xapiri. E é também por eles que continuamos lutando. Queremos continuar mantendo nossa cultura forte e a Floresta viva.

Plateia - Sou Ana Maria. Sou amazônida, como você. Sou do Pará. E vi dois processos de exploração garimpeira no Pará, que foram arrasadores. O primeiro foi em Serra Pelada, no Pará, que é uma área extremamente devastada. E, depois, mais adulta, eu fui para Rondônia, que também é na Amazônia, e vi o processo de empobrecimento de populações da Floresta, de Indígenas e não Indígenas com a questão do garimpo no Rio Madeira. Mas por que eu falei tudo isso? Para colocar que essa questão da garimpagem na Amazônia brasileira acontece há mais de um século, e que são populações Indígenas...

Desculpe interromper, qual é a pergunta?

Plateia - Eu já vou fazer a pergunta. A minha pergunta é o que a Ehuana espera desse contato que está fazendo aqui, em Barcelona? Qual é a expectativa dela, no sentido desta pequena plateia aqui, de se transformar numa corrente de apoio, no sentido de ajudar, de alguma forma, não sei como, a luta dos Yanomami, lá, de onde ela veio, para que o céu não abaixe mais?

EHUANA - Eu cheguei até a terra de vocês, povo de Barcelona. Vocês ouviram minhas palavras. Então, se querem nos apoiar, podem apoiar a Hutukara Associação Yanomami, pois assim ficamos felizes. A associação se preocupa conosco. Então, queremos também que vocês se aproximem do nosso povo. Pensem primeiro sobre nós, pensem que nós estamos sofrendo. Nós estamos tentando com muita força, nós estamos fazendo muito esforço para não morrermos, para não ficarmos fracos.

Então, eu cheguei até aqui, na terra de vocês. Vocês me chamaram aqui, me convidaram. Vocês me olharam nos olhos, vocês me escutaram. Então, quero que vocês continuem pensando sobre meu povo, se juntem à nossa luta. E, se todos vocês se juntarem e ajudarem a nos defender e apoiarem a associação, nós ficaremos felizes com vocês, não Indígenas.

A gente tem tempo só para uma última pergunta, que tem que ser direta e rápida.

Plateia - Boa noite. Em alguns momentos, Ehuana, você fala de raiva, de muita raiva que vocês estão sentindo. Qual é o segredo pra gente conseguir não apagar essa raiva, mas fazê-la movimentar as coisas boas?

EHUANA - Quando pessoas de nosso povo, os Yanomami, morrem, sentimos raiva. Nosso pensamento vai em uma direção boa se a nossa Floresta ficar bem de novo, se nós ficarmos quietos novamente, se os napë pararem. Assim nossa tristeza acaba, nossa raiva cessa. Nós sentimos raiva porque os napë fazem essas coisas com nossa terra, estão sempre querendo destruir a Floresta onde vivemos, estão sempre querendo acabar conosco. E por causa disso o nosso sentimento é cheio de raiva. Se vocês desistirem de destruir a nossa terra, a nossa raiva acaba. Se vocês pararem de nos matar, a minha raiva também acaba.

Ehuana e Ana Maria nas Ilhas Canárias no 2o Congresso Internacional sobre Cuidados, em novembro de 2024. Foto: arquivo pessoal

Nota da tradutora/intérprete: a entrevista é, na sua maior parte, uma transcrição da interpretação feita em tempo real durante o evento - e não uma tradução do Yanomam para o português.

Reportagem e texto: Eliane Brum
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum


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