From Indigenous Peoples in Brazil
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News
O peixe gigante que antecipa a seca
18/06/2025
Autor: Maickson Serrão
Fonte: Sumaúma - https://sumauma.com
Elsivan Ferreira Feitosa conhece o pirarucu desde a infância. Hoje, aos 44 anos, ele é pescador, guarda florestal e um dos poucos "contadores" em Boa Vista do Calafate - uma comunidade ribeirinha dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, na região do médio Solimões, na Amazônia. Seu papel exige mais do que habilidade; exige escuta, foco e sabedoria geracional.
O pirarucu que Elsivan observa atentamente é um gigante ancestral das águas amazônicas. Pode atingir até três metros de comprimento e pesar até 200 quilos. Suas escamas verde-escuras, salpicadas de manchas avermelhadas, brilham intensamente à luz do sol. Uma longa barbatana dorsal, larga, robusta e vermelha, estende-se da cabeça à cauda. Quando emerge para respirar, enche os pulmões de ar e mergulha novamente, agitando a água com a cauda - um movimento que os contadores aprendem a reconhecer de longe. O nome "pirarucu" vem da língua tupi e significa "peixe vermelho".
"Aprendi com meu pai, meu avô, meus tios. Um contador passa para o outro."
A contagem anual de pirarucus determina as cotas de pesca e não requer equipamentos sofisticados - apenas o corpo, olhos treinados e precisão no timing. Elsivan distingue peixes pequenos de grandes pelo tempo que levam para emergir: os pequenos sobem a cada dez minutos, enquanto os grandes só aparecem a cada vinte. As bolhas dos peixes maiores são espessas e fortes; dos menores, finas e tênues.
"O peixe grande vem mais devagar. Quando sobe, balança o rabo. Fica na superfície por mais tempo. E nós cronometramos."
Além de contar, Elsivan lê sinais ambientais. Ele diz que o pirarucu escuta a floresta e se orienta seguindo o jaçanã - uma ave pernalta que vive nos juncos. "Se a canoa encosta em algo e faz barulho, o jaçanã salta. Ele avisa o peixe. Ele emerge irritado ou nada para longe." O peixe também presta atenção aos besouros que batem no casco da canoa, sinalizando a presença humana. "Ele sabe que algo está errado. E não volta."
Esses comportamentos demonstram que o pirarucu é sensível, estratégico e alerta. Se perturbado, migra para outra área - mesmo que isso o coloque em risco. "Já vi peixes saírem de uma área protegida por causa do barulho e irem parar onde há intrusos. Lá, são mortos. É por isso que o silêncio faz parte da vigilância."
Essa escuta afinada entre peixes e pescadores revela mais do que um modo de vida - revela também uma estratégia de sobrevivência diante do colapso climático . Métodos antigos de contagem de pirarucus se entrelaçam com o conhecimento científico, ambos apontando na mesma direção: os peixes e as comunidades que deles dependem estão se adaptando, ou não sobreviverão.
Para entender essa adaptação - tanto de peixes quanto de pessoas - no final de abril de 2025, a SUMAÚMA viajou para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, no médio Solimões, seguindo o curso do Rio Tefé , um afluente do Solimões que conecta diversos ecossistemas. Por mais de uma semana, a equipe visitou comunidades, conversou com pescadores, gestores de recursos, lideranças e cientistas, explorou áreas protegidas e ouviu relatos em primeira mão de como as mudanças climáticas remodelaram a vida ribeirinha. Esta reportagem teve o apoio técnico do Instituto Mamirauá, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e envolveu a colaboração de especialistas do Instituto Serrapilheira e do Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP), todos analisando os impactos socioambientais de secas extremas na Amazônia.
Seca recorde
Em 2023 e 2024, a Bacia Amazônica sofreu a seca mais severa em quatro décadas . O nível do Rio Tefé permaneceu abaixo das médias históricas por quase metade do período de janeiro de 2022 a novembro de 2024, segundo dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, analisados a pedido da SUMAÚMA pelo hidrólogo Caio Mattos (Universidade Federal de Santa Catarina), em colaboração entre o Instituto Serrapilheira e o CLIP.
Esse baixo nível de água faz parte de uma série de eventos extremos ligados ao aquecimento global e à intensificação de fenômenos como o El Niño - um aquecimento anormal das águas do Pacífico que interrompe os padrões de chuva e causa seca severa na Amazônia.
O Rio Tefé, um braço do Solimões, é vital para o transporte, a pesca e o cotidiano de dezenas de comunidades da Reserva Amanã. Ele alimenta o Lago Tefé e conecta diversos ecossistemas, servindo como um termômetro das mudanças climáticas na região.
As consequências das secas recentes foram devastadoras. Centenas de golfinhos-de-rio pereceram , lagos secaram completamente e a pesca foi quase interrompida. Muitas famílias ficaram isoladas ou perderam o acesso à água potável. O calor extremo aumentou as doenças e os peixes menos tolerantes ao calor morreram por falta de oxigênio em águas rasas e quentes.
Mas o pirarucu antecipou a crise: migrou para partes mais profundas do rio. Segundo os pesquisadores, esse comportamento antecipatório está enraizado em sua biologia e história evolutiva. O biólogo João CamposSilva, presidente do Instituto Juruá - uma organização comunitária e de conservação com sede em Manaus - explica: "O pirarucu evoluiu em ambientes rasos e com baixo teor de oxigênio - o antigo Lago Pebas - há milhões de anos. É por isso que ele tem uma adaptação fisiológica impressionante. Ele respira ar, migra estrategicamente e busca águas mais profundas durante as secas."
Segundo Campos-Silva, o Lago Pebas - um vasto e antigo sistema lacustre que abrange a Amazônia Ocidental - foi o berço evolutivo do pirarucu. Suas águas eram frequentemente turvas, ácidas e pobres em oxigênio, permitindo que apenas as espécies mais adaptadas prosperassem. O pirarucu sobreviveu graças à sua capacidade de respirar o ar atmosférico - uma característica fundamental que ainda conserva. Também desenvolveu um comportamento migratório sofisticado e proteção da ninhada, garantindo sua sobrevivência mesmo em condições adversas.
Sua bexiga natatória - um órgão interno que auxilia na flutuabilidade - ficou hipertrofiada, funcionando quase como um pulmão, permitindo que ela suba à superfície em busca de oxigênio. Essa adaptação não só garante a sobrevivência em águas com baixo teor de oxigênio, como também molda seu comportamento e suas interações com o ambiente e os pescadores.
O pirarucu é mais do que um sobrevivente; é um exemplo vivo de como a evolução moldou estratégias de resiliência em um dos ambientes mais desafiadores do planeta.
Gestão liderada pela comunidade
As comunidades ribeirinhas da Reserva Amanã dependem da pesca, da agricultura e do extrativismo. Elas formaram associações comunitárias que estabelecem acordos coletivos para o manejo do pirarucu - uma estratégia em vigor desde 2009. Hoje, ela envolve mais de 30 comunidades e cerca de mil pescadores em atividades que vão da pesca e contagem à venda dos peixes. Esse modelo se tornou um dos exemplos mais bem-sucedidos de conservação participativa na Amazônia.
O processo é minucioso: primeiro, os peixes são contados por contadores especializados, como a Elsivan, que avaliam o tamanho e a quantidade de pirarucus nas zonas de manejo. Esses números definem a cota anual de pesca. A pesca acontece por meio de esforços comunitários organizados, com tarefas atribuídas a cada pessoa - desde a localização dos peixes até o transporte e a aplicação de gelo.
A venda do peixe segue o mesmo sistema coletivo, com contratos pré-estabelecidos com compradores que concordam com preços justos e práticas sustentáveis. Isso inclui vender apenas peixes dentro das cotas e tamanhos permitidos e evitar a pesca fora dos períodos determinados. Os lucros são compartilhados entre os participantes, reforçando a unidade social e econômica. Parte da receita também financia melhorias comunitárias, como reparos de barcos e espaços comunitários.
Somente em 2023, a arrecadação coletiva com a gestão ultrapassou R$ 4 milhões (cerca de US$ 820.000 na época), demonstrando um sistema que concilia geração de renda, conservação ambiental e autonomia local. Esses números são provenientes de relatórios elaborados pelas comunidades, com a supervisão da equipe gestora do Instituto Mamirauá .
Com sede em Tefé, a Mamirauá oferece suporte técnico, desenvolvendo métodos de contagem e monitoramento, treinando contadores e pessoal, e assessorando na implementação de acordos de pesca. Essa colaboração entre ribeirinhos e cientistas é um pilar fundamental para o sucesso do manejo do pirarucu.
As decisões são tomadas em assembleias locais, onde os membros discutem tudo, desde a criação de novas zonas protegidas até a suspensão temporária da pesca - como ocorreu em 2023 em quatro comunidades, incluindo Calafate, devido à seca extrema.
A proteção territorial é constante, com patrulhas regulares organizadas pelas próprias comunidades, com o apoio de instituições como a Mamirauá. Esse trabalho é essencial não só para preservar o pirarucu, mas também para defender todo o ecossistema de pescadores ilegais, madeireiros, grileiros e traficantes de animais silvestres que atuam em áreas protegidas.
Para que o que conquistamos aqui não se perca com o tempo. Quando eu sair, já terá alguém para continuar com o mesmo objetivo. A ideia é capacitar pessoas da comunidade para que elas possam escrever os relatórios técnicos por conta própria e tenham autonomia na gestão.
Jovane Cavalcante Marinho, 40 anos, filho e neto de pescadores, agora trabalha como técnico de gestão em Mamirauá, após anos de envolvimento direto com a pesca. Ele aprendeu sobre o pirarucu na infância e agora trabalha para que esse conhecimento técnico permaneça na comunidade: "A gente cuida para que o que a gente conquistou aqui não se perca com o tempo. Quando eu saio, já tem alguém para continuar com o mesmo propósito. A ideia é capacitar pessoas da comunidade para escrever relatórios técnicos e assumir a gestão de forma autônoma."
Legado através das gerações
Theibson da Silva tinha apenas 10 anos quando viu um pirarucu pela primeira vez. Ele estava com o avô, no fundo de um remanso de rio, quando avistou uma família inteira do peixe gigante - pai, mãe e seus filhotes.
"No começo, pensei que fosse alguma criatura estranha", ele lembrou. "Fiquei com medo. Mas então parei e observei. O pai ficou embaixo dos bebês, a mãe atrás deles, protegendo."
A imagem permaneceu com ele. E o aprendizado não parou por aí. Agora com 25 anos, Theibson é pai de dois filhos e gestor de pirarucus - parte de uma nova geração de ribeirinhos que ajudam a renovar tanto as práticas de pesca quanto o tecido social que une as comunidades da Reserva Amanã.
Durante as expedições de pesca, Theibson supervisiona o monitoramento e o manuseio dos peixes. Ele gerencia a recepção, o gelo, os diários de bordo. As lições vieram dos avós, mas quando fala do futuro, é nos próprios filhos que pensa. "Se meu avô me ensinou, eu também quero ensinar", disse ele. "Quero que meus filhos vejam o que eu vi."
Theibson agora atua como vice-presidente do acordo de pesca de sua comunidade e integra o conselho de supervisão financeira. Ele não se considera um líder, mas aqueles ao seu redor o são. Sua geração aprendeu a manejar o pirarucu - e, mais recentemente, a lidar com os novos desafios impostos pela seca extrema, pelo isolamento causado pela pandemia e por um clima instável que exige adaptação constante.
Em 2023 e 2024, Theibson notou algo inédito: o pirarucu mudou sua época de desova. Tradicionalmente, os ovos eclodiam entre outubro e novembro. Mas, durante aqueles anos de seca implacável, os peixes esperaram. "Eles sabiam que a água ia secar demais", disse ele. "Se tivessem desovado antes, os filhotes teriam morrido. Então, esperaram a água subir. Só desovaram em janeiro."
Para Theibson, isso não foi coincidência - foi adaptação. "Eles são mais espertos do que as pessoas pensam. Sabem onde se esconder, quando correr, quando esperar."
E, assim como os peixes, as pessoas também estão aprendendo a se adaptar. "Nunca vi um pirarucu morrer por falta de água", disse ele. "Mesmo na pior seca que já vi. Eles encontram um jeito. Eles encontram os poços mais profundos. Eles se concentram. Somos nós - às vezes, somos nós que não conseguimos nos adaptar."
Theibson cultiva bananas e mandioca, cuidando de sua pequena propriedade, mas também é um membro ativo da associação comunitária, ajudando a moldar as decisões de gestão. Sua geração carrega o conhecimento dos mais velhos e agora está aprendendo a transformá-lo em estratégia em um mundo que se torna mais instável a cada ano.
Se Theibson representa o presente e o futuro, Edivan Ferreira personifica a liderança que ancorou a gestão do pirarucu nas últimas décadas. Como presidente da Associação Comunitária de Boa Vista do Calafate, Edivan conhece os meandros do acordo de pesca, bem como as duras realidades da proteção territorial.
"Aqui não há competição, apenas acordo", disse ele, sintetizando o ethos do modelo de gestão. O acordo é um pacto coletivo, concebido para garantir que a pesca ocorra de forma sustentável - respeitando o ciclo de vida dos peixes e protegendo os lagos contra intrusos.
Edivan entende a necessidade de organização. Sem vigilância, regulamentação interna e tomada de decisões coletivas, disse ele, o pirarucu pode desaparecer - não apenas devido à pesca predatória, mas também por invasores que operam fora das regras, muitas vezes apoiados por grupos armados e traficantes de animais silvestres. "Nós cuidamos disso, mas estamos ameaçados", disse ele. "Mesmo assim, se pararmos, é aí que realmente perdemos tudo."
Para Edivan, a força da gestão comunitária reside na combinação entre o conhecimento tradicional - transmitido de geração em geração - e a estrutura social que sustenta a prática. Ele testemunhou o início do sistema de gestão, observou como ele gerava ganhos econômicos e também viu as crescentes ameaças.
Nas comunidades ribeirinhas, as assembleias locais são momentos cruciais. É nelas que as pessoas decidem tudo, desde o estabelecimento de novas zonas de proteção até a suspensão da pesca em anos críticos - como fizeram em 2023, quando, diante de uma seca histórica, as comunidades optaram por não pescar. Foi uma decisão difícil, mas que consideraram necessária para garantir a sobrevivência a longo prazo tanto da espécie quanto do meio de vida.
Edivan sabe que tal escolha só foi possível porque um forte sistema de governança local se consolidou. E ele acredita que a geração mais jovem está pronta para assumir o comando. "Os jovens estão participando, assumindo papéis, aprendendo a se importar", disse ele. "Isso é importante, porque são eles que levarão isso adiante quando não pudermos mais."
Entre Theibson e Edivan há uma lacuna de anos, histórias de vida e perspectivas. Mas há também um fio condutor profundo e comum: uma conexão com o pirarucu que os guia e os une. Um, aos 25 anos, está aprendendo a ensinar. O outro, um líder experiente aos 49, está transmitindo o que viveu. E o pirarucu perdura - respirando, migrando, adaptando-se - assim como as pessoas que o manejam, o observam e, geração após geração, aprendem com ele como viver no tempo e no silêncio da floresta.
Juruti, pirarucu e o futuro
Para o povo Deni do Rio Juruá, o pirarucu não é apenas um peixe - é um ser transformado.
Há muito tempo, segundo a tradição oral Deni, um jovem e sua irmã viviam em harmonia com sua comunidade. A irmã casou-se com um homem de outra aldeia, mas uma doença alastrou-se pelo povoado, deixando-a como única sobrevivente. Consumida pela dor e pela solidão, ela se transformou em um Juruti - um pássaro que agora habita as margens do rio. Seu irmão, inconsolável, mergulhou na água e se transformou em um peixe. Ele se tornou o pirarucu. Antes da separação, os irmãos fizeram um voto: nunca se afastariam. E assim, dizem os Deni, até hoje o Juruti canta perto dos lugares onde vivem os pirarucus.
"Foi assim que a história dele começou para nós", disse Umada Kuniva Deni, uma líder entre seu povo. "Ele era um de nós. É por isso que o respeitamos. É por isso que o ouvimos."
Para grupos indígenas como os Deni, o pirarucu é mais do que sustento ou fonte de renda. É um parente. É um espírito ancestral. É um símbolo de continuidade. Essa conexão transforma a forma como o peixe é manejado. "Eles não manejam um recurso", explicou o biólogo João CamposSilva. "Eles manejam um ser semelhante."
A carne branca do peixe, revestida de escamas verdes, vermelhas e douradas, é vista como um símbolo de abundância. Sua língua ossuda, munida de dentes afiados, é usada pelos indígenas como ferramenta para ralar mandioca - um lembrete de que nenhuma parte do pirarucu é desperdiçada: da carne ao couro, dos ossos à sua mitologia. Em festas comunitárias, o peixe é assado em grandes pedaços, cozido em ensopados ou defumado em fogueiras - embelezando refeições que marcam o ciclo da água e os ritmos sociais da floresta.
Para Umada Deni, a relação com o pirarucu molda o passado, o presente e o futuro. "O pirarucu ajuda a manter nossa cultura viva", disse ela. "Quando pescamos juntos, quando cuidamos dele, também estamos cuidando do nosso modo de vida, da nossa história." O pirarucu é cultura. É alimento. É história, ferramenta e mito - um ser que atravessa dimensões e reafirma a intrincada relação entre os povos da floresta e as criaturas que compartilham seu mundo.
"O pirarucu é muito mais do que um peixe", disse CamposSilva. "É um símbolo que nos inspira a imaginar uma Amazônia liderada por povos locais - uma Amazônia que gera riqueza, mas também protege a biodiversidade, os seres encantados e as visões de mundo indígenas. O pirarucu é um modelo de desenvolvimento que contrasta fortemente com o desenvolvimento predatório e destrutivo que testemunhamos por tanto tempo na Amazônia."
Do Juruá, as palavras de Campos-Silva resumem o significado que o pirarucu e seu manejo comunitário agora carregam na região. O peixe que prevê secas, migra para sobreviver e inspira modos de vida também se tornou uma referência no debate mais amplo sobre o futuro da Amazônia: como conciliar conservação, geração de renda e liderança local.
Na região do Médio Solimões, essa alternativa não é apenas uma teoria - é uma prática cotidiana. O pirarucu continua a nadar nas águas profundas da Reserva Amanã, protegido pelo silêncio dos contadores e pela vigilância de gerações que aprenderam que ouvir os movimentos da floresta também é uma forma de resistência.
https://sumauma.com/en/o-peixe-que-sabe-das-secas/
O pirarucu que Elsivan observa atentamente é um gigante ancestral das águas amazônicas. Pode atingir até três metros de comprimento e pesar até 200 quilos. Suas escamas verde-escuras, salpicadas de manchas avermelhadas, brilham intensamente à luz do sol. Uma longa barbatana dorsal, larga, robusta e vermelha, estende-se da cabeça à cauda. Quando emerge para respirar, enche os pulmões de ar e mergulha novamente, agitando a água com a cauda - um movimento que os contadores aprendem a reconhecer de longe. O nome "pirarucu" vem da língua tupi e significa "peixe vermelho".
"Aprendi com meu pai, meu avô, meus tios. Um contador passa para o outro."
A contagem anual de pirarucus determina as cotas de pesca e não requer equipamentos sofisticados - apenas o corpo, olhos treinados e precisão no timing. Elsivan distingue peixes pequenos de grandes pelo tempo que levam para emergir: os pequenos sobem a cada dez minutos, enquanto os grandes só aparecem a cada vinte. As bolhas dos peixes maiores são espessas e fortes; dos menores, finas e tênues.
"O peixe grande vem mais devagar. Quando sobe, balança o rabo. Fica na superfície por mais tempo. E nós cronometramos."
Além de contar, Elsivan lê sinais ambientais. Ele diz que o pirarucu escuta a floresta e se orienta seguindo o jaçanã - uma ave pernalta que vive nos juncos. "Se a canoa encosta em algo e faz barulho, o jaçanã salta. Ele avisa o peixe. Ele emerge irritado ou nada para longe." O peixe também presta atenção aos besouros que batem no casco da canoa, sinalizando a presença humana. "Ele sabe que algo está errado. E não volta."
Esses comportamentos demonstram que o pirarucu é sensível, estratégico e alerta. Se perturbado, migra para outra área - mesmo que isso o coloque em risco. "Já vi peixes saírem de uma área protegida por causa do barulho e irem parar onde há intrusos. Lá, são mortos. É por isso que o silêncio faz parte da vigilância."
Essa escuta afinada entre peixes e pescadores revela mais do que um modo de vida - revela também uma estratégia de sobrevivência diante do colapso climático . Métodos antigos de contagem de pirarucus se entrelaçam com o conhecimento científico, ambos apontando na mesma direção: os peixes e as comunidades que deles dependem estão se adaptando, ou não sobreviverão.
Para entender essa adaptação - tanto de peixes quanto de pessoas - no final de abril de 2025, a SUMAÚMA viajou para a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, no médio Solimões, seguindo o curso do Rio Tefé , um afluente do Solimões que conecta diversos ecossistemas. Por mais de uma semana, a equipe visitou comunidades, conversou com pescadores, gestores de recursos, lideranças e cientistas, explorou áreas protegidas e ouviu relatos em primeira mão de como as mudanças climáticas remodelaram a vida ribeirinha. Esta reportagem teve o apoio técnico do Instituto Mamirauá, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e envolveu a colaboração de especialistas do Instituto Serrapilheira e do Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP), todos analisando os impactos socioambientais de secas extremas na Amazônia.
Seca recorde
Em 2023 e 2024, a Bacia Amazônica sofreu a seca mais severa em quatro décadas . O nível do Rio Tefé permaneceu abaixo das médias históricas por quase metade do período de janeiro de 2022 a novembro de 2024, segundo dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, analisados a pedido da SUMAÚMA pelo hidrólogo Caio Mattos (Universidade Federal de Santa Catarina), em colaboração entre o Instituto Serrapilheira e o CLIP.
Esse baixo nível de água faz parte de uma série de eventos extremos ligados ao aquecimento global e à intensificação de fenômenos como o El Niño - um aquecimento anormal das águas do Pacífico que interrompe os padrões de chuva e causa seca severa na Amazônia.
O Rio Tefé, um braço do Solimões, é vital para o transporte, a pesca e o cotidiano de dezenas de comunidades da Reserva Amanã. Ele alimenta o Lago Tefé e conecta diversos ecossistemas, servindo como um termômetro das mudanças climáticas na região.
As consequências das secas recentes foram devastadoras. Centenas de golfinhos-de-rio pereceram , lagos secaram completamente e a pesca foi quase interrompida. Muitas famílias ficaram isoladas ou perderam o acesso à água potável. O calor extremo aumentou as doenças e os peixes menos tolerantes ao calor morreram por falta de oxigênio em águas rasas e quentes.
Mas o pirarucu antecipou a crise: migrou para partes mais profundas do rio. Segundo os pesquisadores, esse comportamento antecipatório está enraizado em sua biologia e história evolutiva. O biólogo João CamposSilva, presidente do Instituto Juruá - uma organização comunitária e de conservação com sede em Manaus - explica: "O pirarucu evoluiu em ambientes rasos e com baixo teor de oxigênio - o antigo Lago Pebas - há milhões de anos. É por isso que ele tem uma adaptação fisiológica impressionante. Ele respira ar, migra estrategicamente e busca águas mais profundas durante as secas."
Segundo Campos-Silva, o Lago Pebas - um vasto e antigo sistema lacustre que abrange a Amazônia Ocidental - foi o berço evolutivo do pirarucu. Suas águas eram frequentemente turvas, ácidas e pobres em oxigênio, permitindo que apenas as espécies mais adaptadas prosperassem. O pirarucu sobreviveu graças à sua capacidade de respirar o ar atmosférico - uma característica fundamental que ainda conserva. Também desenvolveu um comportamento migratório sofisticado e proteção da ninhada, garantindo sua sobrevivência mesmo em condições adversas.
Sua bexiga natatória - um órgão interno que auxilia na flutuabilidade - ficou hipertrofiada, funcionando quase como um pulmão, permitindo que ela suba à superfície em busca de oxigênio. Essa adaptação não só garante a sobrevivência em águas com baixo teor de oxigênio, como também molda seu comportamento e suas interações com o ambiente e os pescadores.
O pirarucu é mais do que um sobrevivente; é um exemplo vivo de como a evolução moldou estratégias de resiliência em um dos ambientes mais desafiadores do planeta.
Gestão liderada pela comunidade
As comunidades ribeirinhas da Reserva Amanã dependem da pesca, da agricultura e do extrativismo. Elas formaram associações comunitárias que estabelecem acordos coletivos para o manejo do pirarucu - uma estratégia em vigor desde 2009. Hoje, ela envolve mais de 30 comunidades e cerca de mil pescadores em atividades que vão da pesca e contagem à venda dos peixes. Esse modelo se tornou um dos exemplos mais bem-sucedidos de conservação participativa na Amazônia.
O processo é minucioso: primeiro, os peixes são contados por contadores especializados, como a Elsivan, que avaliam o tamanho e a quantidade de pirarucus nas zonas de manejo. Esses números definem a cota anual de pesca. A pesca acontece por meio de esforços comunitários organizados, com tarefas atribuídas a cada pessoa - desde a localização dos peixes até o transporte e a aplicação de gelo.
A venda do peixe segue o mesmo sistema coletivo, com contratos pré-estabelecidos com compradores que concordam com preços justos e práticas sustentáveis. Isso inclui vender apenas peixes dentro das cotas e tamanhos permitidos e evitar a pesca fora dos períodos determinados. Os lucros são compartilhados entre os participantes, reforçando a unidade social e econômica. Parte da receita também financia melhorias comunitárias, como reparos de barcos e espaços comunitários.
Somente em 2023, a arrecadação coletiva com a gestão ultrapassou R$ 4 milhões (cerca de US$ 820.000 na época), demonstrando um sistema que concilia geração de renda, conservação ambiental e autonomia local. Esses números são provenientes de relatórios elaborados pelas comunidades, com a supervisão da equipe gestora do Instituto Mamirauá .
Com sede em Tefé, a Mamirauá oferece suporte técnico, desenvolvendo métodos de contagem e monitoramento, treinando contadores e pessoal, e assessorando na implementação de acordos de pesca. Essa colaboração entre ribeirinhos e cientistas é um pilar fundamental para o sucesso do manejo do pirarucu.
As decisões são tomadas em assembleias locais, onde os membros discutem tudo, desde a criação de novas zonas protegidas até a suspensão temporária da pesca - como ocorreu em 2023 em quatro comunidades, incluindo Calafate, devido à seca extrema.
A proteção territorial é constante, com patrulhas regulares organizadas pelas próprias comunidades, com o apoio de instituições como a Mamirauá. Esse trabalho é essencial não só para preservar o pirarucu, mas também para defender todo o ecossistema de pescadores ilegais, madeireiros, grileiros e traficantes de animais silvestres que atuam em áreas protegidas.
Para que o que conquistamos aqui não se perca com o tempo. Quando eu sair, já terá alguém para continuar com o mesmo objetivo. A ideia é capacitar pessoas da comunidade para que elas possam escrever os relatórios técnicos por conta própria e tenham autonomia na gestão.
Jovane Cavalcante Marinho, 40 anos, filho e neto de pescadores, agora trabalha como técnico de gestão em Mamirauá, após anos de envolvimento direto com a pesca. Ele aprendeu sobre o pirarucu na infância e agora trabalha para que esse conhecimento técnico permaneça na comunidade: "A gente cuida para que o que a gente conquistou aqui não se perca com o tempo. Quando eu saio, já tem alguém para continuar com o mesmo propósito. A ideia é capacitar pessoas da comunidade para escrever relatórios técnicos e assumir a gestão de forma autônoma."
Legado através das gerações
Theibson da Silva tinha apenas 10 anos quando viu um pirarucu pela primeira vez. Ele estava com o avô, no fundo de um remanso de rio, quando avistou uma família inteira do peixe gigante - pai, mãe e seus filhotes.
"No começo, pensei que fosse alguma criatura estranha", ele lembrou. "Fiquei com medo. Mas então parei e observei. O pai ficou embaixo dos bebês, a mãe atrás deles, protegendo."
A imagem permaneceu com ele. E o aprendizado não parou por aí. Agora com 25 anos, Theibson é pai de dois filhos e gestor de pirarucus - parte de uma nova geração de ribeirinhos que ajudam a renovar tanto as práticas de pesca quanto o tecido social que une as comunidades da Reserva Amanã.
Durante as expedições de pesca, Theibson supervisiona o monitoramento e o manuseio dos peixes. Ele gerencia a recepção, o gelo, os diários de bordo. As lições vieram dos avós, mas quando fala do futuro, é nos próprios filhos que pensa. "Se meu avô me ensinou, eu também quero ensinar", disse ele. "Quero que meus filhos vejam o que eu vi."
Theibson agora atua como vice-presidente do acordo de pesca de sua comunidade e integra o conselho de supervisão financeira. Ele não se considera um líder, mas aqueles ao seu redor o são. Sua geração aprendeu a manejar o pirarucu - e, mais recentemente, a lidar com os novos desafios impostos pela seca extrema, pelo isolamento causado pela pandemia e por um clima instável que exige adaptação constante.
Em 2023 e 2024, Theibson notou algo inédito: o pirarucu mudou sua época de desova. Tradicionalmente, os ovos eclodiam entre outubro e novembro. Mas, durante aqueles anos de seca implacável, os peixes esperaram. "Eles sabiam que a água ia secar demais", disse ele. "Se tivessem desovado antes, os filhotes teriam morrido. Então, esperaram a água subir. Só desovaram em janeiro."
Para Theibson, isso não foi coincidência - foi adaptação. "Eles são mais espertos do que as pessoas pensam. Sabem onde se esconder, quando correr, quando esperar."
E, assim como os peixes, as pessoas também estão aprendendo a se adaptar. "Nunca vi um pirarucu morrer por falta de água", disse ele. "Mesmo na pior seca que já vi. Eles encontram um jeito. Eles encontram os poços mais profundos. Eles se concentram. Somos nós - às vezes, somos nós que não conseguimos nos adaptar."
Theibson cultiva bananas e mandioca, cuidando de sua pequena propriedade, mas também é um membro ativo da associação comunitária, ajudando a moldar as decisões de gestão. Sua geração carrega o conhecimento dos mais velhos e agora está aprendendo a transformá-lo em estratégia em um mundo que se torna mais instável a cada ano.
Se Theibson representa o presente e o futuro, Edivan Ferreira personifica a liderança que ancorou a gestão do pirarucu nas últimas décadas. Como presidente da Associação Comunitária de Boa Vista do Calafate, Edivan conhece os meandros do acordo de pesca, bem como as duras realidades da proteção territorial.
"Aqui não há competição, apenas acordo", disse ele, sintetizando o ethos do modelo de gestão. O acordo é um pacto coletivo, concebido para garantir que a pesca ocorra de forma sustentável - respeitando o ciclo de vida dos peixes e protegendo os lagos contra intrusos.
Edivan entende a necessidade de organização. Sem vigilância, regulamentação interna e tomada de decisões coletivas, disse ele, o pirarucu pode desaparecer - não apenas devido à pesca predatória, mas também por invasores que operam fora das regras, muitas vezes apoiados por grupos armados e traficantes de animais silvestres. "Nós cuidamos disso, mas estamos ameaçados", disse ele. "Mesmo assim, se pararmos, é aí que realmente perdemos tudo."
Para Edivan, a força da gestão comunitária reside na combinação entre o conhecimento tradicional - transmitido de geração em geração - e a estrutura social que sustenta a prática. Ele testemunhou o início do sistema de gestão, observou como ele gerava ganhos econômicos e também viu as crescentes ameaças.
Nas comunidades ribeirinhas, as assembleias locais são momentos cruciais. É nelas que as pessoas decidem tudo, desde o estabelecimento de novas zonas de proteção até a suspensão da pesca em anos críticos - como fizeram em 2023, quando, diante de uma seca histórica, as comunidades optaram por não pescar. Foi uma decisão difícil, mas que consideraram necessária para garantir a sobrevivência a longo prazo tanto da espécie quanto do meio de vida.
Edivan sabe que tal escolha só foi possível porque um forte sistema de governança local se consolidou. E ele acredita que a geração mais jovem está pronta para assumir o comando. "Os jovens estão participando, assumindo papéis, aprendendo a se importar", disse ele. "Isso é importante, porque são eles que levarão isso adiante quando não pudermos mais."
Entre Theibson e Edivan há uma lacuna de anos, histórias de vida e perspectivas. Mas há também um fio condutor profundo e comum: uma conexão com o pirarucu que os guia e os une. Um, aos 25 anos, está aprendendo a ensinar. O outro, um líder experiente aos 49, está transmitindo o que viveu. E o pirarucu perdura - respirando, migrando, adaptando-se - assim como as pessoas que o manejam, o observam e, geração após geração, aprendem com ele como viver no tempo e no silêncio da floresta.
Juruti, pirarucu e o futuro
Para o povo Deni do Rio Juruá, o pirarucu não é apenas um peixe - é um ser transformado.
Há muito tempo, segundo a tradição oral Deni, um jovem e sua irmã viviam em harmonia com sua comunidade. A irmã casou-se com um homem de outra aldeia, mas uma doença alastrou-se pelo povoado, deixando-a como única sobrevivente. Consumida pela dor e pela solidão, ela se transformou em um Juruti - um pássaro que agora habita as margens do rio. Seu irmão, inconsolável, mergulhou na água e se transformou em um peixe. Ele se tornou o pirarucu. Antes da separação, os irmãos fizeram um voto: nunca se afastariam. E assim, dizem os Deni, até hoje o Juruti canta perto dos lugares onde vivem os pirarucus.
"Foi assim que a história dele começou para nós", disse Umada Kuniva Deni, uma líder entre seu povo. "Ele era um de nós. É por isso que o respeitamos. É por isso que o ouvimos."
Para grupos indígenas como os Deni, o pirarucu é mais do que sustento ou fonte de renda. É um parente. É um espírito ancestral. É um símbolo de continuidade. Essa conexão transforma a forma como o peixe é manejado. "Eles não manejam um recurso", explicou o biólogo João CamposSilva. "Eles manejam um ser semelhante."
A carne branca do peixe, revestida de escamas verdes, vermelhas e douradas, é vista como um símbolo de abundância. Sua língua ossuda, munida de dentes afiados, é usada pelos indígenas como ferramenta para ralar mandioca - um lembrete de que nenhuma parte do pirarucu é desperdiçada: da carne ao couro, dos ossos à sua mitologia. Em festas comunitárias, o peixe é assado em grandes pedaços, cozido em ensopados ou defumado em fogueiras - embelezando refeições que marcam o ciclo da água e os ritmos sociais da floresta.
Para Umada Deni, a relação com o pirarucu molda o passado, o presente e o futuro. "O pirarucu ajuda a manter nossa cultura viva", disse ela. "Quando pescamos juntos, quando cuidamos dele, também estamos cuidando do nosso modo de vida, da nossa história." O pirarucu é cultura. É alimento. É história, ferramenta e mito - um ser que atravessa dimensões e reafirma a intrincada relação entre os povos da floresta e as criaturas que compartilham seu mundo.
"O pirarucu é muito mais do que um peixe", disse CamposSilva. "É um símbolo que nos inspira a imaginar uma Amazônia liderada por povos locais - uma Amazônia que gera riqueza, mas também protege a biodiversidade, os seres encantados e as visões de mundo indígenas. O pirarucu é um modelo de desenvolvimento que contrasta fortemente com o desenvolvimento predatório e destrutivo que testemunhamos por tanto tempo na Amazônia."
Do Juruá, as palavras de Campos-Silva resumem o significado que o pirarucu e seu manejo comunitário agora carregam na região. O peixe que prevê secas, migra para sobreviver e inspira modos de vida também se tornou uma referência no debate mais amplo sobre o futuro da Amazônia: como conciliar conservação, geração de renda e liderança local.
Na região do Médio Solimões, essa alternativa não é apenas uma teoria - é uma prática cotidiana. O pirarucu continua a nadar nas águas profundas da Reserva Amanã, protegido pelo silêncio dos contadores e pela vigilância de gerações que aprenderam que ouvir os movimentos da floresta também é uma forma de resistência.
https://sumauma.com/en/o-peixe-que-sabe-das-secas/
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