From Indigenous Peoples in Brazil
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Exclusivo: Indígena presa em cela masculina acusa policiais de estupros em série enquanto amamentava bebê

18/07/2025

Autor: Rubens Valente

Fonte: Sumauma - https://sumauma.com



Entre soluços e lágrimas, do outro do lado do vídeo está sentada em uma cadeira da sala do parlatório virtual do Centro de Detenção Feminino de Manaus, Amazonas, uma Indígena de 29 anos do povo Kokama, que aqui chamaremos apenas de K, a fim de preservar sua identidade. Ela descreve a SUMAÚMA a história chocante de uma mulher indígena condenada por homicídio, jogada numa cela com presos homens e submetida, ao lado do filho recém-nascido, a violências sexuais durante mais de nove meses pelos agentes do Estado que deveriam mantê-la em segurança.

K tem cerca de 1,55 metro, cabelos longos e escuros. Estudou até o ensino fundamental. A reportagem está numa sala do fórum de Santo Antônio do Içá, um município do Amazonas na fronteira com a Colômbia, ao lado do advogado de K, Dacimar de Souza Carneiro, que fez a videoconferência pelo seu telefone celular com autorização do presídio.

"O que eu passei... Eu cometi um crime, mas eu estava sob a guarda deles... Mas o que fizeram comigo eu nunca vou esquecer. Eu sei que tem o negócio da cicatrização, mas a minha integridade humana... Eu acho que eles acabaram comigo, sabe? Hoje eu sei que nunca vai cicatrizar nada, nada vai trazer minha autoestima de novo, de mulher. Eu me senti humilhada diante daquilo tudo, e eu ter que ficar calada... Quando cheguei na cidade de Manaus, eu não pude suportar mais isso e contei tudo o que passei", disse K a SUMAÚMA no final de junho.

A história da Indígena nos calabouços do sistema policial e judicial começa em 11 de novembro de 2022. K vivia com seus dois filhos pequenos e sua mãe na periferia de Santo Antônio do Içá, uma cidade de aproximadamente 28 mil habitantes na beira do Rio Solimões, a cerca de 880 quilômetros em linha reta de Manaus, a capital do Amazonas. Segundo a Defensoria Pública estadual, K cumpria prisão domiciliar enquanto era processada pela suposta participação em um homicídio ocorrido na manhã de 31 de dezembro de 2018 em uma casa no bairro Japiim I, em Manaus. Em um crime que causou comoção na capital do estado do Amazonas, na época, uma adolescente de 16 anos foi morta por asfixia por duas mulheres. K e uma amiga foram condenadas pelos jurados do Tribunal do Júri de Manaus a 16 anos e sete meses de prisão.

Segundo a denúncia apresentada pelo Ministério Público (MP), ocorreu "uma discussão entre as envolvidas", momento em que a adolescente passou a ser agredida com socos, chutes e, por fim, estrangulada. Na versão apresentada por K ao MP na época, as agressões aconteceram porque a vítima estaria usando entorpecentes perto da casa, o que iria atrair a atenção da polícia para o endereço.

Em junho passado, K disse a SUMAÚMA que reconhece ter cometido um crime, mas também falou que foi coagida pelo crime organizado a assumir a autoria. Sua amiga, também condenada posteriormente, era, segundo K relatou ao Ministério Público, ligada à facção criminosa Família do Norte (FDN), que, conforme a denúncia, "comanda o tráfico de drogas naquela área".

Em maio de 2020, acolhendo um pedido da Defensoria Pública, a juíza da 2ª Vara do Tribunal de Júri de Manaus, Ana Paula de Medeiros Braga Bussulo, substituiu a prisão preventiva de K por prisão domiciliar sob determinadas condições: comparecimento mensal à Justiça, proibição de sair da cidade e monitoramento eletrônico. Em agosto de 2022, o Judiciário expediu contra a Indígena um mandado de prisão por sentença condenatória, que iria transitar em julgado em fevereiro de 2023.

A mulher do povo Kokama estava em prisão domiciliar até que, em novembro ou dezembro de 2022 - a documentação analisada por SUMAÚMA contém datas contraditórias -, uma vizinha dela acionou a Polícia Militar, segundo a Defensoria, "para intervir em uma possível violência doméstica praticada pelo então companheiro" de K. Mas, quando a Indígena chegou à delegacia para registrar um boletim de ocorrência, policiais "identificaram a existência de um mandado de prisão" contra ela emitido pela 2ª Vara. Seu advogado disse a SUMAÚMA que, até aquele momento, K não sabia que era procurada pela Justiça, tanto que vivia normalmente no endereço da própria mãe, de 50 anos, portadora de sequelas de um acidente vascular cerebral.

A Defensoria narrou, em ofício, uma "falta de documentação relativa ao ato prisional", como a inexistência da audiência de custódia, o que "dificulta substancialmente a compreensão e o acompanhamento detalhado da situação carcerária" da Indígena. A Vara Única da comarca de Santo Antônio do Içá, por exemplo, ainda conforme a Defensoria, só comunicou o juiz da Execução Penal de Manaus sobre a prisão de K em 17 de maio de 2023, mas ela estava sob sua custódia desde 13 de dezembro de 2022. Em outras partes do processo, é informado que K foi presa em 11 de novembro do mesmo ano.

Em Santo Antônio do Içá inexiste um presídio, e muito menos uma cadeia feminina. Todos os presos do município, homens e mulheres, eram colocados no mesmo espaço, o prédio da 53ª Delegacia Interativa de Polícia (DIP) da Polícia Civil. Segundo o advogado de K, a Kokama passava quase todo o dia na mesma cela com outros três detentos, e em algumas noites os policiais permitiam que ela dormisse em outras partes da delegacia, como nos corredores ou na cozinha.

Uma fotografia tirada pelo advogado Carneiro mostra K. deitada no chão da cela muito próxima de dois presos homens. Na parede, alguém pintou uma versão do salmo bíblico 91, versículos 10-11, que fala da proteção divina contra as dificuldades do mundo: "Não te sobreviverá nenhum mal, nenhuma praga tocará tua morada, pois a seus anjos será dada ordem de que te guardem em todos os seus caminhos."

A condição da Indígena na cadeia, porém, era ainda mais grave: seu segundo filho havia nascido em 19 de outubro de 2022. Ela precisava amamentar, portanto, um bebê de apenas 1 ou 2 meses de vida. Conforme relatos de K e seus defensores, a criança permaneceu ao lado da mãe dentro da cadeia durante vários meses. Um ofício enviado pela delegacia de polícia em dezembro de 2022 ao juiz da comarca confirma que a "custodiada [...] encontra-se com seu filho com 1 mês de idade". Além disso, o outro filho de K tinha apenas 10 anos na época de sua detenção.

A prisão de K em Santo Antônio do Içá ocorreu no último trimestre de 2022. Poucos meses depois, em março de 2023, os primeiros sinais de que algo muito grave se passava com ela foram dados pelo próprio gestor interino da cadeia, o investigador de Polícia Civil Valtemir Freire Rodrigues. Em ofício dirigido ao Centro de Referência de Assistência Social (Creas) do governo estadual no município, Freire escreveu em letras garrafais no campo do assunto: "URGENTE!!".

"Informo que a mesma [K] encontra-se custodiada na 53ª DIP/SAI precisando de atendimento psicológico com URGÊNCIA. Que seja enviado um psicólogo e também seja encaminhado o relatório que constam os atendimentos anteriores [...], com urgência."

Um mês depois, em 24 de abril de 2023, um laudo médico emitido pela Unidade Básica de Saúde (UBS) Raimundo Tangoa, em Santo Antônio do Içá, atestou que K sofria de "ansiedade, depressão, acompanhado (sic) de crises de pânico". Em 20 de julho, um exame médico identificou em K "dor e aumento de volume da região retal há mais ou menos uma semana, com dificuldade para fazer necessidades fisiológicas e sentar-se", além de "hemorroida/fissura". O exame indicou a necessidade de "avaliação com um cirurgião". Um dia antes, já passados mais de sete meses da presença de K na cadeia masculina, o juiz da comarca, Felipe Nogueira Cadengue de Lucena, havia dirigido um ofício ao secretário-executivo adjunto da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap), major PM Wallasson de Almeida Lira, para solicitar a imediata transferência da Indígena para uma penitenciária em Manaus.

"A Delegacia Interativa de Polícia desta comarca não é dotada de estrutura para abrigar pessoas do sexo feminino, encontrando-se a reeducanda detida de forma inapropriada desde dezembro de 2022. Até a presente data não foi viabilizada a remoção da reeducanda e, diante da grave situação, pugnamos a esta Secretaria pela adoção das providências necessárias."

A manifestação do juiz, enfim, levou o governo estadual a transferir K da cadeia em Santo Antônio do Içá para o Centro de Detenção Feminino (CDF) localizado na Rodovia BR-174 próximo à cidade de Manaus. Ao chegar à prisão feminina, em 28 de agosto, imediatamente K relatou ter sido vítima de uma série de crimes sexuais na cadeia de Içá. O último estupro teria ocorrido apenas sete dias antes, em 21 de agosto de 2023. A direção do presídio determinou que ela fosse levada à Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher para o registro de um boletim de ocorrência. K citou nominalmente como supostos autores cinco policiais militares e um agente da Guarda Municipal de Içá. O boletim foi registrado para averiguação dos crimes de estupro de vulnerável "ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência", injúria e ameaça.

"Informa que, durante o período de detenção, foi forçada a manter relações sexuais contra a sua vontade contra os autores acima apontados. Informa que foi violentada reiteradamente pelos autores, os quais são policiais e mantinham a sua custódia. Além disso, sofria ameaças, caso os denunciasse, e ofensas verbais, tais como 'puta' etc.", diz o boletim de ocorrência.

A delegada Deborah Souza Ponce de Leão requisitou que a Indígena passasse por exame pericial de conjunção carnal no Instituto Médico Legal (IML), o que foi feito no próprio dia 28 de agosto. O médico perito legista identificou fissura no ânus e "equimoses arroxeadas no tórax (mama direita), abdômen e região cervical". O exame foi inequívoco na sua conclusão:

"Presença de vestígios de conjunção carnal e de atos libidinosos diversos de conjunção carnal no presente exame. [...] O (a) examinado (a) apresentou, na ocasião da perícia, lesão (ões) compatível (is) com as produzidas por instrumento ou meio contundente e de cronologia compatível com a informada no histórico".

Quando indagado "se houve conjunção carnal que possa ser relacionada ao delito em questão", "se houve violência para essa prática" e se a examinada, "por qualquer outra causa, não pôde oferecer resistência", o perito médico respondeu que sim nas três vezes.

Um dia depois do exame, K disse à equipe da enfermaria da cadeia que os abusos sexuais deixaram sequelas intensas no seu corpo. "Os policiais abusaram tanto pela frente como por trás. [...] Relata que antes nunca teve essas coisas [dores]. Relata ter acontecido isso de forma recorrente no período de 11/11/2022 até o dia 21/08/2023."

Em 31 de agosto, K descreveu às enfermeiras da penitenciária momentos de "astenia [fraqueza], tontura, falta de apetite, chorosa, perda de memória parcial", além de outros problemas. "Hoje refere fraqueza, astenia, constipação intestinal, dificuldade para se alimentar, tomar banho, relata sensação de medo, medo de não viver, informa odontalgia [dor de dentes], apresenta labilidade [instabilidade] emocional."

'Eu entrei em choque, em pânico'

Logo depois de fazer o boletim de ocorrência, em 1o de setembro de 2023, K foi levada à presença do defensor Roger Moreira de Queiroz, da Defensoria Pública Especializada em Direitos Humanos, Pessoa com Deficiência e Grupos Socialmente Vulneráveis do Estado. Ele estava acompanhado de dois assessores jurídicos e da psicóloga da cadeia em Manaus. Pela primeira vez de forma extensa e detalhada, K se abriu sobre os seus nove meses e 17 dias na cadeia de Içá.

K começou explicando que, em novembro de 2022, não sabia que havia um mandado de prisão em aberto contra ela. Disse que só foi presa depois que pediu socorro a uma vizinha para se defender de seu então companheiro, "que estava lhe agredindo". Disse que decidiu ir à delegacia para pedir "uma medida protetiva" contra o homem. Mas, quando o delegado checou seus documentos pessoais, informou que "ela estava sendo procurada pela Justiça". Então foi presa.

A Indígena contou que dividia a cela com presos homens e que seu bebê recém-nascido "dormia na cela". Ao longo dos mais de nove meses, disse que não recebeu nenhum "atendimento médico, psicológico, social e jurídico" e que a única ajuda vinha de sua mãe, que a visitava uma vez por semana, às sextas-feiras. K. afirmou que os policiais diziam que ela não era responsabilidade deles e que "só iriam tirá-la de dentro da cela quando já estivesse morta". Numa ocasião, relatou a Indígena, o juiz local visitou a cadeia e comentou que "ela não era presa dele e [que] tinha que mandar ela embora de lá". K fazia serviços gerais na delegacia, como limpar os banheiros, capinar o terreno e lavar a louça.

Segundo K, os crimes sexuais começaram "logo que foi presa". Um sargento da Polícia Militar entrou "com forte cheiro de bebida" na cela e deitou-se ao seu lado. Ela perguntou o que ele estava fazendo ali. Ela tinha acabado de amamentar seu bebê e queria dormir. O policial teria dito "você não vai dormir" e começou a "pegar nas partes íntimas" de K.

"O policial disse: 'Você vai transar comigo, aqui é assim, você tem que colaborar'. O seu filho recém-nascido estava do lado da declarante, no colchão", diz o termo de depoimento prestado por ela à Defensoria.

Na conversa com SUMAÚMA em junho passado, K detalhou: "O sargento se dirigiu até a cela [...] e disse que eu deveria colaborar com eles, que eu estava sob a guarda deles e naquele momento eu teria que ceder. Deitou do meu lado e começou a praticar vários atos comigo, e o meu bebezinho do lado. Eu, naquele momento, entrei em choque, em pânico. Praticamente eu estava me recuperando do resguardo [gravidez], estava amamentando. Eu fiquei sem reação naquele momento, sem saber o que fazer. Me ameaçaram, estavam bêbados".

No depoimento à Defensoria, K contou que outros cinco policiais militares e um guarda-civil também participaram dos estupros e violências nas semanas e meses seguintes.

"Durante o período que ficou dentro da delegacia sofreu abuso; [os policiais e o guarda-civil] transavam com a declarante; os policiais falavam que a declarante precisava colaborar com eles, pois a declarante estava 'nas mãos deles'; era sexo vaginal, anal, tudo. [...] Durante os abusos, era obrigada a consumir bebida alcoólica com os policiais. [...] Os abusos aconteciam durante a noite, todas as noites."

K relatou que os crimes ocorreram "em todas as partes da delegacia, na cela, na sala em que guardavam as armas". A SUMAÚMA, a Indígena contou que também foi estuprada na cozinha da delegacia. Os policiais, segundo ela, tinham as chaves da delegacia e, assim, "faziam o que eles queriam". Conforme K, os presos homens sabiam dos abusos contra as detentas mulheres, mas não faziam denúncias por medo e "porque eram torturados": "[A Indígena] quer que os policiais 'paguem' pelo que fizeram com a declarante; os policiais são monstros; nunca vai esquecer o que fizeram com a declarante", destacou o documento. K disse a SUMAÚMA que os policiais "fizeram todo tipo de barbaridade que você possa imaginar".

"Tenho tido vários tipos de crise. [...] São cinco policiais, eu lembro de todos eles, todos os dias na minha cabeça, todos os dias, quando durmo e acordo, eu nunca vou esquecer o que fizeram comigo", disse a Indígena. E mais uma vez rompe em lágrimas.

'Eu sinto que não vou mais ser normal'

Na conversa com SUMAÚMA por videoconferência, em junho, K contou que não fez as denúncias às autoridades enquanto estava na cadeia em Içá porque temia uma retaliação contra ela e sua família. "Eles ameaçaram fazer algo contra minha família, eu tenho irmã, minha mãe, tem os meus filhos. Eu tive que me transferir aqui para Manaus. [...] A minha família, eu tenho medo. [...] Muitos casos eu já vi de pessoas assim como eu que têm essa coragem de denunciar, e algumas pessoas acabam morrendo. Nunca a Justiça é feita direito."

Só quando chegou à cadeia feminina em Manaus, em agosto de 2023, é que se sentiu segura para pedir à polícia e à Defensoria que tomassem providências.

K disse a SUMAÚMA que passou a ter vários problemas de saúde. "O que aconteceu comigo... Eu sei que eu cometi um crime, mas não poderia ter acontecido isso comigo, o que eles fizeram comigo. Hoje em dia sou uma pessoa depressiva, eu vivo à base de remédios, o meu emocional, a minha integridade feminina... Eu não sou mais a mesma [...]. O que eles fizeram comigo vai ficar para sempre na minha cabeça. Hoje não consigo dormir, às vezes tenho crise."

Uma série de exames e documentos, aos quais SUMAÚMA teve acesso, confirmam as sequelas físicas e os problemas de saúde de K. Em 10 de setembro, nove dias depois do depoimento que prestou à Defensoria, a enfermaria da cadeia feminina relatou que K tinha "tonturas, dor pélvica há quatros dias e febre". No dia 11 de setembro, a Indígena compareceu à enfermaria "chorosa, com pensamento suicida", e por isso foi encaminhada à avaliação psiquiátrica. Sentiu mais dores pélvicas. Em 10 de outubro, entrou na enfermaria em cadeira de rodas, relatando "desmaios e vômitos". Ao longo de dois meses, continuou relatando tonturas, insônia, dores abdominais e na região anal. Nos próximos dois meses, houve episódios de sangramentos.

Em 17 de novembro, depois de atender K em sessão, a psicóloga da Maternidade Municipal Dr. Moura Tapajóz, na qual a Indígena passou por exames, disse à enfermeira do Centro de Detenção Feminino que K "necessita de um acompanhamento semanal com a psicóloga da unidade, pois a mesma está tendo alucinações e pensamentos suicidas".

50 mil reais após meses de barbárie

Depois das revelações de K na cadeia em Manaus, seu advogado desde novembro de 2024, Dacimar Carneiro, decidiu ajuizar uma ação de indenização por danos morais contra o governo do estado do Amazonas. Também solicitou que o governo fosse condenado a providenciar "acompanhamento psicológico e psiquiátrico especializado, a ser realizado por profissionais de sua livre escolha, em instituição pública ou particular". Carneiro pediu ainda 500 mil reais como indenização. Ele escreveu ao juiz do processo:

"A autora [K] não apenas sofreu violência sexual, mas foi reduzida à condição de escrava sexual por período prolongado. As cicatrizes físicas e psicológicas desse período a acompanharão para sempre. Além disso, a violação de sua dignidade como mulher e mãe e a exposição do seu filho recém-nascido à violência agravam ainda mais o risco".

Segundo o advogado, "a violência praticada por agentes do Estado" piora a situação. "O Estado tem o dever de proteger, não de oprimir e violentar. A negligência e a omissão dos agentes estatais em proteger a Autora e seu filho configuram uma falha gravíssima do sistema prisional."

Em decisão tomada em 20 de fevereiro passado, a juíza Etelvina Lobo Braga, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Manaus, determinou que o governo estadual encaminhasse K "ao Centro de Saúde Mental do Amazonas (Cesmam) para realizar os exames necessários e receber a prescrição de medicamentos, devendo o Estado assegurar o tratamento da custodiada". A princípio, decidiu que "não é razoável impor" ao governo a obrigação de arcar com os custos do acompanhamento psicológico e psiquiátrico com profissionais de livre escolha de K. A juíza determinou ainda que o governo fosse intimado a se manifestar no processo.

Em abril deste ano, a Procuradoria-Geral do Estado do Amazonas, representada pela procuradora Thelcyanne de Carvalho Nunes Dias, apresentou, em contestação, uma proposta financeira para fechar um acordo e encerrar o processo por danos morais. O governo ofertou pagar 23 salários mínimos, o equivalente a 35 mil reais. A Procuradoria chamou de "valor exorbitante" os 500 mil reais solicitados pela defesa de K, pois não seria "harmonioso com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade". Ela citou quatro casos de estupros cometidos por agentes públicos em outras partes do país, nos quais as indenizações definidas pela Justiça oscilaram de 40 mil reais a 50 mil reais:

"Por tudo até aqui demonstrado, com esteio doutrinário e jurisprudencial, não pode ser arbitrada indenização por danos morais em quantia irreal e superior àquela costumeiramente estipulada pelos tribunais para casos similares ao presente".

Sobre o pedido de tratamento médico específico, a Procuradoria disse que o pedido de K "não se sustenta" e que ela deveria ser tratada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Citou que a rede pública de saúde do Amazonas "dispõe de unidades de referência em saúde mental, com estrutura para atendimento ambulatorial e hospitalar, além de possibilidade de encaminhamentos e acompanhamentos regulares".

A contestação da Procuradoria não aborda diretamente as denúncias de K, não informa se o governo tomou medidas para apurar o assunto e não diz se houve alguma punição aos policiais acusados, resumindo-se a apresentar uma saída a fim de encerrar o processo de indenização. Mas sugere que, se o acordo fosse fechado, poderia reconhecer que houve dano moral contra a Indígena e seria até vantajoso para ela, pois tudo se resolveria mais rápido do que se fossem esperar o tempo normal de um processo indenizatório.

Em resposta à contestação, a defesa de K ofereceu uma contraproposta e aceitou reduzir o valor de 500 mil para 350 mil reais: "Embora nenhum valor possa apagar o que aconteceu, a indenização é uma forma de proporcionar à Autora e a seu filho acesso a tratamento médico adequado, apoio psicológico e uma vida mais digna, que lhes permita reconstruir suas vidas e superar os traumas sofridos".

Segundo o advogado Carneiro, a Procuradoria do Amazonas voltou a apresentar uma proposta para fechar um acordo, dessa vez na faixa dos 50 mil reais. O advogado disse que a proposta será novamente recusada:

"O valor, no mínimo, beira o ridículo. Cinquenta mil reais não cobrem sequer o tratamento médico. A moça está com problemas sérios. Está tomando muitos medicamentos para ter um controle emocional. Está com uma depressão em nível alarmante. A assistência social da penitenciária tem nos informado que a situação está cada vez pior. A Procuradoria acha que ela deve ser atendida pelo SUS. Ela precisa de fato de especialistas dedicados o tempo todo ao caso, tanto em relação aos problemas físicos quanto em relação ao seu estado mental. O Estado já errou em tudo. Ela está tendo acompanhamento médico, mas não está sendo suficiente. Precisa ser acompanhada de perto. Ela corre risco de morte tanto em relação à denúncia quanto em querer tirar a própria vida".

O caso agora aguarda uma decisão definitiva do Judiciário, o que não havia ocorrido até a conclusão desta reportagem.

Antiga 'masmorra'

Em Santo Antônio do Içá, SUMAÚMA visitou, no final de junho, a delegacia em que K ficou presa por mais de nove meses. O atual delegado de Polícia Civil e, ao mesmo tempo, responsável pela gestão da cadeia, Ubiratan Farias, disse que soube extraoficialmente da denúncia da Indígena, mas não poderia comentar o caso porque chegou à unidade depois que ela havia sido transferida para Manaus. Segundo o delegado, uma apuração oficial foi aberta pela Polícia Militar do Amazonas por meio de um Inquérito Policial Militar instaurado em outubro de 2023, que "fez toda essa parte de ouvir as pessoas". Contudo, não soube dizer se já houve um resultado, pois isso não lhe foi comunicado.

De fato, a portaria que designou o delegado para o cargo em Içá é de dezembro de 2023, e ele chegou ao município em janeiro de 2024, cinco meses depois da transferência de K para a capital do Amazonas, em agosto de 2023.

Farias explicou a SUMAÚMA que, desde então, a cadeia e a delegacia passaram por melhorias significativas. Ele reconheceu que encontrou o local em péssimas condições quando tomou posse do cargo. Ao mostrar fotos da cadeia antes de sua chegada, o delegado admitiu que "era uma masmorra" - o aspecto geral do prédio era de abandono, havia goteiras e paredes com pintura descascada. Esse cenário mudou. Afirmou também que recebeu apoio de moradores e empresas de Içá e de órgãos públicos para fazer uma ampla reforma e "reinaugurar" a delegacia em setembro de 2024. Agora, a unidade está pintada, tem 14 câmeras de vigilância e os detentos receberam um uniforme padrão. Na época da "reinauguração", o delegado gravou um vídeo que foi postado no Instagram, no qual relatou:

"Quando chegamos aqui, nós vimos um estado de terror na unidade. Era uma unidade deteriorada, com poucos equipamentos. Porém, com a gente, com o nosso trabalho, com a gestão do delegado, investigadores, escrivães, nós iniciamos um trabalho de reestruturação. Pedimos força à população, a união de todos, fomos buscar recursos junto ao município, ao Estado, para que pudéssemos trabalhar e melhorar essa unidade. E essa unidade não funciona só como uma unidade policial, ela é híbrida, também recolhe presos como se fosse um sistema prisional".

O delegado disse ainda que procura "tratar e combater o crime da forma mais adequada e mais humana possível". Farias contou a SUMAÚMA que não apenas Içá, mas outros três municípios da região do Solimões historicamente não contam com uma cadeia integrada ao sistema penitenciário, e que por isso as delegacias acabam funcionando como presídios improvisados. Citou que as delegacias abrigam, em média, 20 presos em Içá, 20 em Tonantins, 40 em São Paulo de Olivença e 60 em Benjamin Constant. Para atender a toda essa região, há apenas um presídio localizado em Tabatinga. Somados, os quatro municípios registram cerca de 118 mil moradores.

SUMAÚMA buscou outras fontes, além da polícia, para entender a atual situação da cadeia em Içá. Servidora do Ministério Público na cidade e integrante do Conselho da Comunidade para a Execução Penal, Claudineia de Oliveira Silva confirmou que houve melhorias no prédio da delegacia/cadeia a partir de 2024, mas continua o problema crônico da superlotação.

Em março de 2025, um relatório de inspeção do Conselho da Comunidade encontrou 20 presos em duas celas, quando a capacidade máxima é de quatro detentos para cada cela. Os colchões estavam "em péssimo estado de uso" e os cobertores eram fornecidos pelas famílias. A alimentação foi avaliada como "boa", com cinco refeições diárias. Não houve reclamação dos detentos. Os banhos de sol ocorriam, em média, de três a quatro vezes por semana. O prédio da delegacia, segundo o relatório, estava em "ótimo estado de preservação".

"A iluminação da unidade é regular e há iluminação natural e artificial dentro e fora das celas. Nas celas, há janelas de ventilação no alto da estrutura, as quais permitem a entrada de iluminação natural", diz o texto.

O relatório não faz referência à presença de mulheres em março, nem explica onde são colocadas quando ingressam na unidade. Segundo Claudineia Silva, às vezes as mulheres presas são autorizadas a passar a noite em outras partes da cadeia fora das celas, como a cozinha. O Conselho não recebeu oficialmente as denúncias feitas por K, porque ela as formulou depois que havia deixado a cadeia em Içá. Segundo o advogado Dacimar Carneiro, depois da denúncia de K, as detentas do sexo feminino têm sido mantidas em prisão domiciliar, por ordem judicial, a fim de evitar a mistura de homens e mulheres.

A Polícia Militar não se manifesta

Procurada por SUMAÚMA na terça-feira, 8 de julho, a assessoria da Polícia Militar do Amazonas não respondeu - até a conclusão desta reportagem - a uma série de questionamentos, entre eles se os policiais envolvidos no crime contra K foram afastados e/ou punidos. A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas também foi procurada, mas tampouco respondeu.

No dia 11 de julho, a reportagem entrou em contato com o Ministério Público do Amazonas, que não deu esclarecimentos. No dia 15, porém, o órgão informou que ainda estava levantando informações sobre o assunto, pois houve mudanças na promotoria responsável, e assim que possível daria um retorno. SUMAÚMA apurou que, em parecer assinado em 4 de outubro de 2023, o promotor de Justiça Marcelo Augusto Silva de Almeida solicitou ao juiz da Vara de Execuções Penais de Manaus, entre outras medidas, "que as autoridades competentes investiguem os possíveis crimes praticados contra a apenada [K] no âmbito da 53o DIP da Comarca de Santo Antônio de Içá, remetendo o resultado da investigação para as autoridade competentes". O MP não explicou o que foi feito a partir da solicitação do promotor.

Na entrevista a SUMAÚMA, em junho, a Indígena K disse que busca a responsabilização dos agentes do Estado que a violentaram: "Eu quero justiça porque acabou a minha integridade. Eu sinto que eu não vou ser mais normal. Isso me abalou para sempre. Eu sei que adoeci tanto emocionalmente quanto psicologicamente. Não tem nada que possa [me fazer] voltar [à normalidade], a não ser meus filhos".

https://sumauma.com/indigena-presa-em-cela-masculina-acusa-policiais-de-estupros-em-serie-enquanto-amamentava-bebe/
 

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