From Indigenous Peoples in Brazil
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Alice Pataxó: 'Quando temos mulheres indígenas no comando, começamos a progredir não só no discurso, mas na sua eficácia'

27/09/2025

Autor: Marília Kodic

Fonte: Um só Planeta - https://umsoplaneta.globo.com/



Alice Pataxó: 'Quando temos mulheres indígenas no comando, começamos a progredir não só no discurso, mas na sua eficácia'
Entre a aldeia e o algoritmo, Alice Pataxó vem rompendo os filtros do imaginário colonial com afeto e o chamado para um futuro que respeite nossas raízes


Entre as esquinas ruidosas e performáticas das redes sociais, a voz de Alice Pataxó ressoa com a força pulsante da floresta. Com humor afiado, informação precisa e apuro estético, ela articula como poucos a ancestralidade na era dos algoritmos. Nascida na comunidade Pataxó, no sul da Bahia, a ativista e comunicadora indígena emergiu como liderança aos 15 anos, quando precisou defender sua aldeia durante uma reintegração de posse.

Desde então, sua voz rompeu fronteiras e se firmou como uma das mais eloquentes de sua geração: aos 20 anos, discursou na COP26 (2021) denunciando a realidade dos territórios indígenas brasileiros, e seu impacto foi tanto que Malala Yousafzai a indicou para a lista de mulheres mais influentes do mundo da BBC (2022). Além de ter integrado iniciativas como o Fundo Malala e o projeto Cunhataí Ikhã, voltados à formação de novas lideranças femininas indígenas, passou a ocupar o território digital com um talento único para friccionar tensões poéticas e políticas.

No Brasil marcado pelo preconceito sistemático contra os povos originários e o esvaziamento das discussões sobre cultura e território, Alice Pataxó faz da palavra sua flecha certeira para interromper a marcha e mudar o tom, convocando-nos a sair do automático e, enfim, voltar a ouvir o pulmão do Brasil.

MARIE CLAIRE Como a visibilidade de ocupar palcos globais dialoga com a invisibilidade que os povos originários ainda enfrentam no Brasil?

ALICE PATAXÓ Essa visibilidade se tornou mais importante do que eu imaginava e teve um grande papel para eu me entender enquanto liderança no espaço internacional. Quando comecei a fazer conteúdo nas redes sociais, queria que as pessoas de fora da comunidade tivessem acesso a informações sobre o meu povo. Mas, em algum momento, entendi que precisava ser clara para ambos os públicos. Não posso falar de relações indígenas sem me comunicar com a própria comunidade. É claro que quero que as pessoas de fora escutem, compreendam e levem o discurso adiante, mas também é importante que os meus possam entender o que estamos construindo como liderança.

MC Seu conteúdo nas redes traz informação, humor e referências pop, como na campanha "Indígenachella". É desafiador manter um formato leve, provocador e também político?

AP É fácil ter uma postura de liderança sem que as pessoas o conheçam de fato. Mas elas têm muita curiosidade sobre meu dia a dia, quem eu sou. Sempre tentei separar as coisas, mas agora entendo que preciso aprender a lidar com ambas, colocá-las em xeque. Tem sido um desafio, não vou mentir. Mas consigo trazer temas diferentes que geram um sentimento de identificação. Gosto muito de cultura pop, de rap, por exemplo. Quando abordamos assuntos não unicamente políticos, mostramos que também estamos acessíveis.

MC Como lida com ataques e desinformação?

AP Teve uma fase pior, quando o hate era mais pesado e parei de ler comentários. Mas, com o tempo e o amadurecimento, aprendi que não precisava internalizar tudo o que diziam. Entendi que se eu estava incomodando era porque estava fazendo algo certo. Hoje adoro ver o que as pessoas estão pensando e até discutir com elas. "Ah, mas você não aborda tal ponto." "Realmente, mas tem isso e isso também, não cabe tudo num vídeo de um minuto, né? Mas vamos fazer um segundo." Gosto que as pessoas participem, que sugiram conteúdos. A ideia é tornar as comunidades mais próximas por meio das redes sociais.

MC Estar sempre ativa na internet, presa em números e performance, te afeta?

AP Já afetou mais. Mas entendi que às vezes vou gostar de um conteúdo e meu público não. É um malabarismo. Claro que pensamos muito em quem nos segue, as visualizações são importantes nessa área, mas é também sobre o recado a ser dado, sobre construir algo correto sem fazer disso um show. Não quero nunca precisar fazer conteúdo apelativo. Quero construir com respeito - por nós e por quem nos acompanha.

MC De onde vem o olhar colonial sobre a estética indígena e como você o subverte?

AP Vem da história que o Brasil conta sobre o próprio indígena. Que vivíamos nus, que não tínhamos referências, que nossa arte servia apenas para enfeitar. Não é bem assim. As pinturas têm significado, os adereços têm simbolismo. E também trazem identificação com o próprio povo. Quando encontro alguém na rua com pinturas, sei quando é do meu povo, quando é do povo Tupinambá. E também faço uso disso porque sei que chama atenção. Quero que as pessoas tenham curiosidade para assistir ao meu vídeo, que se mantenham ali por um minuto. As pessoas perguntam muito sobre o aíptxuy [adereço de osso usado no nariz]. Há alguns comentários maldosos, mas por ignorância. E estamos aqui justamente para fazer essa ponte. Se você vai me acompanhar por conta do que estou vestindo, ótimo. Mas presta atenção no conteúdo.

MC Muitas pessoas ainda se aproximam da cultura indígena com um olhar fetichizado, especialmente no que tange o turismo às aldeias e a apropriação de medicinas como o ayahuasca. Como enxerga essa relação?

AP Não basta você vir usufruir da nossa cultura, das nossas relações e da nossa medicina sem levar em consideração o quanto as políticas públicas violentam esse lugar e invisibilizam nosso conhecimento e nossas práticas.

MC Pela primeira vez, o Brasil tem um Ministério dos Povos Indígenas. Quão efetiva é essa nova pasta?

AP Gostaria que as pessoas que criticam a atuação do Ministério dos Povos Indígenas entendessem que ela não se constrói do dia para a noite. O ministério tem suas demandas, suas questões, sua própria construção. Mas reconhecemos que nunca tivemos a oportunidade que temos hoje. É um momento histórico para o movimento indígena no Brasil. Quando temos uma mulher indígena no comando do ministério, uma mulher indígena no comando da Funai e essas duas instâncias conversando, começamos a progredir não só no discurso, mas principalmente na sua eficácia. O Brasil está defasado em relação aos direitos indígenas, mas grande parte dos problemas pelo menos vem ganhando visibilidade. É um começo.

MC Mesmo com a vitória no STF contra o Marco Temporal, projetos como o PL 490 ainda avançam no Congresso. O que essa insistência legislativa revela sobre a política brasileira?

AP Diz muita coisa e ao mesmo tempo não diz nada. É uma política que não atende ao interesse da sociedade civil. O racismo anti-indígena passou a ser escancarado e tudo está sendo feito de modo muito violento. As pessoas sabem, gravações são feitas e divulgadas, mas não há nenhuma iniciativa do Estado de intervir. E aí eu me pergunto o que as pessoas esperam disso. Que os povos indígenas resolvam seus próprios conflitos? Como isso funcionaria? Necessitamos desse território, e estamos falando de uma relação ancestral. Não é uma questão de julgamento, arbitrária. É inadmissível ainda estarmos discutindo esse tema.

MC A luta indígena quase sempre é vista como política ou ambiental, mas raramente espiritual. Isso empobrece o entendimento do que está em jogo?

AP Com certeza. As pessoas esquecem quanto um território carrega de significado para cada povo. As relações que construímos dentro dele e com ele e o quanto essas ligações são importantes espiritualmente. Quando falamos em território ancestral, é disso que estamos falando. Não é uma palavra vazia de significado.

MC Como encontrar fôlego dentro da luta? O que tem aprendido sobre limites quando se espera que o corpo indígena seja sempre resistência?

AP Aprendi a levar isso com muita leveza. As amizades e parcerias que vamos construindo no caminho trazem certa paz. Existe frustração, mas também existe alegria. Nem tudo é ruim, nem todos os assuntos são tristes. Precisamos compreender que não dá para carregar o mundo nas costas.

MC Num tempo tão acelerado, o que o Brasil poderia aprender com o tempo indígena - esse outro jeito de viver, lembrar e repassar conhecimento?

AP É um dilema para mim, viu? Eu me vejo nos dois mundos, e às vezes é difícil conciliá-los. Entendo que preciso ter datas, metas e métricas, mas também gosto de não ter esse tempo linear. As ideias do que é ser uma pessoa produtiva na sociedade diferem completamente. Mas temos que encontrar um meio-termo, até porque já ficou bem claro que não conseguimos mais estar em um único lugar. A pessoa indígena precisa estar aqui fora para poder defender os próprios direitos. Precisamos entender esse outro universo - mas sem deixar de respeitar e acreditar naquilo que crescemos cultivando.

https://umsoplaneta.globo.com/sociedade/noticia/2025/09/27/alice-pataxo-quando-temos-mulheres-indigenas-no-comando-comecamos-a-progredir-nao-so-no-discurso-mas-na-sua-eficacia.ghtml
 

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