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Quilombolas marajoaras transformam conhecimento local em mapas para proteger seus territórios

26/11/2025

Autor: Iara Campos

Fonte: InfoAmazonia - https://infoamazonia.org/2025/11/26/quilombolas-marajoaras-transformam-conhecimento-l



Quilombolas marajoaras transformam conhecimento local em mapas para proteger seus territórios
Em Salvaterra, na ilha do Marajó, mapas feitos a várias mãos unem saber ancestral e ciência na proteção dos territórios quilombolas.

Por Iara Campos
26 novembro 2025 at 8:00

Qual é o papel de um mapa desenhado a lápis por quem vive o território?

Em Salvaterra, na ilha do Marajó, essa pergunta atravessa comunidades quilombolas que aprenderam a registrar, em papel e memória, aquilo que sempre souberam de cor: os caminhos até os roçados, matas, igarapés, lugares sagrados e áreas de conflito com o agronegócio. É a ancestralidade de mãos dadas com a ciência.

O processo coletivo em torno da cartografia, construído desde 2017 a partir do projeto Indicadores Socioambientais, da Universidade Federal do Pará (UFPA), reúne 15 comunidades quilombolas. Na prática, o que resulta é uma ferramenta de gestão territorial, reivindicação de direitos, preservação socioambiental e memória coletiva dos povos.

"O mapa é a expressão mais fiel possível do território, porque é produzido por quem vive nele", afirma o professor Otávio do Canto, geógrafo e coordenador metodológico do projeto. Segundo ele, a cartografia participativa começa com um processo de aproximação da comunidade. "Não existe possibilidade de fazer cartografia participativa sem essa relação mínima de confiança. Se eles não confiam no grupo, podem dar informações distorcidas. Então, o mapa não vai representar, de forma alguma, a realidade do grupo", explica.

O mapa é a expressão mais fiel possível do território, porque é produzido por quem vive nele."
Otávio do Canto, geógrafo e coordenador metodológico do projeto Indicadores Socioambientais.

Oficina de cartografia participativa. Foto: Herbert Júnior/InfoAmazonia
Cartografia participativa: da oficina ao mapa

A cartografia participativa é um método de mapeamento que ganhou força no Brasil a partir da década de 1990, impulsionado por organizações como a Comissão Pró-Índio de São Paulo e o Instituto Socioambiental (ISA). Ela nasce da necessidade de comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e ribeirinhas afirmarem sua presença e protegerem seus territórios diante de conflitos fundiários e políticas de desenvolvimento. Diferente da cartografia oficial, geralmente produzida por órgãos estatais e voltada a interesses econômicos, essa técnica busca valorizar os saberes locais e a leitura do território feita por quem o habita.

Na prática, o processo começa quando pesquisadores e comunidades estabelecem um primeiro contato e definem, juntos, o objetivo do mapeamento. Após reuniões iniciais, são marcadas oficinas de cartografia participativa. Nelas, moradores se reúnem e recebem uma carta-imagem - uma fotografia de satélite do local - sobre a qual passam a registrar informações sobre o uso do território.

As marcações indicadas pelos moradores são feitas diretamente sobre o mapa, com etiquetas coloridas e anotações manuais. Ao fim da oficina, esse material é fotografado e levado pelos pesquisadores ao laboratório do Núcleo de Meio Ambiente da universidade (NUMA-UFPA), onde as informações são digitalizadas e organizadas na primeira versão do mapa. Depois, o grupo de pesquisadores retorna à comunidade duas ou três vezes para refinar os dados, garantindo que cada elemento representado seja reconhecido por quem vive ali.

Nas oficinas promovidas em Salvaterra, os moradores dos quilombos se reuniram para "desenhar" o território a partir de suas experiências cotidianas. Os encontros aconteciam nas associações comunitárias, escolas e até sob a sombra das árvores. Cada grupo indicou os pontos que compõem seus territórios, como igarapés, locais de pesca e caça, roças, áreas de coleta de frutos, caminhos usados pelos mais velhos e pontos de ameaça, como cercas de fazendas e de avanço das monoculturas. Depois, as informações foram levadas à universidade e sistematizadas pelos pesquisadores, unindo técnica e conhecimento local.

"Nós unimos a organização comunitária com os instrumentos científicos para produzir uma cartografia. O resultado é um instrumento inovador para a comunidade, porque ela passa a ter um registro de sua realidade, de seus conflitos e conquistas", diz Otávio do Canto.

Os mapas são impressos em grandes formatos, geralmente o A1, e também disponibilizados digitalmente, permitindo o acesso gratuito pelas comunidades. "O nosso projeto trabalha com três palavras fundamentais: ciência, inovação e empoderamento social", complementa o professor e coordenador do projeto.
Zonas costeira e estuarina amazônicas: várzea de maré, uso de recursos, ambientes, territórios, conflitos socioambientais e cartografias participativas - GPSA-Amazônias, 2017. Imagem: Otávio do Canto, Norbert Fenzl e Márcia Santos (orgs.) Crédito: iaramaria901
Registro de identidade

O resultado do processo, para a professora e liderança comunitária Claudeth Sousa, da comunidade quilombola de Rosário, significou mais do que "aprender a mapear": foi uma afirmação de identidade e visibilidade. "Poder dizer que vivemos de modo ancestral, coletivamente, é fortalecedor. O que antes dava vergonha de falar, hoje a gente se encoraja a dizer: eu sou quilombola, eu sou preta, eu sou mulher, eu sou mãe."

Poder dizer que vivemos de modo ancestral, coletivamente, é fortalecedor. O que antes dava vergonha de falar, hoje a gente se encoraja a dizer: eu sou quilombola, eu sou preta, eu sou mulher, eu sou mãe."
Claudeth Sousa, professora e liderança comunitária.

Dentre as 15 comunidades participantes, a de Rosário foi a última a ser integrada. Claudeth explica que foi "muito importante se enxergar de fato", porque nenhum município do Marajó tinha acesso a esses dados. "Tinha um mapa geral, mas não um mapa de cada comunidade. Cada uma delas tem sua maneira de ser, de viver, sua cultura, sua tradição".

A professora e líder comunitária recorda a importância da cerimônia de devolutiva dos mapas às comunidades, realizada em maio de 2025. "Esse momento, com a participação de várias instituições, foi o mais importante. Para a gente dizer ao município: estão aqui os nossos mapas. Nós existimos, conseguimos comprovar isso", recorda. E reafirma a relevância pedagógica do acesso digital aos mapas: "Queremos apresentar às crianças, levar para a escola. A versão digital vem com QR Code e é fácil de acessar. É muito simbólico poder mostrar o território para quem nasce nele".
'Sempre estivemos ali'

Em Deus Ajude, outra comunidade quilombola de Salvaterra, Deco Souza, professor e liderança local, encontrou na cartografia uma forma de reafirmar direitos. Ele conta que, a partir da produção dos mapas participativos, passou a perceber com mais clareza as mudanças causadas pelo agronegócio no território.

"Algumas áreas de pesca e extrativismo que antes eram livres hoje estão cercadas. Para entrar, temos que pedir permissão para quem se diz dono. Então, com o mapa, a gente prova que usava aquele espaço muito antes", explica Souza.

Com a presença do setor agropecuário se intensificando na região desde 2020, o professor diz que o material produzido é útil para defender não só sua comunidade, mas também as vizinhas. "O mapa é uma ferramenta para contrapor aquilo que os fazendeiros dizem. Eles afirmam que a área é deles, mas nós mostramos, a partir do mapa e das vivências dos mais velhos, que sempre estivemos ali."
Deco Souza, professor e líder quilombola de Salvaterra. Foto: Iara Campos/InfoAmazonia Crédito: iaramaria901

Segundo dados da plataforma MapBiomas, as áreas de agricultura e pastagem aumentaram 417% no bioma Amazônia desde 1985. Os quilombos de Salvaterra estão entre as muitas comunidades tradicionais ameaçadas pela expansão do agro.

Em contrapartida, a cartografia participativa, além de virar parte da rotina local, também abriu portas para novas ideias. "A gente trabalha com esses mapas na escola e nas reuniões da associação. Eles ajudam a ensinar e a resgatar memórias. Uma aluna, inclusive, se inspirou e foi estudar georreferenciamento, porque viu a importância disso para nós", diz Deco Souza.
A visão da ciência: entre o mapa e o meio ambiente

O geólogo Norbert Fenzl, também professor da UFPA e coordenador do projeto, lembra que, embora não substituam mapas oficiais, esses registros têm valor concreto. "Eles são úteis. Quando uma grande empresa compra um território e ocupa uma parte grande da população, como é que essa população prova que vive ali há tanto tempo? Eles não têm documentação. Então, essa cartografia dá a eles um instrumento importante para se defender", afirma.
Oficina de cartografia participativa. Foto: Iara Campos/InfoAmazonia Crédito: iaramaria901

Segundo Fenzl, as cartografias podem influenciar políticas públicas, pois esses mapas têm um certo peso quando a população é chamada a defender seus direitos. Ele explica que os órgãos públicos também passam a perceber a cartografia como um instrumento útil para identificar quem mora na região, de que forma e quais são as áreas de ocupação.

O professor Otávio do Canto relata que um dos mapas feitos anteriormente em Deus Ajude foi utilizado em um processo judicial contra produtores de arroz que avançaram sobre terras quilombolas. "O mapa se torna um instrumento de prova, mas também de educação. Quando um grupo vai a Brasília mostrar seu mapa, não é a voz de um pesquisador, é a voz de uma coletividade dizendo: 'é assim que vivemos, é assim que cuidamos'".

A experiência em Salvaterra revela como ciência e saberes tradicionais podem se complementar em tempos de crise climática e pressão sobre os territórios. O conceito de Soluções Baseadas na Natureza (SbN) - ações que utilizam ecossistemas e processos naturais para enfrentar desafios sociais e ambientais, como clima, água e biodiversidade - propõe justamente isso: unir conhecimento técnico e práticas locais para enfrentar desafios ambientais.

Nos mapas dos quilombolas marajoaras, essa ideia ganha forma concreta. Cada linha desenhada é também uma forma de afirmar que a vida no território é parte da solução para manter a floresta em pé e a memória viva. Como disse Claudeth, "se a gente não conhece o nosso território, a gente não tem como defender. Se a gente não sabe onde começa, onde termina, o que tem e como proteger, a gente perde tudo".

Desafios e perspectivas

Embora o projeto avance ano após ano, ainda existem gargalos a serem enfrentados. A coordenação metodológica reconhece que "a relação mínima de confiança" exige tempo e diálogo intenso com as lideranças e comunidades em geral. Também há desafios técnicos, como a sistematização dos dados, a sintonia fina com mapas oficiais, e o acesso à tecnologia digital nos quilombos.

O uso cotidiano dos produtos também preocupa. Um dos desafios é fazer com que as 15 comunidades realmente se apropriem dos mapas em vez de deixá-los na gaveta. Os documentos podem ser usados tanto pelas associações, escolas e conselhos municipais de meio ambiente quanto por instrumentos de planejamento público.

Há ainda os empecilhos logísticos enfrentados pelos coordenadores do projeto. As viagens até a ilha do Marajó, a maior ilha fluviomarítima do planeta, envolvem uma travessia de cerca de quatro horas pelo rio Paracuri, seguida por mais 27 quilômetros de estrada até o município de Salvaterra. Já em solo marajoara, o percurso até as comunidades costuma ser por estradas de terra, muitas vezes em condições precárias, com pontes quebradas e trechos bastante enlameados.
Traço final: as memórias de vida

Os mapas feitos pelos quilombolas de Salvaterra não se limitam a coordenadas geográficas: são registros de vida, memória e das práticas cotidianas. São ferramentas que convertem o invisível, a história oral, os saberes de pesca e de plantio, em visível e reivindicável. "É você fazendo, é você falando do seu território, de fato. Não é uma pessoa de fora que vai dizer o que tem. É a comunidade que fala", diz Claudeth.

Num contexto em que os ecossistemas se transformam, os ventos da mudança climática sopram cada vez mais forte e as comunidades tradicionais lutam por reconhecimento e proteção, esse tipo de cartografia coletiva emerge como uma das possíveis soluções baseadas na natureza, não apenas pela preservação ambiental, mas pela justiça e pelo futuro que essas populações desejam construir.

"A cartografia é isso, ela engloba ancestralidades culturais e é um meio de manter e resgatar o que estava no apagamento, pra gente reviver o território de fato", avalia Souza. Assim, entre rios, lembranças e caminhos traçados à mão, a cartografia participativa segue se afirmando como um gesto de resistência, um modo de reescrever o mapa da Amazônia a partir das vozes que sempre estiveram presentes no território.

Imagem de abertura: Comunidades de Salvaterra fazem oficina de cartografia participativa. Foto: Iara Campos/InfoAmazonia

Esta reportagem foi produzida com apoio do Centro de Pesquisa Florestal Internacional e Centro Internacional de Pesquisa Agroflorestal (CIFOR-ICRAF no Brasil), por meio do projeto de educomunicação Jornalismo e Soluções baseadas na Natureza, uma parceria inédita entre a instituição, a InfoAmazonia e a Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará.


https://infoamazonia.org/2025/11/26/quilombolas-marajoaras-transformam-conhecimento-local-em-mapas-para-proteger-seus-territorios/
 

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