From Indigenous Peoples in Brazil
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News
Difuso e coletivo, entre o justo e a farsa
24/04/2010
Autor: Gunter Axt
Fonte: ClicRBS - http://www.clicrbs.com.br/
Uma das coisas que diferencia positivamente o Brasil dos outros emergentes e dos outros vizinhos latino-americanos é o reconhecimento dos chamados direitos difusos e indisponíveis, os quais foram codificados em uma série de leis infraconstitucionais, sobretudo no início dos anos 1990, tais como o Código do Consumidor, o Código do Meio Ambiente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação de preservação do patrimônio histórico e cultural... Na base desse novo paradigma jurídico está a percepção mais ou menos evidente de que as instituições brasileiras eram injustas. Contaminadas pela histórica indistinção entre espaço público e privado, eram encharcadas de clientelismo e tráfico de influências, esgarçadas pela corrupção e reprodutoras de um modelo socialmente oligárquico e excludente. Este novo horizonte jurídico, derivado da Lei da Ação Civil Pública, de 1985, foi desenhado por lideranças que entendiam necessitar a chance de construção de uma democracia real no Brasil de instrumentos capazes de compensar a ineficácia da clássica representação liberal por excelência, ao nível dos Parlamentos, sempre corrompida por deletérias práticas políticas.
Dentre os desdobramentos importantes desse manancial está o reforço à noção de propriedade coletiva. Um prédio histórico tombado, por exemplo, ainda que privado, torna-se investido de uma dupla noção de propriedade: além da particular, a do interesse público. Fica, portanto, o proprietário proibido de demolir o imóvel e constrangido a respeitar critérios técnicos em reformas e adequações. Preservado o patrimônio histórico, ganha a comunidade, pela garantia de acesso às âncoras culturais que significam a sua identidade.
Outro exemplo característico é o da desapropriação de terras com o fito de assegurar direitos indígenas e de descendentes de quilombolas. Em muitos casos, corrigem-se injustiças históricas e garante-se a uma população maltratada e expropriada a gerações um torrão de subsistência.
Porém, como tudo no Brasil, o que é bom pode acabar sendo desvirtuado. Certos manifestos exageros vêm lançando indivíduos e coletividades inteiras na condição de reféns de grupos organizados e de burocratas insensíveis.
O processo de tombamento, por exemplo, de prédios de interesse histórico tem acalentado injustiças e lamentáveis distorções. Em muitas cidades, imóveis listados para eventual tombamento podem permanecer nesta condição de natureza transitória por anos a fio, penalizando os proprietários, que, assim, têm dificuldade em comercializá-los ou, mesmo, reformá-los. O democraticamente correto seria que o órgão público responsável por avaliar os edifícios de interesse histórico fosse invariavelmente obrigado por lei a se manifestar sobre o tombamento ou não dentro de um prazo determinado. Fossem seis meses, um ano. Pouco importa. Mas não é admissível que órgãos públicos protelem indefinidamente uma decisão, agindo assim com irresponsabilidade para com o cidadão honesto que paga os seus impostos regularmente.
Além disso, se tombado um prédio, penso que o proprietário do imóvel deveria ter acesso a compensações por parte do poder público. Não pode o interesse público ser imposto sem compartilhar responsabilidades. Todo direito pressupõe também deveres. Assim, o proprietário de um bem tombado poderia automaticamente ser beneficiado com o direito de comercializar o índice de construção. Trata-se, aqui, digamos, de uma terceira instância compreendida pelo direito de propriedade, isto é, o direito não utilizado de construir algo maior ou mais alto sobre um certo terreno. Atualmente, a autorização para a venda dos índices de construção costuma obedecer a fatigantes démarches. Por fim, o proprietário de um imóvel tombado deveria ser contemplado com isenções ou abatimentos sobre o IPTU, em casos de reformas e conservação.
Mais complexo é o caso das terras indígenas ou de ex-quilombolas. É evidente que se é possível comprovar a ocupação original de uma área por estas populações, o reconhecimento da propriedade coletiva ajuda a corrigir históricas injustiças. Mas o reconhecimento desse direito pode se tornar polêmico quando fere direitos de outras coletividades. Casos, nos quais, convém avaliar os desdobramentos e argumentos com cuidado. Há casos, ainda, que os relatórios histórico-antropológicos que fundamentam a tese de ocupação original da área alcançam conclusões temerárias, apoiando-se sobre metodologia falaz.
Apoiando-se muitos desses relatórios quase que exclusivamente em depoimentos orais, há rumores de que memórias coletivas possam ter sido previamente plantadas por grupos militantes. Construiriam-se, assim, falsas provas, mas que nem por isso deixam de sensibilizar promotores ou juízes, embora bem intencionados, estranhos às armadilhas intrínsecas à metodologia de construção do discurso histórico e antropológico.
Em Porto Alegre, já nos deparamos com exemplos constrangedores neste sentido, tais como a ocupação da área de preservação ambiental do Morro do Osso por índios. Ora, qualquer criança de primário sabe que a etnia caingangue jamais habitou em Porto Alegre e que os guaranis já haviam se retirado desta região quando os primeiros portugueses e açorianos chegaram no século XVIII. Além disso, jamais restou provada a existência do mítico cemitério indígena no referido morro. Mas o falso direito aqui prejudica o interesse coletivo de toda a cidade, que se vê privada de um parque e corre o risco de ver degradada por conta da ocupação humana ilegal de uma área de preservação.
Outro caso semelhante é o do célebre Rincão dos Silva. A exceção de depoimentos orais, não se localizaram, até onde eu sei, documentos comprobatórios da existência de um imemorial quilombo naquela área.
Qualquer historiador ou antropólogo experiente e responsável sabe das limitações que os depoimentos orais encerram. É impossível encará-los como verdades absolutas e incontestes. São, quando muito, representações que o indivíduo constrói sobre determinadas vivências, sobre as quais podem operar inúmeras injunções.
A intelectual argentina Beatriz Sarlo, uma das mais importantes críticas da cultura contemporânea, fala, inclusive, de uma recente "guinada subjetiva", que, por meio da história oral, estaria restituindo a confiança absoluta no narrador de sua própria vida como forma de reparar uma identidade machucada, seja individual ou coletiva. Para Sarlo, os discursos testemunhais, por mais importantes e genuínos que sejam, são discursos "e não deveriam ficar confinados numa cristalização inabordável". O relato individual e a opinião pessoal não podem substituir a análise.
Em torno do paradoxo do testemunho, conhece-se o rumoroso caso da Nobel de Direitos Humanos Rigoberta Menchú. Sua biografia, escrita pelo sociólogo Régis Débray, a partir de seu testemunho, narrou fatos que, mais tarde se comprovou, não teriam acontecido, tais como a descrição da morte do irmão de Rigoberta, que teria se dado num suposto massacre perpetrado pela polícia em uma pequena cidade do interior da Guatemala, investida esta que jamais teria ocorrido. Da mesma forma, a liderança que Rigoberta se atribuiu junto às populações camponeses e de origem indígena na Guatemala não se confirmou quando avaliada em loco.
A turma informada do Direito também entende bem os riscos que o testemunho encerra. Nos Estados Unidos, o julgamento MacMartin, que se estendeu de 1983 a 1990, arruinou a vida dos réus, finalmente inocentados, com base em depoimentos de testemunhas com histórico de esquizofrenia e alcoolismo e de crianças cujos depoimentos teriam sido induzidos pela forma como os interrogatórios se processaram. Também na França, o Affair d'Outreau, julgamento transcorrido entre 2001 e 2006, chegou a condenar injustamente pessoas acusadas de pedofilia, com base em depoimentos de crianças e em testemunhos de pessoas com histórico de graves problemas psicológicos.
Ambos os casos redivivem o pesadelo de "As bruxas de Salem", magistralmente descrito na peça de Arthur Miller, de 1953. A peça, que funcionou na época como um libelo contra a perseguição política do macartismo nos Estados Unidos, narra episódios acontecidos em 1692 na cidadezinha de Salem, quando 19 pessoas foram condenadas a morte sob acusação de bruxaria com base em depoimentos de crianças histéricas.
http://wp.clicrbs.com.br/pedepagina/2010/04/24/difuso-e-coletivo-entre-o-justo-e-a-farsa/?topo=77,2,18,,,77
Dentre os desdobramentos importantes desse manancial está o reforço à noção de propriedade coletiva. Um prédio histórico tombado, por exemplo, ainda que privado, torna-se investido de uma dupla noção de propriedade: além da particular, a do interesse público. Fica, portanto, o proprietário proibido de demolir o imóvel e constrangido a respeitar critérios técnicos em reformas e adequações. Preservado o patrimônio histórico, ganha a comunidade, pela garantia de acesso às âncoras culturais que significam a sua identidade.
Outro exemplo característico é o da desapropriação de terras com o fito de assegurar direitos indígenas e de descendentes de quilombolas. Em muitos casos, corrigem-se injustiças históricas e garante-se a uma população maltratada e expropriada a gerações um torrão de subsistência.
Porém, como tudo no Brasil, o que é bom pode acabar sendo desvirtuado. Certos manifestos exageros vêm lançando indivíduos e coletividades inteiras na condição de reféns de grupos organizados e de burocratas insensíveis.
O processo de tombamento, por exemplo, de prédios de interesse histórico tem acalentado injustiças e lamentáveis distorções. Em muitas cidades, imóveis listados para eventual tombamento podem permanecer nesta condição de natureza transitória por anos a fio, penalizando os proprietários, que, assim, têm dificuldade em comercializá-los ou, mesmo, reformá-los. O democraticamente correto seria que o órgão público responsável por avaliar os edifícios de interesse histórico fosse invariavelmente obrigado por lei a se manifestar sobre o tombamento ou não dentro de um prazo determinado. Fossem seis meses, um ano. Pouco importa. Mas não é admissível que órgãos públicos protelem indefinidamente uma decisão, agindo assim com irresponsabilidade para com o cidadão honesto que paga os seus impostos regularmente.
Além disso, se tombado um prédio, penso que o proprietário do imóvel deveria ter acesso a compensações por parte do poder público. Não pode o interesse público ser imposto sem compartilhar responsabilidades. Todo direito pressupõe também deveres. Assim, o proprietário de um bem tombado poderia automaticamente ser beneficiado com o direito de comercializar o índice de construção. Trata-se, aqui, digamos, de uma terceira instância compreendida pelo direito de propriedade, isto é, o direito não utilizado de construir algo maior ou mais alto sobre um certo terreno. Atualmente, a autorização para a venda dos índices de construção costuma obedecer a fatigantes démarches. Por fim, o proprietário de um imóvel tombado deveria ser contemplado com isenções ou abatimentos sobre o IPTU, em casos de reformas e conservação.
Mais complexo é o caso das terras indígenas ou de ex-quilombolas. É evidente que se é possível comprovar a ocupação original de uma área por estas populações, o reconhecimento da propriedade coletiva ajuda a corrigir históricas injustiças. Mas o reconhecimento desse direito pode se tornar polêmico quando fere direitos de outras coletividades. Casos, nos quais, convém avaliar os desdobramentos e argumentos com cuidado. Há casos, ainda, que os relatórios histórico-antropológicos que fundamentam a tese de ocupação original da área alcançam conclusões temerárias, apoiando-se sobre metodologia falaz.
Apoiando-se muitos desses relatórios quase que exclusivamente em depoimentos orais, há rumores de que memórias coletivas possam ter sido previamente plantadas por grupos militantes. Construiriam-se, assim, falsas provas, mas que nem por isso deixam de sensibilizar promotores ou juízes, embora bem intencionados, estranhos às armadilhas intrínsecas à metodologia de construção do discurso histórico e antropológico.
Em Porto Alegre, já nos deparamos com exemplos constrangedores neste sentido, tais como a ocupação da área de preservação ambiental do Morro do Osso por índios. Ora, qualquer criança de primário sabe que a etnia caingangue jamais habitou em Porto Alegre e que os guaranis já haviam se retirado desta região quando os primeiros portugueses e açorianos chegaram no século XVIII. Além disso, jamais restou provada a existência do mítico cemitério indígena no referido morro. Mas o falso direito aqui prejudica o interesse coletivo de toda a cidade, que se vê privada de um parque e corre o risco de ver degradada por conta da ocupação humana ilegal de uma área de preservação.
Outro caso semelhante é o do célebre Rincão dos Silva. A exceção de depoimentos orais, não se localizaram, até onde eu sei, documentos comprobatórios da existência de um imemorial quilombo naquela área.
Qualquer historiador ou antropólogo experiente e responsável sabe das limitações que os depoimentos orais encerram. É impossível encará-los como verdades absolutas e incontestes. São, quando muito, representações que o indivíduo constrói sobre determinadas vivências, sobre as quais podem operar inúmeras injunções.
A intelectual argentina Beatriz Sarlo, uma das mais importantes críticas da cultura contemporânea, fala, inclusive, de uma recente "guinada subjetiva", que, por meio da história oral, estaria restituindo a confiança absoluta no narrador de sua própria vida como forma de reparar uma identidade machucada, seja individual ou coletiva. Para Sarlo, os discursos testemunhais, por mais importantes e genuínos que sejam, são discursos "e não deveriam ficar confinados numa cristalização inabordável". O relato individual e a opinião pessoal não podem substituir a análise.
Em torno do paradoxo do testemunho, conhece-se o rumoroso caso da Nobel de Direitos Humanos Rigoberta Menchú. Sua biografia, escrita pelo sociólogo Régis Débray, a partir de seu testemunho, narrou fatos que, mais tarde se comprovou, não teriam acontecido, tais como a descrição da morte do irmão de Rigoberta, que teria se dado num suposto massacre perpetrado pela polícia em uma pequena cidade do interior da Guatemala, investida esta que jamais teria ocorrido. Da mesma forma, a liderança que Rigoberta se atribuiu junto às populações camponeses e de origem indígena na Guatemala não se confirmou quando avaliada em loco.
A turma informada do Direito também entende bem os riscos que o testemunho encerra. Nos Estados Unidos, o julgamento MacMartin, que se estendeu de 1983 a 1990, arruinou a vida dos réus, finalmente inocentados, com base em depoimentos de testemunhas com histórico de esquizofrenia e alcoolismo e de crianças cujos depoimentos teriam sido induzidos pela forma como os interrogatórios se processaram. Também na França, o Affair d'Outreau, julgamento transcorrido entre 2001 e 2006, chegou a condenar injustamente pessoas acusadas de pedofilia, com base em depoimentos de crianças e em testemunhos de pessoas com histórico de graves problemas psicológicos.
Ambos os casos redivivem o pesadelo de "As bruxas de Salem", magistralmente descrito na peça de Arthur Miller, de 1953. A peça, que funcionou na época como um libelo contra a perseguição política do macartismo nos Estados Unidos, narra episódios acontecidos em 1692 na cidadezinha de Salem, quando 19 pessoas foram condenadas a morte sob acusação de bruxaria com base em depoimentos de crianças histéricas.
http://wp.clicrbs.com.br/pedepagina/2010/04/24/difuso-e-coletivo-entre-o-justo-e-a-farsa/?topo=77,2,18,,,77
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