From Indigenous Peoples in Brazil
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Tudo pelo ouro: migração e violência na fronteira Brasil-Colômbia-Venezuela
06/08/2025
Autor: Sinar Alvarado
Fonte: Info Amazonia - https://infoamazonia.org
Ao longo do rio Negro, a artéria que liga a Colômbia, a Venezuela e o Brasil na Amazônia, inúmeros povos indígenas e várias comunidades ribeirinhas sobrevivem em meio ao garimpo e aos grupos armados, dois poderes de fato que dominam essa região com o peso de um metal nem um pouco nobre: o chumbo.
Durante a madrugada de 3 de agosto, no rio Pimichín, um afluente do rio Negro localizado próximo ao município venezuelano de Maroa, homens do grupo armado colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN) dispararam contra membros da Frente Acacio Medina da Segunda Marquetalia (SM), uma dissidência das antigas Forças Armadas Revolucionáras da Colômbia (Farc). Houve mortos e feridos, embora o número exato não tenha podido ser confirmado até a publicação desta reportagem.
Até o dia anterior, os dois grupos compartilhavam o controle territorial da área de fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, bem como os lucros das economias ilícitas da região: garimpo, extorsão e tráfico de drogas. Mas a busca pelo domínio total rompeu esse pacto. Agora, de acordo com os líderes indígenas locais, o acesso e o trânsito por essa área são controlados e proibidos pelo ELN como a nova autoridade exclusiva. Os civis estão ainda mais acuados e pode ocorrer um deslocamento em massa para Inírida, a capital do departamento de Guainía, no Sudeste da Colômbia.
Essa notícia e a incerteza de suas consequências se espalharam rapidamente pelas cidades vizinhas, rio acima e rio abaixo, entre as comunidades cujo destino está atrelado ao domínio da violência armada.
MORTE EM BUSCA DO BRILHO
Há algumas semanas, seis barcos da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), dezenas de soldados e vários drones vigiavam o rio Cunucunuma, na Amazônia venezuelana, sobre o leito de um rio cheio de pedras que os Yekuanas consideram sagradas. Estamos falando de granito e outras formações, mas não de ouro, um metal macio inútil em sua cultura. Fora do universo Yekuana, entre os garimpeiros mestiços, esse desinteresse se transforma em uma ansiedade que dribla a perseguição, a extorsão e a morte em busca do cobiçado amarelo brilhante.
Dairo Pertuz*, 41 anos, 13 de mineração, estava escondido nas margens do Cunucunuma havia dez dias, ligando seu telefone por apenas alguns minutos para escapar dos drones, enquanto sua balsa, uma estrutura de 200 milhões de pesos colombianos (quase R$ 270 mil) que perfura o leito do rio, permanecia enterrada desmontada. "Eles dizem que essa operação vai durar 40 dias. Temos que esperar para poder trabalhar", escreveu Dairo pelo WhatsApp.
A GNB volta lá de tempos em tempos, mas os garimpeiros estão acostumados. "Desmontamos as balsas, escondemos as peças e nos deslocamos entre as bocas do rio. Mudamos de lugar todos os dias, até eles irem embora". Dairo mora em Iñírida, mas passa meses em Cunucunuma procurando ouro. Da sua casa, ele viaja três dias de barco, passando por vários pedágios impostos pelos povos indígenas àqueles que exploram a selva. Até a semana passada, antes do conflito, quando ele chegava à mina no rio, tinha que pagar 25 gramas de ouro por mês ao ELN e à Frente Acacio Medina da Segunda Marquetalia (SM), um grupo liderado por Iván Márquez, negociador-chefe das antigas Farc no Acordo de Paz de 2016, que mais tarde desertou do acordo. Aliados até a semana passada, os dois grupos agora estão lutando pelo controle da fronteira. Mas é improvável que isso gere alguma vantagem para Dairo.
Dairo também precisa comprar água, comida e muito combustível para o motor da draga. Em seguida, o lucro é dividido: 40% para os mergulhadores e 60% para o proprietário da balsa, que precisa investir em avarias e peças de reposição. Os garimpeiros gastam uma fortuna em sua operação, mas têm um bom retorno, a cerca de US$ 100 por grama de ouro.
"Conseguimos pelo menos 20 ou 30 gramas de ouro em um dia, e isso já é lucrativo. Às vezes conseguimos 200, 400. Uma vez conseguimos 930 gramas em dez horas de trabalho", lembra Dairo. É uma vida perigosa, mas em terra firme as opções são restritas. De acordo com o Departamento Administrativo Nacional de Estatística (Dane) da Colômbia, o desemprego no departamento de Guainía é de 13,6%, e metade dos jovens não estuda nem trabalha.
Dairo escapou dessa situação e foi procurar ouro no rio Iñírida, no Atabapo e em muitos outros lugares. Agora, ele emprega até 12 pessoas em sua balsa, mas há alguns anos teve que começar tudo de novo quando a marinha colombiana tocou fogo em sua balsa. "Eles queimam cinco, mas dias depois tem dez novas", disse ele.
Várias minas já tiveram seu auge, e outras certamente virão. Mas atualmente Cunucunuma é o local que atrai mais interesse na região do Alto Orinoco: até 200 balsas em produção permanente, calcula Dairo. Cunucunuma fica na Venezuela, mas sua influência chega até a Colômbia e o Brasil, onde irriga a economia de muitas comunidades por meio de uma artéria comum: o vasto e sinuoso rio Negro.
UM POVOADO FANTASMA
Em San Carlos de Río Negro, a segunda maior cidade da Amazônia venezuelana, havia um aeroporto com voos diários; um hospital que atendia moradores locais e de povoados vizinhos; duas escolas para crianças daqui e de comunidades indígenas próximas; sete tanques que forneciam gasolina barata para os três países; uma casa de cultura onde as pessoas se reuniam para as festas do santo padroeiro; uma antena que fornecia telefonia para o lado colombiano; uma pequena frota mercante com grandes canoas; e várias lojas onde eram vendidos os alimentos que chegavam da capital do estado, Puerto Ayacucho, por via fluvial.
San Carlos era o maior povoado da região. Três mil pessoas viviam aqui nos bons velhos tempos, mas a falência da Venezuela deixou apenas 800 e a transformou em uma cidade fantasma. "Muitos jovens foram para as minas, e o restante foi para o Brasil", disse Daniel Abreu nas ruínas de seu negócio. Onde antes havia uma mercearia bem abastecida, hoje um forno industrial e uma amassadeira fora de uso estão em ruínas, ao lado de duas vitrines que exibem biscoitos com nomes de marcas em português.
Naquele dia, não havia quase ninguém em San Carlos: duas senhoras vendiam apostas do jogo do bicho local; uma menina se protegia do sol com seu guarda-chuva; dois homens de moto vendiam um porco cortado em pedaços; outros cinco esperavam em frente à casa do prefeito; e dois militares da Guarda Nacional que, ao passar, provocaram o silêncio cauteloso de Daniel. Quando se afastaram, o comerciante, um indígena mestiço Baré, retomou a conversa e disse que a infraestrutura da cidade havia sido construída em uma democracia, antes de a Venezuela falir.
Apesar de tudo isso, sua loja ainda está bem localizada em frente à Plaza Bolívar, uma área verde com grandes árvores no centro de San Carlos. Do outro lado da rua, na diagonal, fica o cais, onde Daniel costumava chegar com sua canoa carregada de comida e bebidas alcoólicas trazidas de uma viagem de sete dias pelo rio. "Tínhamos que pagar 4% ao ELN, mas sobrava dinheiro", lembra ele. Naquela manhã, só navegavam ali os chamados 'pequepeques': canoas com motores muito pequenos, que cruzam passageiros até a cidade de San Felipe, na margem colombiana.
Atualmente, a energia em San Carlos é intermitente, e a gasolina parou de chegar de Puerto Ayacucho no ano passado. Agora, essa comunidade importa gasolina cara do Brasil em barcos de 20.000 litros. Daniel tinha um semelhante, mas hoje ele está enferrujando na vegetação rasteira ao lado do pátio de sua casa. Ele subiu na proa como se o barco ainda navegasse.
Das pessoas que conheci quando cheguei há 25 anos, só meus vizinhos continuam aqui. Os outros morreram ou foram embora. Até os cachorros foram embora: não havia comida pra gente, muito menos para eles".
Daniel Abreu, 61 anos, comerciante
Mas Daniel nunca pensou em ir embora. "Quem for jovem, que vá", disse ele. E alguns estão fazendo isso. "Eles vão para as minas aqui perto: Siapa, Moya, Cunucunuma, Camello, Carioca. Agora mesmo, vários deles estão esperando o final de uma operação da Guardia para ir para lá".
Embora a riqueza do ouro flua em solo venezuelano, os lucros não são vistos em cidades como San Carlos porque as famílias beneficiárias cruzaram a fronteira há muito tempo. Até a guerrilha foi embora: aqui o ELN usava os jovens como informantes e carregadores. Não mais. Entre os poucos retardatários, ainda há vários que também querem ir embora, mas não têm recursos. Para alguns, a única saída é a morte: houve vários suicídios aqui nos últimos anos. No pátio de sua casa, um pouco desanimado, Abreu arriscou uma tese: "Pra evitar a realidade, pra não sofrer o que está acontecendo, eles se matam".
UMA BANDEIRA DA AMAZÔNIA
Navegar por horas e dias nessas águas exige conciliar o esplendor e a monotonia do rio, a vegetação e o céu aberto em ambas as margens: três faixas horizontais que correm paralelas por centenas de quilômetros. Essa poderia ser uma bandeira da Amazônia: abaixo, a faixa escura da superfície, que sustenta o barco e permite a viagem; acima, a faixa verde de árvores densas; e acima, a faixa azul, iluminada pelo sol como uma grande lâmpada incombustível.
Enquanto navegávamos em uma pesada canoa de metal, comunidades indígenas que foram abandonadas nos últimos anos surgiam no lado venezuelano do rio.
A 130 quilômetros de San Carlos e San Felipe, em Puerto Colombia, quando estivemos no local, há algumas semanas, nos reunimos dentro de casa para evitar os homens armados das dissidências das Farc, que às 19h circulavam livremente pelo povoado. No pátio de uma casa, vários indígenas curipacos compartilham uma sopa de peixe com pimenta e mandioca enquanto conversam em seu idioma em ritmo acelerado, até que mudam para o espanhol para explicar suas necessidades urgentes. Gilberto Elías*, proprietário de uma loja, é o primeiro a falar: "Não há segurança aqui. Os grupos armados querem viver na comunidade. Eles costumavam fazer seus negócios na mata; agora eles patrulham aqui com armas e nos colocam em risco. Amanhã outros virão e nos acusarão de sermos colaboradores", diz ele, com os lábios apertados.
Nessa localidade, 70 pessoas vivem em casas de madeira em uma margem alta do rio, localizada a 186 quilômetros de barco de Iñírida. Essa costumava ser uma rota útil para viajantes e comerciantes que transportavam mercadorias: 30 quilômetros por um atalho irregular pelo território venezuelano encurtavam a viagem até Maroa, uma cidade em frente a Puerto Colombia, do outro lado do rio. Mas a Guarda Nacional, dizem os moradores de ambos os lados do rio sob estrito anonimato, começou a extorquir e a deter os viajantes, e o tráfego parou. Agora, a única opção é viajar três dias ou mais, sempre em solo colombiano, por uma área chamada Huesitos, onde a carga passa por riachos e lamaçais em tratores para conectar o rio Inírida ao Negro.
Em silêncio durante a reunião, Mariela*, outra comerciante indígena, finalmente se manifesta: "Por que tenho que compartilhar os frutos do meu trabalho com essas pessoas? Até o conflito desta semana, o grupo Acacio Medina cobrava uma taxa de quem lucrava em Puerto Colombia, assim como os homens do ELN acampados em uma fazenda vizinha. Os grupos chegaram até a conviver juntos por certos períodos na cidade. Entretanto, como os eventos recentes confirmam, a dinâmica desses grupos é mutável e volátil, e pode levar a conflitos violentos. A população civil acaba ficando sempre no meio. "Eu sou daqui e quero viver aqui. Caso contrário, eu teria ido embora", diz Mariela, resignada.
Desde 2023, a Defensoría del Pueblo da Colômbia (órgão de defesa dos direitos humanos, com funções semelhantes à Defensoria Pública e ao Ministério Público no Brasil, no Brasil) tem alertado sobre o risco enfrentado pelos povos indígenas nessa região devido à ameaça de grupos armados que exploram a economia do ouro. "Essa exploração ilegal e violenta aumentou sua capacidade financeira, permitindo-lhes fortalecer suas estruturas e impor o controle territorial. Nesse contexto, a população civil está exposta a graves violações de seus direitos", disse o defensor na época, Carlos Camargo. O leito do rio Negro não é mais explorado, mas suas águas são usadas para transportar o ouro extraído para vários destinos na Colômbia, Venezuela e Brasil.
Essa exploração ilegal e violenta aumentou sua capacidade financeira, permitindo-lhes fortalecer suas estruturas e impor o controle territorial. Nesse contexto, a população civil está exposta a graves violações de seus direitos.
Carlos Camargo, da Defensoría del Pueblo da Colômbia
Assim, as ondas do garimpo viajam das minas para as comunidades. Embora Puerto Colombia não tenha atividade comercial significativa, alimentos e combustível só são vendidos por causa da demanda por ouro. "Os povos indígenas não são garimpeiros. O que acontece é que os estrangeiros contratam nossos jovens e eles vão para as minas", explica, da cabeceira da mesa, Edson Meregildo, um jovem que representa 14 comunidades e quase 1.800 indígenas no departamento colombiano de Guainía.
Vários de seus conterrâneos partiram há meses ou anos para Cunucunuma, e alguns voltaram rígidos, em freezers conectados a geradores de energia, em barcos que cruzam os rios até a comunidade de origem, onde as famílias recebem seus cadáveres derrotados. Dali, rapidamente sempre sai outra pessoa para substituí-lo.
Naquela noite, a conversa se estendeu até tarde, e Edson, por segurança, recomendou dormir em uma rede ali mesmo. De manhã, dezenas de crianças indígenas que estudam e vivem no internato em Puerto Colombia pularam no rio para tomar banho e brincar um pouco antes das aulas. Depois, foram para a cozinha da escola e receberam uma porção de biscoitos e café com leite.
As crianças se divertiam sem medo, mas havia um clima de desconforto no vilarejo: os moradores trocavam olhares desconfiados ou cautelosos; quase ninguém falava. De repente, uma lancha apareceu com um homem em pé no casco, vestido com roupas civis, usando boné e óculos escuros. O homem desceu e embarcou em outra lancha atracada na margem. Quando ele se inclinou para ligar o motor, uma pistola apareceu pendurada em seu cinto. "Aquele era o comandante da guerrilha, o responsável pela área", disse o piloto, mais tarde, enquanto seguíamos rio abaixo.
ECONOMIA DE OURO
De Inírida, em um voo de 45 minutos sobre a selva, em direção ao sul, pequenas aeronaves transportam passageiros e cargas leves para uma pista de pouso de terra em San Felipe, a nova capital comercial do rio Negro, em seu trecho colombiano-venezuelano. O que não voa até aqui chega pelo leito escuro do rio em toneladas: passageiros, alimentos, bebidas, ferramentas, tijolos, cimento, gasolina e uma série de outros bens essenciais que sustentam a vida nas comunidades vizinhas. Dessa carga, 80% segue para as minas. O restante é consumido nessa cidade de pouco mais de mil habitantes.
Juvenal Herrera*, proprietário de um negócio na rua principal, chegou há 20 anos e não pode reclamar: comprou casas fora e educou seus filhos com o dinheiro que ganha aqui. "Já tive dias de 20 e 30 milhões (de pesos colombianos, entre R$ 27 mil e R$ 40 mil). É bom aqui", diz ele, satisfeito, em sua loja lotada. "Entre dezembro e janeiro, trouxe 120 tambores de gasolina. Em fevereiro, já tinha acabado". Cada tambor - 60 galões - custa 1,2 milhão de pesos colombianos (R$ 1.600) em Inírida, e é vendido pelo dobro em San Felipe. Se o ouro aqui é o rei, a gasolina é a rainha: ela alimenta as dragas e os motores dos barcos, os geradores de energia e os sistemas de som das lojas, os ventiladores dos hotéis e as luzes que iluminam a cidade todas as noites. No entanto, às vezes, quando o combustível atrasa, os moradores passam vários meses desligados.
San Felipe não é tão desprotegida quanto Puerto Colombia: aqui o exército e a marinha têm postos permanentes, e os soldados patrulham com suas armas nos ombros. Mas há muito dinheiro e os grupos ilegais também controlam seu fluxo aqui. Comerciantes, trabalhadores do setor de transportes, líderes indígenas e até mesmo a Defensoría del Pueblo confirmam que eles estão presentes, que as lojas pagam extorsão e que os chefes dos grupos frequentam a cidade em trajes civis. Mas o medo promove a autocensura: em San Felipe, as pessoas não falam sobre o assunto com facilidade ou espontaneidade. Nas conversas entre vizinhos, são compartilhadas histórias de viagens, discute-se política, futebol e mulheres. Mas as grandes questões são mantidas em segredo. "Isso não é comigo", é a resposta que se repete quando se pergunta sobre o controle territorial.
O povoado consiste em duas ruas pavimentadas onde vive uma minoria de prósperos comerciantes brancos, alguns deles garimpeiros aposentados, cercados por três comunidades de terra batida onde centenas de indígenas Yerales, Puinaves e Curipacos vivem em casas de madeira com telhados de palha. O apogeu desfrutado pelos primeiros é sofrido pelos últimos. "Aqui é caro. Muitos garimpeiros vêm com ouro, e tudo sobe. Esta é uma economia de mineração, ouro puro. Mas nem todos nós o temos", reclama Carlos dos Santos, sentado sob uma árvore em uma manhã quente nos arredores da cidade.
Dos Santos, um homem magro de 38 anos, é a autoridade máxima da comunidade de Primero de Agosto, onde 43 famílias indígenas sobrevivem precariamente. "Vivemos da roça, da caça e da pesca. Sempre houve peixes aqui, mas com o garimpo eles diminuíram muito, por causa do barulho e da poluição. Agora temos que comprar frango e carne, mas é muito caro", diz.
Isolados no último canto da Colômbia, os habitantes de San Felipe sentem que os governos os esqueceram. "Várias pessoas morreram aqui. A última foi há dois meses: uma garota grávida morreu porque não conseguimos tirá-la daqui a tempo. Ela morreu com o filho dentro", lembra Dos Santos, com as mãos cruzadas sobre a mesa, como se estivesse rezando.
O vilarejo tem um posto de saúde, mas o suprimento de remédios muitas vezes falha, e somente aqueles que podem pagam milhões para que seus comprimidos sejam trazidos de avião. Há também uma escola que recebe todas as crianças da região, inclusive as que vêm de San Carlos. "Às vezes, a comida leva um mês viajando de Inírida. Ela se perde durante a viagem ou chega molhada. Mas temos que aceitar assim, porque não há mais nada. Às vezes, a comida atrasa e os professores têm que esperar até dois meses para começar as aulas", conta Dos Santos, cujos filhos também estudam ali.
O capitão, que antes havia falado sobre o ouro como algo estranho à sua cultura e afirmado com convicção que os povos indígenas não são garimpeiros, mais tarde admite que muitos homens das comunidades próximas a San Felipe foram para a selva venezuelana em busca do sonho dourado. "Há muito pouco trabalho para os jovens aqui; não há profissões. Muitos vão para as minas e não voltam. Mas entendemos que eles não conseguem encontrar coisas para fazer aqui".coisas para fazer aqui".
UMA DESESPERANÇA COMUM
Quando as últimas fronteiras da Colômbia e da Venezuela são deixadas para trás, o barco passa pela imensa Pedra de Cocuí - uma formação de mais de 460 metros de altura, que marca a tríplice fronteira - cruza a fronteira brasileira e o leito do rio muda: a água que corre suave encontra pedras e se agita em corredeiras. Após 12 horas de navegação rio abaixo, em frente a São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia brasileira, a paisagem também muda: prédios e a inusitada agitação urbana surgem em meio à selva. Na beira, subindo como caranguejos em pedras, cerca de 50 indígenas vivem em barracas e expostos à correnteza que pode arrastá-los sem esforço. Eles vêm de diferentes comunidades para receber benefícios do governo e acampam por vários dias enquanto os recebiam. Antes de partir, eles enrolam suas lonas, mas deixam os postes plantados para os outros que chegam ao mesmo acampamento.
Aqui, a gasolina ainda reina: no porto de Padre Cícero, no início de abril, centenas de indígenas faziam fila para encher tanques financiados pela prefeitura. O combustível chega em caminhões-tanque que viajam a bordo de barcos vindos de Manaus; ele desembarca em Camanaos, um importante porto a 30 quilômetros de São Gabriel. A fila andava lentamente naquela manhã, e muitos indígenas dormiam amontoados em uma cabana enquanto era sua vez de carregar.
Alexánder Moura*, um venezuelano magro de origem brasileira, estava observando a confusão no cais e explicou: "Eles usam parte da gasolina para seus motores e o resto vendem para os garimpeiros. Muita gasolina vem daqui para as minas do Brasil e da Venezuela. É uma longa viagem de ida e volta pelo rio: para o norte viaja o combustível, e para o sul o ouro que é extraído com ele.
Alexánder nasceu e cresceu na Venezuela, mas seus avós são daqui, e ele decidiu emigrar quando a crise se intensificou em seu país. Em São Gabriel, ele sobrevive com a esposa e o filho, como centenas de migrantes que enfrentam a xenofobia diariamente. "Temos um grupo e somos muitos, a maioria pedreiros e carregadores. Aqui há patrões que nos tratam mal, nos pagam menos que aos brasileiros. Mas todos nós nos apoiamos", disse ele, olhando para o rio.
Segundo o Censo de 2022, São Gabriel da Cachoeira tem cerca de 50 mil habitantes, dos quais 48 mil são indígenas de 23 etnias diferentes: banivas, curipacos, barés, yanomamis e muitas outras. O centro comercial - algumas poucas ruas com lojas disputando clientes lado a lado - prospera na parte alta da cidade; e não há estabelecimentos que vendam ouro, já que São Gabriel funciona apenas como ponto de passagem rumo ao vasto mercado brasileiro. Na parte baixa, às margens do rio, uma fileira de casas e comércios dá de frente para uma praia deserta. É o lugar mais bonito da cidade, mas recebe pouca atenção. À frente, largo e turbulento, o rio Negro se agita entre corredeiras que dão nome a este porto: cachoeiras.
O restante da área urbana e seus arredores estão sob controle militar. Quase toda São Gabriel está sob controle das Forças Armadas, e soldados são presença constante em cafés, padarias e hotéis. Isso vem desde a ditadura militar: em 1968, essa região de fronteira foi declarada área de segurança nacional. Ainda assim, o ilícito flui: a lei proíbe a exploração de ouro em terras indígenas ou reservas naturais, mas a cidade é um elo fundamental no esquema de tráfico. Em 2023, um juiz da comarca pediu urgentemente ao Ministério da Justiça a abertura ali de uma delegacia da Polícia Federal. Segundo ele, a localização da cidade, no corredor que vem de Colômbia e Venezuela, a torna estratégica para o tráfico. É por aqui que entra o ouro que segue até Itaituba, já no Pará, onde o metal de origem ilegal é injetado na economia em larga escala.
São Gabriel é um refúgio onde migrantes em situação de vulnerabilidade se abrigam antes de tentar a sorte rumo ao interior. A venda de gasolina e a economia informal - que prospera em camelôs - mal conseguem disfarçar a precariedade, e a desesperança deve ser comum, já que os suicídios entre jovens indígenas se tornaram um problema de saúde pública. Mais um elo que conecta este lugar a San Carlos de Río Negro.
Durante um passeio pela cidade, Alexánder, o pedreiro venezuelano, contou que a agricultura também entrou em declínio durante os quatro anos em que vive aqui. As comunidades locais recebem benefícios e complementam a renda com o comércio de gasolina. Embora a maioria não esteja diretamente envolvida no comércio de ouro, muitos acabam "beliscando a fatia do bolo" e sobrevivem com essas sobras. "Eles já não caçam, não plantam, não pescam. Com esse dinheiro, compram carne e frango que vêm de Manaus", disse.
No dia seguinte, no porto de Camanaos, vários venezuelanos e brasileiros suados descarregavam barcos cheios de materiais trazidos de Manaus, onde os rios Negro e Amazonas se encontram. Em várias dessas embarcações, a Polícia Federal já apreendeu carregamentos de ouro ilegal que seguirão pelo rio Tapajós até Itaituba.
Dias antes, na viagem rumo a São Gabriel da Cachoeira, a voadeira ziguezagueava pelo rio Negro em busca de trechos mais profundos, o que prolongou o trajeto enquanto o sol da tarde começava a cair no horizonte oeste. As nuvens se aglomeraram e relâmpagos ameaçavam com clarões repentinos. Cirilo, um indígena de rosto enrugado, reduziu a velocidade e apontou a proa em direção a uma praia, onde a embarcação encalhou com o motor desligado. "Essa tempestade tá feia, muito perigoso seguir assim. Já vi lancha virar cheia de gente", disse.
Cirilo subiu uma encosta e caminhou entre as casas de uma comunidade que parecia abandonada. Gritou várias vezes, mas ninguém respondeu: os indígenas que viviam naquelas ocas haviam fugido, sabe-se lá quando e para onde. "A gente dorme aqui. Assim que amanhecer, vamos embora", disse Cirilo.
Renny, seu genro e ajudante, outro indígena a quem todos chamam de Pequeno, montou um abrigo improvisado na lancha e estendeu várias lonas para proteger o espaço onde os dois passariam a noite. Depois, nos sentamos na praia para conversar sobre a antiga profissão dele, iluminados apenas pelos relâmpagos. "Agora estamos levando mercadorias para os garimpos, e nos pagam com ouro; mas eu comecei como carregador: levando gasolina, mantimentos. Depois, trabalhei em vários garimpos, e o máximo que consegui foi 39 gramas. Aí me cansei e aprendi a mergulhar. Estive em Cunucunuma e em outros (garimpos). Lá sim eu tirava 70, 80 gramas. Lá embaixo a gente se empolga e fica viciado", contou satisfeito. "Eu me salvei de várias pedras grandes. No escuro do rio não se enxerga, mesmo levando lanterna. Vários companheiros morreram. Amarravam eles no fundo e os tiravam com guindastes, pingando água".
Pequeno observava o trânsito tranquilo do rio e refletia sobre seu papel como fornecedor e meio de transporte de uma riqueza incalculável. "O ouro viaja pelo rio para os dois lados: para Inírida e para o Brasil. Igualzinho ao mercúrio, que escondem para escapar da lei." Pequeno contou que, durante sua curta temporada como garimpeiro, ficou com medo do ambiente violento dos garimpos e por isso deixou o trabalho. Sentado na margem, lembrou de brigas resolvidas a golpes de facão e de mortos anônimos que foram enterrados em algum lugar da selva. Homens que deixaram suas aldeias e famílias para arriscar a vida atrás de uma prometida e ilusória riqueza dourada. "Tudo pelo ouro."
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Alguns nomes desta reportagem foram alterados para garantir a segurança das fontes.
Esta reportagem faz parte do projeto Amazon Underworld, uma aliança transnacional que investiga tendências do crime organizado na Amazônia, integrada por Al Margen (Peru), Armando.Info (Venezuela), InfoAmazonia (Brasil), La Liga Contra el Silencio (Colômbia), La Barra Espaciadora (Equador) e RAI (Bolívia).
https://infoamazonia.org/2025/08/06/tudo-pelo-ouro-migracao-e-violencia-na-fronteira-brasil-colombia-venezuela/
Durante a madrugada de 3 de agosto, no rio Pimichín, um afluente do rio Negro localizado próximo ao município venezuelano de Maroa, homens do grupo armado colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN) dispararam contra membros da Frente Acacio Medina da Segunda Marquetalia (SM), uma dissidência das antigas Forças Armadas Revolucionáras da Colômbia (Farc). Houve mortos e feridos, embora o número exato não tenha podido ser confirmado até a publicação desta reportagem.
Até o dia anterior, os dois grupos compartilhavam o controle territorial da área de fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, bem como os lucros das economias ilícitas da região: garimpo, extorsão e tráfico de drogas. Mas a busca pelo domínio total rompeu esse pacto. Agora, de acordo com os líderes indígenas locais, o acesso e o trânsito por essa área são controlados e proibidos pelo ELN como a nova autoridade exclusiva. Os civis estão ainda mais acuados e pode ocorrer um deslocamento em massa para Inírida, a capital do departamento de Guainía, no Sudeste da Colômbia.
Essa notícia e a incerteza de suas consequências se espalharam rapidamente pelas cidades vizinhas, rio acima e rio abaixo, entre as comunidades cujo destino está atrelado ao domínio da violência armada.
MORTE EM BUSCA DO BRILHO
Há algumas semanas, seis barcos da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), dezenas de soldados e vários drones vigiavam o rio Cunucunuma, na Amazônia venezuelana, sobre o leito de um rio cheio de pedras que os Yekuanas consideram sagradas. Estamos falando de granito e outras formações, mas não de ouro, um metal macio inútil em sua cultura. Fora do universo Yekuana, entre os garimpeiros mestiços, esse desinteresse se transforma em uma ansiedade que dribla a perseguição, a extorsão e a morte em busca do cobiçado amarelo brilhante.
Dairo Pertuz*, 41 anos, 13 de mineração, estava escondido nas margens do Cunucunuma havia dez dias, ligando seu telefone por apenas alguns minutos para escapar dos drones, enquanto sua balsa, uma estrutura de 200 milhões de pesos colombianos (quase R$ 270 mil) que perfura o leito do rio, permanecia enterrada desmontada. "Eles dizem que essa operação vai durar 40 dias. Temos que esperar para poder trabalhar", escreveu Dairo pelo WhatsApp.
A GNB volta lá de tempos em tempos, mas os garimpeiros estão acostumados. "Desmontamos as balsas, escondemos as peças e nos deslocamos entre as bocas do rio. Mudamos de lugar todos os dias, até eles irem embora". Dairo mora em Iñírida, mas passa meses em Cunucunuma procurando ouro. Da sua casa, ele viaja três dias de barco, passando por vários pedágios impostos pelos povos indígenas àqueles que exploram a selva. Até a semana passada, antes do conflito, quando ele chegava à mina no rio, tinha que pagar 25 gramas de ouro por mês ao ELN e à Frente Acacio Medina da Segunda Marquetalia (SM), um grupo liderado por Iván Márquez, negociador-chefe das antigas Farc no Acordo de Paz de 2016, que mais tarde desertou do acordo. Aliados até a semana passada, os dois grupos agora estão lutando pelo controle da fronteira. Mas é improvável que isso gere alguma vantagem para Dairo.
Dairo também precisa comprar água, comida e muito combustível para o motor da draga. Em seguida, o lucro é dividido: 40% para os mergulhadores e 60% para o proprietário da balsa, que precisa investir em avarias e peças de reposição. Os garimpeiros gastam uma fortuna em sua operação, mas têm um bom retorno, a cerca de US$ 100 por grama de ouro.
"Conseguimos pelo menos 20 ou 30 gramas de ouro em um dia, e isso já é lucrativo. Às vezes conseguimos 200, 400. Uma vez conseguimos 930 gramas em dez horas de trabalho", lembra Dairo. É uma vida perigosa, mas em terra firme as opções são restritas. De acordo com o Departamento Administrativo Nacional de Estatística (Dane) da Colômbia, o desemprego no departamento de Guainía é de 13,6%, e metade dos jovens não estuda nem trabalha.
Dairo escapou dessa situação e foi procurar ouro no rio Iñírida, no Atabapo e em muitos outros lugares. Agora, ele emprega até 12 pessoas em sua balsa, mas há alguns anos teve que começar tudo de novo quando a marinha colombiana tocou fogo em sua balsa. "Eles queimam cinco, mas dias depois tem dez novas", disse ele.
Várias minas já tiveram seu auge, e outras certamente virão. Mas atualmente Cunucunuma é o local que atrai mais interesse na região do Alto Orinoco: até 200 balsas em produção permanente, calcula Dairo. Cunucunuma fica na Venezuela, mas sua influência chega até a Colômbia e o Brasil, onde irriga a economia de muitas comunidades por meio de uma artéria comum: o vasto e sinuoso rio Negro.
UM POVOADO FANTASMA
Em San Carlos de Río Negro, a segunda maior cidade da Amazônia venezuelana, havia um aeroporto com voos diários; um hospital que atendia moradores locais e de povoados vizinhos; duas escolas para crianças daqui e de comunidades indígenas próximas; sete tanques que forneciam gasolina barata para os três países; uma casa de cultura onde as pessoas se reuniam para as festas do santo padroeiro; uma antena que fornecia telefonia para o lado colombiano; uma pequena frota mercante com grandes canoas; e várias lojas onde eram vendidos os alimentos que chegavam da capital do estado, Puerto Ayacucho, por via fluvial.
San Carlos era o maior povoado da região. Três mil pessoas viviam aqui nos bons velhos tempos, mas a falência da Venezuela deixou apenas 800 e a transformou em uma cidade fantasma. "Muitos jovens foram para as minas, e o restante foi para o Brasil", disse Daniel Abreu nas ruínas de seu negócio. Onde antes havia uma mercearia bem abastecida, hoje um forno industrial e uma amassadeira fora de uso estão em ruínas, ao lado de duas vitrines que exibem biscoitos com nomes de marcas em português.
Naquele dia, não havia quase ninguém em San Carlos: duas senhoras vendiam apostas do jogo do bicho local; uma menina se protegia do sol com seu guarda-chuva; dois homens de moto vendiam um porco cortado em pedaços; outros cinco esperavam em frente à casa do prefeito; e dois militares da Guarda Nacional que, ao passar, provocaram o silêncio cauteloso de Daniel. Quando se afastaram, o comerciante, um indígena mestiço Baré, retomou a conversa e disse que a infraestrutura da cidade havia sido construída em uma democracia, antes de a Venezuela falir.
Apesar de tudo isso, sua loja ainda está bem localizada em frente à Plaza Bolívar, uma área verde com grandes árvores no centro de San Carlos. Do outro lado da rua, na diagonal, fica o cais, onde Daniel costumava chegar com sua canoa carregada de comida e bebidas alcoólicas trazidas de uma viagem de sete dias pelo rio. "Tínhamos que pagar 4% ao ELN, mas sobrava dinheiro", lembra ele. Naquela manhã, só navegavam ali os chamados 'pequepeques': canoas com motores muito pequenos, que cruzam passageiros até a cidade de San Felipe, na margem colombiana.
Atualmente, a energia em San Carlos é intermitente, e a gasolina parou de chegar de Puerto Ayacucho no ano passado. Agora, essa comunidade importa gasolina cara do Brasil em barcos de 20.000 litros. Daniel tinha um semelhante, mas hoje ele está enferrujando na vegetação rasteira ao lado do pátio de sua casa. Ele subiu na proa como se o barco ainda navegasse.
Das pessoas que conheci quando cheguei há 25 anos, só meus vizinhos continuam aqui. Os outros morreram ou foram embora. Até os cachorros foram embora: não havia comida pra gente, muito menos para eles".
Daniel Abreu, 61 anos, comerciante
Mas Daniel nunca pensou em ir embora. "Quem for jovem, que vá", disse ele. E alguns estão fazendo isso. "Eles vão para as minas aqui perto: Siapa, Moya, Cunucunuma, Camello, Carioca. Agora mesmo, vários deles estão esperando o final de uma operação da Guardia para ir para lá".
Embora a riqueza do ouro flua em solo venezuelano, os lucros não são vistos em cidades como San Carlos porque as famílias beneficiárias cruzaram a fronteira há muito tempo. Até a guerrilha foi embora: aqui o ELN usava os jovens como informantes e carregadores. Não mais. Entre os poucos retardatários, ainda há vários que também querem ir embora, mas não têm recursos. Para alguns, a única saída é a morte: houve vários suicídios aqui nos últimos anos. No pátio de sua casa, um pouco desanimado, Abreu arriscou uma tese: "Pra evitar a realidade, pra não sofrer o que está acontecendo, eles se matam".
UMA BANDEIRA DA AMAZÔNIA
Navegar por horas e dias nessas águas exige conciliar o esplendor e a monotonia do rio, a vegetação e o céu aberto em ambas as margens: três faixas horizontais que correm paralelas por centenas de quilômetros. Essa poderia ser uma bandeira da Amazônia: abaixo, a faixa escura da superfície, que sustenta o barco e permite a viagem; acima, a faixa verde de árvores densas; e acima, a faixa azul, iluminada pelo sol como uma grande lâmpada incombustível.
Enquanto navegávamos em uma pesada canoa de metal, comunidades indígenas que foram abandonadas nos últimos anos surgiam no lado venezuelano do rio.
A 130 quilômetros de San Carlos e San Felipe, em Puerto Colombia, quando estivemos no local, há algumas semanas, nos reunimos dentro de casa para evitar os homens armados das dissidências das Farc, que às 19h circulavam livremente pelo povoado. No pátio de uma casa, vários indígenas curipacos compartilham uma sopa de peixe com pimenta e mandioca enquanto conversam em seu idioma em ritmo acelerado, até que mudam para o espanhol para explicar suas necessidades urgentes. Gilberto Elías*, proprietário de uma loja, é o primeiro a falar: "Não há segurança aqui. Os grupos armados querem viver na comunidade. Eles costumavam fazer seus negócios na mata; agora eles patrulham aqui com armas e nos colocam em risco. Amanhã outros virão e nos acusarão de sermos colaboradores", diz ele, com os lábios apertados.
Nessa localidade, 70 pessoas vivem em casas de madeira em uma margem alta do rio, localizada a 186 quilômetros de barco de Iñírida. Essa costumava ser uma rota útil para viajantes e comerciantes que transportavam mercadorias: 30 quilômetros por um atalho irregular pelo território venezuelano encurtavam a viagem até Maroa, uma cidade em frente a Puerto Colombia, do outro lado do rio. Mas a Guarda Nacional, dizem os moradores de ambos os lados do rio sob estrito anonimato, começou a extorquir e a deter os viajantes, e o tráfego parou. Agora, a única opção é viajar três dias ou mais, sempre em solo colombiano, por uma área chamada Huesitos, onde a carga passa por riachos e lamaçais em tratores para conectar o rio Inírida ao Negro.
Em silêncio durante a reunião, Mariela*, outra comerciante indígena, finalmente se manifesta: "Por que tenho que compartilhar os frutos do meu trabalho com essas pessoas? Até o conflito desta semana, o grupo Acacio Medina cobrava uma taxa de quem lucrava em Puerto Colombia, assim como os homens do ELN acampados em uma fazenda vizinha. Os grupos chegaram até a conviver juntos por certos períodos na cidade. Entretanto, como os eventos recentes confirmam, a dinâmica desses grupos é mutável e volátil, e pode levar a conflitos violentos. A população civil acaba ficando sempre no meio. "Eu sou daqui e quero viver aqui. Caso contrário, eu teria ido embora", diz Mariela, resignada.
Desde 2023, a Defensoría del Pueblo da Colômbia (órgão de defesa dos direitos humanos, com funções semelhantes à Defensoria Pública e ao Ministério Público no Brasil, no Brasil) tem alertado sobre o risco enfrentado pelos povos indígenas nessa região devido à ameaça de grupos armados que exploram a economia do ouro. "Essa exploração ilegal e violenta aumentou sua capacidade financeira, permitindo-lhes fortalecer suas estruturas e impor o controle territorial. Nesse contexto, a população civil está exposta a graves violações de seus direitos", disse o defensor na época, Carlos Camargo. O leito do rio Negro não é mais explorado, mas suas águas são usadas para transportar o ouro extraído para vários destinos na Colômbia, Venezuela e Brasil.
Essa exploração ilegal e violenta aumentou sua capacidade financeira, permitindo-lhes fortalecer suas estruturas e impor o controle territorial. Nesse contexto, a população civil está exposta a graves violações de seus direitos.
Carlos Camargo, da Defensoría del Pueblo da Colômbia
Assim, as ondas do garimpo viajam das minas para as comunidades. Embora Puerto Colombia não tenha atividade comercial significativa, alimentos e combustível só são vendidos por causa da demanda por ouro. "Os povos indígenas não são garimpeiros. O que acontece é que os estrangeiros contratam nossos jovens e eles vão para as minas", explica, da cabeceira da mesa, Edson Meregildo, um jovem que representa 14 comunidades e quase 1.800 indígenas no departamento colombiano de Guainía.
Vários de seus conterrâneos partiram há meses ou anos para Cunucunuma, e alguns voltaram rígidos, em freezers conectados a geradores de energia, em barcos que cruzam os rios até a comunidade de origem, onde as famílias recebem seus cadáveres derrotados. Dali, rapidamente sempre sai outra pessoa para substituí-lo.
Naquela noite, a conversa se estendeu até tarde, e Edson, por segurança, recomendou dormir em uma rede ali mesmo. De manhã, dezenas de crianças indígenas que estudam e vivem no internato em Puerto Colombia pularam no rio para tomar banho e brincar um pouco antes das aulas. Depois, foram para a cozinha da escola e receberam uma porção de biscoitos e café com leite.
As crianças se divertiam sem medo, mas havia um clima de desconforto no vilarejo: os moradores trocavam olhares desconfiados ou cautelosos; quase ninguém falava. De repente, uma lancha apareceu com um homem em pé no casco, vestido com roupas civis, usando boné e óculos escuros. O homem desceu e embarcou em outra lancha atracada na margem. Quando ele se inclinou para ligar o motor, uma pistola apareceu pendurada em seu cinto. "Aquele era o comandante da guerrilha, o responsável pela área", disse o piloto, mais tarde, enquanto seguíamos rio abaixo.
ECONOMIA DE OURO
De Inírida, em um voo de 45 minutos sobre a selva, em direção ao sul, pequenas aeronaves transportam passageiros e cargas leves para uma pista de pouso de terra em San Felipe, a nova capital comercial do rio Negro, em seu trecho colombiano-venezuelano. O que não voa até aqui chega pelo leito escuro do rio em toneladas: passageiros, alimentos, bebidas, ferramentas, tijolos, cimento, gasolina e uma série de outros bens essenciais que sustentam a vida nas comunidades vizinhas. Dessa carga, 80% segue para as minas. O restante é consumido nessa cidade de pouco mais de mil habitantes.
Juvenal Herrera*, proprietário de um negócio na rua principal, chegou há 20 anos e não pode reclamar: comprou casas fora e educou seus filhos com o dinheiro que ganha aqui. "Já tive dias de 20 e 30 milhões (de pesos colombianos, entre R$ 27 mil e R$ 40 mil). É bom aqui", diz ele, satisfeito, em sua loja lotada. "Entre dezembro e janeiro, trouxe 120 tambores de gasolina. Em fevereiro, já tinha acabado". Cada tambor - 60 galões - custa 1,2 milhão de pesos colombianos (R$ 1.600) em Inírida, e é vendido pelo dobro em San Felipe. Se o ouro aqui é o rei, a gasolina é a rainha: ela alimenta as dragas e os motores dos barcos, os geradores de energia e os sistemas de som das lojas, os ventiladores dos hotéis e as luzes que iluminam a cidade todas as noites. No entanto, às vezes, quando o combustível atrasa, os moradores passam vários meses desligados.
San Felipe não é tão desprotegida quanto Puerto Colombia: aqui o exército e a marinha têm postos permanentes, e os soldados patrulham com suas armas nos ombros. Mas há muito dinheiro e os grupos ilegais também controlam seu fluxo aqui. Comerciantes, trabalhadores do setor de transportes, líderes indígenas e até mesmo a Defensoría del Pueblo confirmam que eles estão presentes, que as lojas pagam extorsão e que os chefes dos grupos frequentam a cidade em trajes civis. Mas o medo promove a autocensura: em San Felipe, as pessoas não falam sobre o assunto com facilidade ou espontaneidade. Nas conversas entre vizinhos, são compartilhadas histórias de viagens, discute-se política, futebol e mulheres. Mas as grandes questões são mantidas em segredo. "Isso não é comigo", é a resposta que se repete quando se pergunta sobre o controle territorial.
O povoado consiste em duas ruas pavimentadas onde vive uma minoria de prósperos comerciantes brancos, alguns deles garimpeiros aposentados, cercados por três comunidades de terra batida onde centenas de indígenas Yerales, Puinaves e Curipacos vivem em casas de madeira com telhados de palha. O apogeu desfrutado pelos primeiros é sofrido pelos últimos. "Aqui é caro. Muitos garimpeiros vêm com ouro, e tudo sobe. Esta é uma economia de mineração, ouro puro. Mas nem todos nós o temos", reclama Carlos dos Santos, sentado sob uma árvore em uma manhã quente nos arredores da cidade.
Dos Santos, um homem magro de 38 anos, é a autoridade máxima da comunidade de Primero de Agosto, onde 43 famílias indígenas sobrevivem precariamente. "Vivemos da roça, da caça e da pesca. Sempre houve peixes aqui, mas com o garimpo eles diminuíram muito, por causa do barulho e da poluição. Agora temos que comprar frango e carne, mas é muito caro", diz.
Isolados no último canto da Colômbia, os habitantes de San Felipe sentem que os governos os esqueceram. "Várias pessoas morreram aqui. A última foi há dois meses: uma garota grávida morreu porque não conseguimos tirá-la daqui a tempo. Ela morreu com o filho dentro", lembra Dos Santos, com as mãos cruzadas sobre a mesa, como se estivesse rezando.
O vilarejo tem um posto de saúde, mas o suprimento de remédios muitas vezes falha, e somente aqueles que podem pagam milhões para que seus comprimidos sejam trazidos de avião. Há também uma escola que recebe todas as crianças da região, inclusive as que vêm de San Carlos. "Às vezes, a comida leva um mês viajando de Inírida. Ela se perde durante a viagem ou chega molhada. Mas temos que aceitar assim, porque não há mais nada. Às vezes, a comida atrasa e os professores têm que esperar até dois meses para começar as aulas", conta Dos Santos, cujos filhos também estudam ali.
O capitão, que antes havia falado sobre o ouro como algo estranho à sua cultura e afirmado com convicção que os povos indígenas não são garimpeiros, mais tarde admite que muitos homens das comunidades próximas a San Felipe foram para a selva venezuelana em busca do sonho dourado. "Há muito pouco trabalho para os jovens aqui; não há profissões. Muitos vão para as minas e não voltam. Mas entendemos que eles não conseguem encontrar coisas para fazer aqui".coisas para fazer aqui".
UMA DESESPERANÇA COMUM
Quando as últimas fronteiras da Colômbia e da Venezuela são deixadas para trás, o barco passa pela imensa Pedra de Cocuí - uma formação de mais de 460 metros de altura, que marca a tríplice fronteira - cruza a fronteira brasileira e o leito do rio muda: a água que corre suave encontra pedras e se agita em corredeiras. Após 12 horas de navegação rio abaixo, em frente a São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia brasileira, a paisagem também muda: prédios e a inusitada agitação urbana surgem em meio à selva. Na beira, subindo como caranguejos em pedras, cerca de 50 indígenas vivem em barracas e expostos à correnteza que pode arrastá-los sem esforço. Eles vêm de diferentes comunidades para receber benefícios do governo e acampam por vários dias enquanto os recebiam. Antes de partir, eles enrolam suas lonas, mas deixam os postes plantados para os outros que chegam ao mesmo acampamento.
Aqui, a gasolina ainda reina: no porto de Padre Cícero, no início de abril, centenas de indígenas faziam fila para encher tanques financiados pela prefeitura. O combustível chega em caminhões-tanque que viajam a bordo de barcos vindos de Manaus; ele desembarca em Camanaos, um importante porto a 30 quilômetros de São Gabriel. A fila andava lentamente naquela manhã, e muitos indígenas dormiam amontoados em uma cabana enquanto era sua vez de carregar.
Alexánder Moura*, um venezuelano magro de origem brasileira, estava observando a confusão no cais e explicou: "Eles usam parte da gasolina para seus motores e o resto vendem para os garimpeiros. Muita gasolina vem daqui para as minas do Brasil e da Venezuela. É uma longa viagem de ida e volta pelo rio: para o norte viaja o combustível, e para o sul o ouro que é extraído com ele.
Alexánder nasceu e cresceu na Venezuela, mas seus avós são daqui, e ele decidiu emigrar quando a crise se intensificou em seu país. Em São Gabriel, ele sobrevive com a esposa e o filho, como centenas de migrantes que enfrentam a xenofobia diariamente. "Temos um grupo e somos muitos, a maioria pedreiros e carregadores. Aqui há patrões que nos tratam mal, nos pagam menos que aos brasileiros. Mas todos nós nos apoiamos", disse ele, olhando para o rio.
Segundo o Censo de 2022, São Gabriel da Cachoeira tem cerca de 50 mil habitantes, dos quais 48 mil são indígenas de 23 etnias diferentes: banivas, curipacos, barés, yanomamis e muitas outras. O centro comercial - algumas poucas ruas com lojas disputando clientes lado a lado - prospera na parte alta da cidade; e não há estabelecimentos que vendam ouro, já que São Gabriel funciona apenas como ponto de passagem rumo ao vasto mercado brasileiro. Na parte baixa, às margens do rio, uma fileira de casas e comércios dá de frente para uma praia deserta. É o lugar mais bonito da cidade, mas recebe pouca atenção. À frente, largo e turbulento, o rio Negro se agita entre corredeiras que dão nome a este porto: cachoeiras.
O restante da área urbana e seus arredores estão sob controle militar. Quase toda São Gabriel está sob controle das Forças Armadas, e soldados são presença constante em cafés, padarias e hotéis. Isso vem desde a ditadura militar: em 1968, essa região de fronteira foi declarada área de segurança nacional. Ainda assim, o ilícito flui: a lei proíbe a exploração de ouro em terras indígenas ou reservas naturais, mas a cidade é um elo fundamental no esquema de tráfico. Em 2023, um juiz da comarca pediu urgentemente ao Ministério da Justiça a abertura ali de uma delegacia da Polícia Federal. Segundo ele, a localização da cidade, no corredor que vem de Colômbia e Venezuela, a torna estratégica para o tráfico. É por aqui que entra o ouro que segue até Itaituba, já no Pará, onde o metal de origem ilegal é injetado na economia em larga escala.
São Gabriel é um refúgio onde migrantes em situação de vulnerabilidade se abrigam antes de tentar a sorte rumo ao interior. A venda de gasolina e a economia informal - que prospera em camelôs - mal conseguem disfarçar a precariedade, e a desesperança deve ser comum, já que os suicídios entre jovens indígenas se tornaram um problema de saúde pública. Mais um elo que conecta este lugar a San Carlos de Río Negro.
Durante um passeio pela cidade, Alexánder, o pedreiro venezuelano, contou que a agricultura também entrou em declínio durante os quatro anos em que vive aqui. As comunidades locais recebem benefícios e complementam a renda com o comércio de gasolina. Embora a maioria não esteja diretamente envolvida no comércio de ouro, muitos acabam "beliscando a fatia do bolo" e sobrevivem com essas sobras. "Eles já não caçam, não plantam, não pescam. Com esse dinheiro, compram carne e frango que vêm de Manaus", disse.
No dia seguinte, no porto de Camanaos, vários venezuelanos e brasileiros suados descarregavam barcos cheios de materiais trazidos de Manaus, onde os rios Negro e Amazonas se encontram. Em várias dessas embarcações, a Polícia Federal já apreendeu carregamentos de ouro ilegal que seguirão pelo rio Tapajós até Itaituba.
Dias antes, na viagem rumo a São Gabriel da Cachoeira, a voadeira ziguezagueava pelo rio Negro em busca de trechos mais profundos, o que prolongou o trajeto enquanto o sol da tarde começava a cair no horizonte oeste. As nuvens se aglomeraram e relâmpagos ameaçavam com clarões repentinos. Cirilo, um indígena de rosto enrugado, reduziu a velocidade e apontou a proa em direção a uma praia, onde a embarcação encalhou com o motor desligado. "Essa tempestade tá feia, muito perigoso seguir assim. Já vi lancha virar cheia de gente", disse.
Cirilo subiu uma encosta e caminhou entre as casas de uma comunidade que parecia abandonada. Gritou várias vezes, mas ninguém respondeu: os indígenas que viviam naquelas ocas haviam fugido, sabe-se lá quando e para onde. "A gente dorme aqui. Assim que amanhecer, vamos embora", disse Cirilo.
Renny, seu genro e ajudante, outro indígena a quem todos chamam de Pequeno, montou um abrigo improvisado na lancha e estendeu várias lonas para proteger o espaço onde os dois passariam a noite. Depois, nos sentamos na praia para conversar sobre a antiga profissão dele, iluminados apenas pelos relâmpagos. "Agora estamos levando mercadorias para os garimpos, e nos pagam com ouro; mas eu comecei como carregador: levando gasolina, mantimentos. Depois, trabalhei em vários garimpos, e o máximo que consegui foi 39 gramas. Aí me cansei e aprendi a mergulhar. Estive em Cunucunuma e em outros (garimpos). Lá sim eu tirava 70, 80 gramas. Lá embaixo a gente se empolga e fica viciado", contou satisfeito. "Eu me salvei de várias pedras grandes. No escuro do rio não se enxerga, mesmo levando lanterna. Vários companheiros morreram. Amarravam eles no fundo e os tiravam com guindastes, pingando água".
Pequeno observava o trânsito tranquilo do rio e refletia sobre seu papel como fornecedor e meio de transporte de uma riqueza incalculável. "O ouro viaja pelo rio para os dois lados: para Inírida e para o Brasil. Igualzinho ao mercúrio, que escondem para escapar da lei." Pequeno contou que, durante sua curta temporada como garimpeiro, ficou com medo do ambiente violento dos garimpos e por isso deixou o trabalho. Sentado na margem, lembrou de brigas resolvidas a golpes de facão e de mortos anônimos que foram enterrados em algum lugar da selva. Homens que deixaram suas aldeias e famílias para arriscar a vida atrás de uma prometida e ilusória riqueza dourada. "Tudo pelo ouro."
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Alguns nomes desta reportagem foram alterados para garantir a segurança das fontes.
Esta reportagem faz parte do projeto Amazon Underworld, uma aliança transnacional que investiga tendências do crime organizado na Amazônia, integrada por Al Margen (Peru), Armando.Info (Venezuela), InfoAmazonia (Brasil), La Liga Contra el Silencio (Colômbia), La Barra Espaciadora (Equador) e RAI (Bolívia).
https://infoamazonia.org/2025/08/06/tudo-pelo-ouro-migracao-e-violencia-na-fronteira-brasil-colombia-venezuela/
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