From Indigenous Peoples in Brazil
News
"SÃO OS PRIMEIROS A CHEGAR NAS NOSSAS CASAS, PRESTANDO OS PRIMEIROS SOCORROS E ORIENTAÇÕES": CONHEÇA O TRABALHO DOS AGENTES INDÍGENAS DE SAÚDE (AIS), EM DUAS TERRAS INDÍGENAS DE RORAIMA
28/08/2025
Autor: Márcia Fernandes Wapichana- Jornalista- ASCOM/CIR
Fonte: CIR - https://www.cir.org.br
Para compartilhar um pouco sobre essa linda profissão e relatar experiências marcadas por muitos desafios, acompanhamos o dia a dia de cinco Agentes Indígenas de Saúde (AIS) nas Terras Indígenas Raposa Serra do Sol e Serra da Moça: Gilberto Mota Macuxi, Patrícia Lima Macuxi, Lucineide Lima Macuxi, Marina Silva Wapichana e Maria Rosália Wapichana são alguns dos verdadeiros "doutores" das comunidades indígenas de Roraima.
A rotina dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) na comunidade começa cedo. Pela manhã, já iniciam as visitas domiciliares, percorrendo caminhos, igarapés, rios e longas distâncias, muitas vezes a pé, de moto ou de canoa. São responsáveis por acompanhar de perto o estado de saúde das pessoas, e das famílias de suas comunidades, com atenção especial às gestantes, crianças e idosos.
Na comunidade indígena Camará, localizada na TI Raposa Serra do Sol, mora a liderança, Gilberto Mota, do povo Macuxi, 52 anos, e exerce a função de AIS. Ele contou que é agente há mais de 20 anos, carrega a responsabilidade de zelar pelo bem-estar de seu povo. Atua na linha de frente do atendimento básico, unindo conhecimentos tradicionais do seu povo e protocolos do sistema público de saúde não indígena.
"O nosso trabalho é promover a saúde dos povos indígenas. Passamos por muitas situações na comunidade e esse projeto nos permitiu chegar a um nível de profissionalização. Começamos com a medicina tradicional, depois vieram os cursos básicos, até a comprovação como AIS. Hoje, seguimos o que foi planejado pelas nossas lideranças juto com a organização CIR", explicou.
Gilberto lembrou que o atendimento melhorou ao longo do tempo, mas ainda enfrenta desafios. "A saúde não está cem por cento, mas fazemos o possível para o nosso povo. O governo atende dentro do que consegue, e nós fazemos nossa parte. Claro que há doenças que ultrapassam nossos limites. Somos o básico, a porta de entrada. Precisamos formar mais pessoas, médicos, enfermeiros, dentistas, entre outros, para termos mais oportunidades."
Lembrou que antes da abertura da estrada, o acesso era precário na comunidade indígena Camará, o contato era via rádio, para chamar ambulâncias ou aeronaves para salvar vidas. "Já perdemos muitos parentes. Hoje temos estrada, não boa, mas existe".
No dia a dia, o trabalho do senhor Gilberto, começa cedo, com o acompanhamento de crianças e idosos. "Acompanhamos as crianças para ver e saber se estão bem alimentadas. Também acompanhamos nossos idosos. fazemos o acompanhamento da saúde para ver se está tudo bem."
Gilberto, destacou também o papel das parteiras e da medicina tradicional nas comunidades. "Temos uma parteira que cuida das gestantes e ajuda no parto. A medicina tradicional é importante e ajuda muito, especialmente no inverno, quando as crianças e idosos sofrem com doenças respiratórias. Quando a doença é grave, encaminhamos ao médico. Minha função é orientar, conversar, olhar se a gestante está fazendo o pré-natal, se as vacinas estão em dia, se tem alguma febre ou diarreia nas crianças. Eu também encaminho para o posto de saúde quando vejo que é preciso",
A falta de medicamentos no polo base é um problema recorrente, porque é distribuída em outras comunidades da região. "Temos muitas remoções na região, e falta medicamentos. e isso dificulta o atendimento aqui no polo."
Gilberto finalizou um pouco de sua trajetória com a seguinte reflexão. "Aqui não brincamos com a saúde. Isso é muito sério. Sempre trabalhamos com respeito, dentro da nossa cultura e da nossa terra."
Marina Silva Ramiro, 48 anos, do povo Wapichana, nasceu e se criou na comunidade indígena e Terra Indígena Serra da Moça. É Agente Indígena de Saúde na sua comunidade. Sua trajetória começou após um treinamento oferecido por instituições voltadas à essa categoria. "Antes de começarmos a atuar efetivamente, passamos por um ano inteiro de preparação. No início, nossa remuneração era uma bolsa de apenas R$ 100,00, bem diferente do valor que recebemos hoje".
"Trabalhei por cerca de sete anos como AIS, depois me afastei por dois anos e, em 2014, retornei às atividades na minha comunidade, onde contínuo até hoje. Atualmente, somos dois Agentes de Indígena de Saúde. Nosso objetivo sempre foi realizar um trabalho rotineiro, em colaboração com a comunidade. Entre as principais atividades, realizamos visitas domiciliares, ações com grupos em situação de vulnerabilidade e acompanhamos de perto os idosos. Temos 27 programas de saúde para desenvolver, todos os meses, e ao final de cada período precisamos elaborar relatórios sobre tudo o que foi feito. Esses relatórios são fundamentais para mostrar nossa produção e dar continuidade do trabalho".
Marina, lembrou dos desafios que enfrentou durante a pandemia da COVID-19. "Embora não tenhamos registrado óbitos dentro da comunidade Serra da Moça, a preocupação foi grande. Em 2019, não havia medicamentos disponíveis, as farmácias estavam vazias. Diante dessa escassez, recorremos aos nossos conhecimentos tradicionais, usamos remédios naturais e aplicamos medidas de proteção na entrada da comunidade, como barreiras sanitárias. "Nosso trabalho é contínuo, em parceria com a comunidade".
A comunidade, Serra do Truaru, foi a mais afetada entre as cinco comunidades da região, explica Marina, além de outras também como a comunidade Morcego, Anzol e Truarú da Cabeceira. Mas não houve nenhuma perda de vida. "Fizemos um acompanhamento próximo de todos os casos. Mesmo sem Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como luvas e máscaras, não ficamos desamparados. As mulheres da comunidade, se organizaram para costurar máscaras de tecido, já que não era possível comprá-las. Com união, superamos esse momento difícil. Hoje, seguimos firmes, sempre atentos às necessidades da nossa comunidade e com o compromisso de garantir saúde e bem-estar para todos".
A origem da profissão
Os povos indígenas sempre cuidaram da saúde em suas comunidades, tanto no tratamento quanto na prevenção das enfermidades. Detêm vasto conhecimento sobre diferentes formas de cura, extraindo da própria terra os recursos necessários. No entanto, com a chegada de fatores externos, como a presença de pessoas de fora e a atividade do garimpo ilegal, tornou-se necessário buscar novos conhecimentos para enfrentar e combater doenças antes desconhecidas.
A profissão de Agente Indígena de Saúde (AIS) tem suas raízes fincadas na mobilização histórica dos povos indígenas do Brasil por seus direitos, especialmente a parti da década de 1980. A criação dos AIS surgiu como resposta às necessidades específicas das comunidades indígenas, que viviam, e ainda vivem realidades distintas dos não indígenas. Nos anos de 1990, diante da precariedade no atendimento e das barreiras linguísticas e culturais no sistema de saúde, os próprios povos indígenas passaram a reivindicar um modelo de atenção que respeitasse seus modos de vida, saberes tradicionais e práticas de cuidado.
Foi nesse contexto que se estruturou o modelo da Atenção à Saúde Indígena diferenciada, consolidado posteriormente com a criação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). E, embora os AIS já atuassem informalmente desde os anos 90, foi só com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), em 2010, que sua atuação ganhou respaldo institucional e passou a integrar oficialmente o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), dentro do Sistema Único de Saúde (SUS).
Jonelson Lima Mota Macuxi, segundo tuxaua da comunidade indígena Camará, Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que por uma época já atuou como AIS, relembrou com orgulho e emoção a trajetória dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) na região Baixo Cotingo. Segundo ele, foi uma luta que veio das preocupações dos Tuxauas, e essa conquista foi fruto de grandes mobilizações das lideranças, movidas pela preocupação com os surtos de doenças que atingiam as comunidades.
"Começamos essa luta porque, antigamente, aqui na nossa região e em outras, não existia atendimento de saúde. As crianças sofriam com diarreias, malária, tuberculose, e não havia ninguém para atender de forma rápida. Isso fez com que as lideranças buscassem alternativas urgentes para mudar essa realidade", afirma.
A decisão de lutar para que cada comunidade tivesse seu próprio agente de saúde foi tomada em assembleias regionais e assembleia geral do CIR, onde as lideranças entenderam que era essencial que os agentes fossem pessoas da própria comunidade, com compromisso e interesse em cuidar do seu povo. "Eu também fiz parte desse caminho. Em 1994, iniciamos os primeiros cursos introdutórios na nossa região, com o apoio do Conselho Indígena de Roraima, que buscou parcerias importantes para essa formação. Eu, como tuxaua, sempre faço questão de lembrar a importância do CIR nesse processo", relatou Jonelson.
Lembrou ainda das dificuldades enfrentadas pelos seus avós e pais, que precisavam caminhar longas distâncias até o hospital São Camilo, (existente na época na missão Surumu, na comunidade Barro, região de Surumu) em busca de atendimento. "Foi por essas dificuldades que conseguimos conquistar a presença dos agentes de saúde. Hoje eles são os primeiros a chegar nas nossas casas, prestando os primeiros socorros e orientações".
O tuxaua também defendeu a valorização da medicina tradicional indígena, que convive com a medicina farmacêutica nas comunidades. "Ainda não está 100%, mas seguimos lutando para que nossa medicina tradicional, com o conhecimento dos pajés, seja respeitada e valorizada mais ainda. Usamos as duas medicinas, e isso tem ajudado muito."
A existência da profissão de AIS é um exemplo da autodeterminação dos povos indígenas, princípio que garante as comunidades o direito de decidir sobre seus próprios caminhos, inclusive na área da saúde. Essa autodeterminação foi, e continua sendo essencial para a construção de um modelo de atendimento que respeita a diversidade cultural e os conhecimentos tradicionais, valoriza a língua, os costumes e os modos próprios de cura.
A formação continuada e a capacitação dos AIS, são conduzidas por órgãos públicos como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), envolvendo os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), organizações indígenas e instituições de ensino e saúde. No entanto, ainda enfrentam dificuldades em diversas regiões com a falta da formação continuada dos agentes de saúde. O tuxaua Jonelson, da comunidade Camará, faz um alerta sobre a falta de capacitação contínua.
"Algumas comunidades têm perdido seus agentes de saúde por falta de novas capacitações. Preciso continuar formando novos agentes. Aqui na nossa região queremos continuar sendo atendidos por médicos, mas os agentes de saúde são fundamentais. São eles que chegam primeiro, são eles que conhecem a nossa realidade."
A fala de Jonelson reflete a preocupação de muitas comunidades indígenas pois a falta de capacitações regulares compromete não apenas o trabalho desses profissionais, mas também o acesso continuado e qualificado à atenção básica de saúde nos territórios.
Medicina tradicional
Lucineide de Lima Macuxi, 47 anos, nasceu e cresceu na comunidade indígena Camará, onde vive até hoje. O olhar é de uma mulher forte, uma vida dedicada à saúde indígena e a medicina tradicional, um legado deixado pelos seu ancestrais. Ao receber a jornalista Márcia Fernandes Wapichana, e Fotojornalista Maciel Macuxi agradeceu pela presença, pela oportunidade de contar sua história, uma história dedicada com muito amor.
Sua trajetória na saúde começou em 18 de dezembro de 1993, quando participou de uma capacitação de um ano na Missão Surumu, com atividades no Hospital São Camilo. Foi ali que deu os primeiros passos no trabalho comunitário. "Na época não havia muito apoio, então fui pela boa vontade. Ganhei muita experiência e aprendi muito com a professora, irmã Tereza, que formava agentes de saúde de várias regiões. O objetivo era levar o conhecimento adquirido para nossas comunidades", relembrou.
Lucineide também participou de outros cursos, tornando-se parteira, Agente Indígena de saúde e microscopista. Ao retornar para o Camará, colocou em prática o que havia aprendido, mas não foi fácil. "Naquele tempo, não tínhamos enfermeira. A diocese nos apoiava. A irmã Augusta vinha todos os meses supervisionar e orientar, e contei muito com o seu Gastão, que me ensinou a trabalhar com os pacientes na microscopia".
E mais uma vez, o Conselho Indígena de Roraima é lembrado pela Lucineide, quando fortaleceu as capacitações e abriu novos caminhos para o trabalho dos Agentes Indígenas de Saúde. Foi nesse contexto que os profissionais enfrentaram surtos de malária e passaram a dar apoio a outras comunidades. Antes mesmo das formações, ela já praticava a medicina tradicional, aprendendo com dona Iolanda Macuxi, uma referência em Roraima.
"Dou muito valor a esse trabalho. Nossa natureza é rica em remédios. O conhecimento que adquiri repasso para os mais jovens, porque quem nos ensinou já se foi. Tenho essa preocupação de manter viva a sabedoria dos nossos antepassados."
Lucineide também é parteira, um ofício aprendido com seus avós. "Hoje, depois que a equipe de saúde entrou, perdemos um pouco dos nossos valores em relação ao parto. Ainda trabalho como parteira e recebemos o kit necessário, mas percebo que a medicina tradicional vem sendo deixada um pouco de lado, em relação aos partos."
Com esse sentimento, ela tem grande preocupação em formar mais jovens, para que aprendam a produzir e usar remédios tradicionais. "É importante que os jovens conheçam e valorizem a nossa medicina, porque ela vem de muito tempo e é parte da nossa identidade, não podemos perder essa tradição tão rica."
Patrícia Lima, 34 anos, do povo Macuxi, é um exemplo de liderança de muitas resistências e de persistência. Atualmente, é coordenadora do Polo Base Camará, que atende 11 comunidades da região. "Comecei no polo em 2018 sem experiência, mas aos poucos fui aprendendo. Já são sete anos na coordenação", conta. No entanto, a caminhada tem sido marcada por dificuldades que se intensificam no período do inverno. "Durante essa época, muitas comunidades ficam isoladas. As equipes não conseguem chegar. Já pensei em desistir, mas sempre fui incentivada pelas colegas de trabalho".
Entre os principais problemas enfrentados, Patrícia destacou a redução no fornecimento de combustível para os veículos de atendimento, o que compromete diretamente o deslocamento das equipes. "Às vezes, a equipe sai para uma comunidade e já retorna sem combustível para continuar os atendimentos. Com isso, outras comunidades ficam sem assistência. E elas sofrem muito com isso".
Outro desafio grave é a falta de medicamentos. "Enviamos os pedidos, mas os remédios demoram a chegar. Só agora, depois de dois meses, começou a chegar alguma coisa aqui no Camará. Mas ainda é pouco", denuncia Patrícia. A coordenadora também critica a atuação do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). "Eles cobram muito da nossa produção, mas não oferecem o suporte necessário para realizarmos o nosso trabalho com qualidade."
Apesar dos obstáculos, Patrícia ressaltou o papel importante da medicina tradicional no cuidado à saúde dos moradores da comunidade: "Ela ajuda bastante, principalmente nos momentos em que o atendimento das equipes não consegue chegar."
Na comunidade, o trabalho dos AIS é organizado em conjunto com a equipe multidisciplinar. "Temos um cronograma que é feito por uma enfermeira da equipe de saúde. Ela repassa para os AIS, e a partir disso montamos o nosso cronograma local aqui no polo base", explica Patrícia.
Atualmente, três AIS atuam na comunidade Camará, com as atividades divididas entre famílias. Essa divisão facilita o acompanhamento das demandas e o repasse das orientações de saúde. "Cada um fica responsável por determinadas famílias, de acordo com a organização que fazemos em conjunto com a equipe", completa.
Vozes da comunidade: "são os doutores dos territórios"
Na comunidade indígena Camará, na região do Baixo Cotingo, TI Raposa Serra do Sol, ouvir os moradores é entender, na prática, o papel importante dos Agentes Indígenas de Saúde. As famílias relataram com orgulho e confiança o trabalho dos AIS, que acompanham de perto o crescimento das crianças, a saúde das gestantes e o controle de doença na região. Seu Zildo de Oliveira Mota, do povo macuxi, morador da comunidade, compartilhou sua experiência como paciente de hipertensão.
"Eu sofro de pressão alta e sou atendido todo mês pelos Agentes Indígena de saúde. Eles vêm na minha casa e de outras famílias também, trazem os medicamentos e fazem acompanhamento. Aqui na comunidade, somos bem atendidos pelos Agentes Indígenas de Saúde. Qualquer hora que precisamos, seja de dia ou de noite, eles atendem. Eles são os nossos "doutores da comunidade". Mas também temos os nossos rezadores, que cuidam da gente com os saberes tradicionais. É assim que a gente vive aqui, com os dois conhecimentos."
Há seis anos, Maria Rosália atua como Agente Indígena de Saúde, na comunidade indígena Serra da Moça, região do Murupú, Wapichana, com forte ligação à sua terra e povo, ela é uma das responsáveis por garantir o acesso à saúde básica para centenas de pessoas em cinco comunidades: Anzol, Truarú da Cabeceira, Serra da Moça, Morcego e Serra do Truarú, onde fica o polo-base.
"Somos a linha de frente da nossa comunidade. Quem identifica um dente inflamado, quem busca uma gestante ou um idoso que está precisando de atendimento, somos nós, AIS. A comunidade nos procura direto no posto de saúde, e nós repassamos as demandas para a equipe", explica Rosália.
Rosalia informou que a comunidade conta com duas equipes de atenção básica. A equipe 1, considerada fixa, é composta por médico, dentista, profissional de vacinação e enfermeiro, e entra uma vez por mês para realizar os acompanhamentos. Porém a atuação das AIS é constante. "Trabalhamos com programas voltados para a saúde da mulher, do homem, dos idosos, das crianças e adolescentes. Todos são acompanhados mensalmente por nós."
Mesmo com a dedicação, Rosália relatou dificuldades constantes, especialmente pela falta de apoio da SESAI. "Estamos sem suporte. Mesmo assim, continuamos firmes. Acompanhamos pacientes até a CASAI, até o hospital, e não temos hora para parar. Trabalhamos praticamente dia e noite."
Segundo ela, a estrutura do posto de saúde da Serra da Moça é precária. "As salas não são suficientes. É muito ruim para fazer atendimento. Falta material de limpeza e, muitas vezes, tiramos do nosso próprio bolso. A população cresceu e o trabalho aumentou, mas o apoio não acompanha."
Todo o trabalho dos AIS é registrado manualmente, em cadernos. "Nosso maior desafio são as remoções de pacientes. Temos apenas dois carros para toda a região do Murupu, e não é suficiente. Muitas vezes, temos que improvisar e ajudar de qualquer jeito."
Em algumas situações, os AIS precisaram realizar até mesmo partos. "Já ajudei mulheres em trabalho de parto porque não tinha carro, não tinha equipe. Fiz o parto delas, graças a Deus deu tudo certo. Depois mandamos para a maternidade. Mas os primeiros atendimentos, quem faz somos nós."
Rosália também faz um apelo por mais capacitação. "Queremos cursos mais avançados, como primeiros socorros, parteira, atendimento de urgência. Muitas vezes nos deparamos com situações que exigem preparo, mas não temos. Precisamos de mais suporte da SESAI."
Apesar de todos os obstáculos, o que move Maria Rosália é o compromisso com sua comunidade. "É um trabalho cansativo, sim. Mas eu tenho compromisso. Eu consigo trabalhar porque sei que a minha comunidade precisa de mim."
Saberes tradicionais de cura
Nas comunidades indígenas, o cuidado com a saúde vai muito além do atendimento pela equipe de saúde. Os Agentes Indígenas de Saúde atuam na linha de frente, mas a medicina tradicional, representada pelos pajés e rezadores, mantém papel importante no cuidado, especialmente nos casos em que a ciência ocidental não encontra resposta imediata.
O pajé Augustino Macuxi, 72 anos, da comunidade indígena Camará explicou. "Eu tenho amor pelo que faço. O que o médico branco cura, eu não curo, e o que eu curo, o médico branco não cura. Cuidamos dos pacientes quando somos chamados."
Para muitos moradores, essa atuação é de muito valor. Uma paciente, por exemplo, contou que passou um mês sofrendo com fortes dores no corpo, sem diagnóstico claro. "O remédio do posto não combatia as dores. Meu esposo foi atrás do pajé, que soube identificar o problema. Com os cuidados do pajé, estou melhorando. Agora só depende de mim seguir as orientações e ter muita fé. O trabalho do pajé é importante, ele me orienta em tudo sobre a minha saúde."
Essa parceria, mesmo que informal, mostra como o diálogo entre a medicina ocidental e a tradicional pode ampliar as possibilidades de cura, respeitando a cultura e fortalecendo a confiança da comunidade nos seus próprios saberes.
Olhar para o futuro: Regulamentação da profissão
A profissão de Agente Indígena de Saúde está em processo de regulamentação no Brasil. É de autoria da ex-deputada Joênia Wapichana, que visa reconhecer e dar direitos trabalhistas aos AIS e AISAN. Um projeto de lei (PL 3514/19) que tramita na Câmara dos Deputados com o objetivo de regulamentar essas profissões dentro do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS).
De acordo com dados mais recentes do Ministério da Saúde (MS), atualmente 657 Agentes Indígenas de Saúde atuam nos estados de Roraima e uma pequena parte do Amazonas. Desse total, 380 estão vinculados ao DSEI Leste de Roraima e 277 ao DSEI Yanomami, evidenciando a importância desses profissionais na linha de frente da saúde indígena na região Norte.
Em conversas, os agentes reivindicam a valorização e salários justos, estabilidade, fortalecer o diálogo entre medicina tradicional e o sistema de saúde a medicina dos não indígenas, preservação dos saberes ancestrais, melhorar transporte, energia e comunicação nas comunidades indígenas para apoiar o trabalho desses profissionais.
As histórias de Patrícia Lima, Gilberto Mota, Lucineide Lima, Marina Silva, Maria Rosália e de tantos outros Agentes Indígenas de Saúde (AIS) revelam não apenas a importância desses profissionais na promoção do bem-estar em suas comunidades, mas também a força de um trabalho feito com o coração. Mesmo diante de inúmeras dificuldades e da escassez de recursos, o que move esses agentes vai além de qualquer limitação material. O trabalho é sustentado por empatia, coragem e, acima de tudo, por um profundo compromisso com o seu povo.
Fotos: Maciel Macuxi- Fotojornalista- ASCOM/CIR;
https://www.cir.org.br/post/sao-os-primeiros-a-chegar-nas-nossas-casas-prestando-os-primeiros-socorros-e-orientacoes-conheca-o-trabalho-dos-agentes-indigenas-de-saude-ais-em-duas-terras-indigenas-de-roraima
A rotina dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) na comunidade começa cedo. Pela manhã, já iniciam as visitas domiciliares, percorrendo caminhos, igarapés, rios e longas distâncias, muitas vezes a pé, de moto ou de canoa. São responsáveis por acompanhar de perto o estado de saúde das pessoas, e das famílias de suas comunidades, com atenção especial às gestantes, crianças e idosos.
Na comunidade indígena Camará, localizada na TI Raposa Serra do Sol, mora a liderança, Gilberto Mota, do povo Macuxi, 52 anos, e exerce a função de AIS. Ele contou que é agente há mais de 20 anos, carrega a responsabilidade de zelar pelo bem-estar de seu povo. Atua na linha de frente do atendimento básico, unindo conhecimentos tradicionais do seu povo e protocolos do sistema público de saúde não indígena.
"O nosso trabalho é promover a saúde dos povos indígenas. Passamos por muitas situações na comunidade e esse projeto nos permitiu chegar a um nível de profissionalização. Começamos com a medicina tradicional, depois vieram os cursos básicos, até a comprovação como AIS. Hoje, seguimos o que foi planejado pelas nossas lideranças juto com a organização CIR", explicou.
Gilberto lembrou que o atendimento melhorou ao longo do tempo, mas ainda enfrenta desafios. "A saúde não está cem por cento, mas fazemos o possível para o nosso povo. O governo atende dentro do que consegue, e nós fazemos nossa parte. Claro que há doenças que ultrapassam nossos limites. Somos o básico, a porta de entrada. Precisamos formar mais pessoas, médicos, enfermeiros, dentistas, entre outros, para termos mais oportunidades."
Lembrou que antes da abertura da estrada, o acesso era precário na comunidade indígena Camará, o contato era via rádio, para chamar ambulâncias ou aeronaves para salvar vidas. "Já perdemos muitos parentes. Hoje temos estrada, não boa, mas existe".
No dia a dia, o trabalho do senhor Gilberto, começa cedo, com o acompanhamento de crianças e idosos. "Acompanhamos as crianças para ver e saber se estão bem alimentadas. Também acompanhamos nossos idosos. fazemos o acompanhamento da saúde para ver se está tudo bem."
Gilberto, destacou também o papel das parteiras e da medicina tradicional nas comunidades. "Temos uma parteira que cuida das gestantes e ajuda no parto. A medicina tradicional é importante e ajuda muito, especialmente no inverno, quando as crianças e idosos sofrem com doenças respiratórias. Quando a doença é grave, encaminhamos ao médico. Minha função é orientar, conversar, olhar se a gestante está fazendo o pré-natal, se as vacinas estão em dia, se tem alguma febre ou diarreia nas crianças. Eu também encaminho para o posto de saúde quando vejo que é preciso",
A falta de medicamentos no polo base é um problema recorrente, porque é distribuída em outras comunidades da região. "Temos muitas remoções na região, e falta medicamentos. e isso dificulta o atendimento aqui no polo."
Gilberto finalizou um pouco de sua trajetória com a seguinte reflexão. "Aqui não brincamos com a saúde. Isso é muito sério. Sempre trabalhamos com respeito, dentro da nossa cultura e da nossa terra."
Marina Silva Ramiro, 48 anos, do povo Wapichana, nasceu e se criou na comunidade indígena e Terra Indígena Serra da Moça. É Agente Indígena de Saúde na sua comunidade. Sua trajetória começou após um treinamento oferecido por instituições voltadas à essa categoria. "Antes de começarmos a atuar efetivamente, passamos por um ano inteiro de preparação. No início, nossa remuneração era uma bolsa de apenas R$ 100,00, bem diferente do valor que recebemos hoje".
"Trabalhei por cerca de sete anos como AIS, depois me afastei por dois anos e, em 2014, retornei às atividades na minha comunidade, onde contínuo até hoje. Atualmente, somos dois Agentes de Indígena de Saúde. Nosso objetivo sempre foi realizar um trabalho rotineiro, em colaboração com a comunidade. Entre as principais atividades, realizamos visitas domiciliares, ações com grupos em situação de vulnerabilidade e acompanhamos de perto os idosos. Temos 27 programas de saúde para desenvolver, todos os meses, e ao final de cada período precisamos elaborar relatórios sobre tudo o que foi feito. Esses relatórios são fundamentais para mostrar nossa produção e dar continuidade do trabalho".
Marina, lembrou dos desafios que enfrentou durante a pandemia da COVID-19. "Embora não tenhamos registrado óbitos dentro da comunidade Serra da Moça, a preocupação foi grande. Em 2019, não havia medicamentos disponíveis, as farmácias estavam vazias. Diante dessa escassez, recorremos aos nossos conhecimentos tradicionais, usamos remédios naturais e aplicamos medidas de proteção na entrada da comunidade, como barreiras sanitárias. "Nosso trabalho é contínuo, em parceria com a comunidade".
A comunidade, Serra do Truaru, foi a mais afetada entre as cinco comunidades da região, explica Marina, além de outras também como a comunidade Morcego, Anzol e Truarú da Cabeceira. Mas não houve nenhuma perda de vida. "Fizemos um acompanhamento próximo de todos os casos. Mesmo sem Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como luvas e máscaras, não ficamos desamparados. As mulheres da comunidade, se organizaram para costurar máscaras de tecido, já que não era possível comprá-las. Com união, superamos esse momento difícil. Hoje, seguimos firmes, sempre atentos às necessidades da nossa comunidade e com o compromisso de garantir saúde e bem-estar para todos".
A origem da profissão
Os povos indígenas sempre cuidaram da saúde em suas comunidades, tanto no tratamento quanto na prevenção das enfermidades. Detêm vasto conhecimento sobre diferentes formas de cura, extraindo da própria terra os recursos necessários. No entanto, com a chegada de fatores externos, como a presença de pessoas de fora e a atividade do garimpo ilegal, tornou-se necessário buscar novos conhecimentos para enfrentar e combater doenças antes desconhecidas.
A profissão de Agente Indígena de Saúde (AIS) tem suas raízes fincadas na mobilização histórica dos povos indígenas do Brasil por seus direitos, especialmente a parti da década de 1980. A criação dos AIS surgiu como resposta às necessidades específicas das comunidades indígenas, que viviam, e ainda vivem realidades distintas dos não indígenas. Nos anos de 1990, diante da precariedade no atendimento e das barreiras linguísticas e culturais no sistema de saúde, os próprios povos indígenas passaram a reivindicar um modelo de atenção que respeitasse seus modos de vida, saberes tradicionais e práticas de cuidado.
Foi nesse contexto que se estruturou o modelo da Atenção à Saúde Indígena diferenciada, consolidado posteriormente com a criação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). E, embora os AIS já atuassem informalmente desde os anos 90, foi só com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), em 2010, que sua atuação ganhou respaldo institucional e passou a integrar oficialmente o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), dentro do Sistema Único de Saúde (SUS).
Jonelson Lima Mota Macuxi, segundo tuxaua da comunidade indígena Camará, Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que por uma época já atuou como AIS, relembrou com orgulho e emoção a trajetória dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) na região Baixo Cotingo. Segundo ele, foi uma luta que veio das preocupações dos Tuxauas, e essa conquista foi fruto de grandes mobilizações das lideranças, movidas pela preocupação com os surtos de doenças que atingiam as comunidades.
"Começamos essa luta porque, antigamente, aqui na nossa região e em outras, não existia atendimento de saúde. As crianças sofriam com diarreias, malária, tuberculose, e não havia ninguém para atender de forma rápida. Isso fez com que as lideranças buscassem alternativas urgentes para mudar essa realidade", afirma.
A decisão de lutar para que cada comunidade tivesse seu próprio agente de saúde foi tomada em assembleias regionais e assembleia geral do CIR, onde as lideranças entenderam que era essencial que os agentes fossem pessoas da própria comunidade, com compromisso e interesse em cuidar do seu povo. "Eu também fiz parte desse caminho. Em 1994, iniciamos os primeiros cursos introdutórios na nossa região, com o apoio do Conselho Indígena de Roraima, que buscou parcerias importantes para essa formação. Eu, como tuxaua, sempre faço questão de lembrar a importância do CIR nesse processo", relatou Jonelson.
Lembrou ainda das dificuldades enfrentadas pelos seus avós e pais, que precisavam caminhar longas distâncias até o hospital São Camilo, (existente na época na missão Surumu, na comunidade Barro, região de Surumu) em busca de atendimento. "Foi por essas dificuldades que conseguimos conquistar a presença dos agentes de saúde. Hoje eles são os primeiros a chegar nas nossas casas, prestando os primeiros socorros e orientações".
O tuxaua também defendeu a valorização da medicina tradicional indígena, que convive com a medicina farmacêutica nas comunidades. "Ainda não está 100%, mas seguimos lutando para que nossa medicina tradicional, com o conhecimento dos pajés, seja respeitada e valorizada mais ainda. Usamos as duas medicinas, e isso tem ajudado muito."
A existência da profissão de AIS é um exemplo da autodeterminação dos povos indígenas, princípio que garante as comunidades o direito de decidir sobre seus próprios caminhos, inclusive na área da saúde. Essa autodeterminação foi, e continua sendo essencial para a construção de um modelo de atendimento que respeita a diversidade cultural e os conhecimentos tradicionais, valoriza a língua, os costumes e os modos próprios de cura.
A formação continuada e a capacitação dos AIS, são conduzidas por órgãos públicos como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), envolvendo os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), organizações indígenas e instituições de ensino e saúde. No entanto, ainda enfrentam dificuldades em diversas regiões com a falta da formação continuada dos agentes de saúde. O tuxaua Jonelson, da comunidade Camará, faz um alerta sobre a falta de capacitação contínua.
"Algumas comunidades têm perdido seus agentes de saúde por falta de novas capacitações. Preciso continuar formando novos agentes. Aqui na nossa região queremos continuar sendo atendidos por médicos, mas os agentes de saúde são fundamentais. São eles que chegam primeiro, são eles que conhecem a nossa realidade."
A fala de Jonelson reflete a preocupação de muitas comunidades indígenas pois a falta de capacitações regulares compromete não apenas o trabalho desses profissionais, mas também o acesso continuado e qualificado à atenção básica de saúde nos territórios.
Medicina tradicional
Lucineide de Lima Macuxi, 47 anos, nasceu e cresceu na comunidade indígena Camará, onde vive até hoje. O olhar é de uma mulher forte, uma vida dedicada à saúde indígena e a medicina tradicional, um legado deixado pelos seu ancestrais. Ao receber a jornalista Márcia Fernandes Wapichana, e Fotojornalista Maciel Macuxi agradeceu pela presença, pela oportunidade de contar sua história, uma história dedicada com muito amor.
Sua trajetória na saúde começou em 18 de dezembro de 1993, quando participou de uma capacitação de um ano na Missão Surumu, com atividades no Hospital São Camilo. Foi ali que deu os primeiros passos no trabalho comunitário. "Na época não havia muito apoio, então fui pela boa vontade. Ganhei muita experiência e aprendi muito com a professora, irmã Tereza, que formava agentes de saúde de várias regiões. O objetivo era levar o conhecimento adquirido para nossas comunidades", relembrou.
Lucineide também participou de outros cursos, tornando-se parteira, Agente Indígena de saúde e microscopista. Ao retornar para o Camará, colocou em prática o que havia aprendido, mas não foi fácil. "Naquele tempo, não tínhamos enfermeira. A diocese nos apoiava. A irmã Augusta vinha todos os meses supervisionar e orientar, e contei muito com o seu Gastão, que me ensinou a trabalhar com os pacientes na microscopia".
E mais uma vez, o Conselho Indígena de Roraima é lembrado pela Lucineide, quando fortaleceu as capacitações e abriu novos caminhos para o trabalho dos Agentes Indígenas de Saúde. Foi nesse contexto que os profissionais enfrentaram surtos de malária e passaram a dar apoio a outras comunidades. Antes mesmo das formações, ela já praticava a medicina tradicional, aprendendo com dona Iolanda Macuxi, uma referência em Roraima.
"Dou muito valor a esse trabalho. Nossa natureza é rica em remédios. O conhecimento que adquiri repasso para os mais jovens, porque quem nos ensinou já se foi. Tenho essa preocupação de manter viva a sabedoria dos nossos antepassados."
Lucineide também é parteira, um ofício aprendido com seus avós. "Hoje, depois que a equipe de saúde entrou, perdemos um pouco dos nossos valores em relação ao parto. Ainda trabalho como parteira e recebemos o kit necessário, mas percebo que a medicina tradicional vem sendo deixada um pouco de lado, em relação aos partos."
Com esse sentimento, ela tem grande preocupação em formar mais jovens, para que aprendam a produzir e usar remédios tradicionais. "É importante que os jovens conheçam e valorizem a nossa medicina, porque ela vem de muito tempo e é parte da nossa identidade, não podemos perder essa tradição tão rica."
Patrícia Lima, 34 anos, do povo Macuxi, é um exemplo de liderança de muitas resistências e de persistência. Atualmente, é coordenadora do Polo Base Camará, que atende 11 comunidades da região. "Comecei no polo em 2018 sem experiência, mas aos poucos fui aprendendo. Já são sete anos na coordenação", conta. No entanto, a caminhada tem sido marcada por dificuldades que se intensificam no período do inverno. "Durante essa época, muitas comunidades ficam isoladas. As equipes não conseguem chegar. Já pensei em desistir, mas sempre fui incentivada pelas colegas de trabalho".
Entre os principais problemas enfrentados, Patrícia destacou a redução no fornecimento de combustível para os veículos de atendimento, o que compromete diretamente o deslocamento das equipes. "Às vezes, a equipe sai para uma comunidade e já retorna sem combustível para continuar os atendimentos. Com isso, outras comunidades ficam sem assistência. E elas sofrem muito com isso".
Outro desafio grave é a falta de medicamentos. "Enviamos os pedidos, mas os remédios demoram a chegar. Só agora, depois de dois meses, começou a chegar alguma coisa aqui no Camará. Mas ainda é pouco", denuncia Patrícia. A coordenadora também critica a atuação do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). "Eles cobram muito da nossa produção, mas não oferecem o suporte necessário para realizarmos o nosso trabalho com qualidade."
Apesar dos obstáculos, Patrícia ressaltou o papel importante da medicina tradicional no cuidado à saúde dos moradores da comunidade: "Ela ajuda bastante, principalmente nos momentos em que o atendimento das equipes não consegue chegar."
Na comunidade, o trabalho dos AIS é organizado em conjunto com a equipe multidisciplinar. "Temos um cronograma que é feito por uma enfermeira da equipe de saúde. Ela repassa para os AIS, e a partir disso montamos o nosso cronograma local aqui no polo base", explica Patrícia.
Atualmente, três AIS atuam na comunidade Camará, com as atividades divididas entre famílias. Essa divisão facilita o acompanhamento das demandas e o repasse das orientações de saúde. "Cada um fica responsável por determinadas famílias, de acordo com a organização que fazemos em conjunto com a equipe", completa.
Vozes da comunidade: "são os doutores dos territórios"
Na comunidade indígena Camará, na região do Baixo Cotingo, TI Raposa Serra do Sol, ouvir os moradores é entender, na prática, o papel importante dos Agentes Indígenas de Saúde. As famílias relataram com orgulho e confiança o trabalho dos AIS, que acompanham de perto o crescimento das crianças, a saúde das gestantes e o controle de doença na região. Seu Zildo de Oliveira Mota, do povo macuxi, morador da comunidade, compartilhou sua experiência como paciente de hipertensão.
"Eu sofro de pressão alta e sou atendido todo mês pelos Agentes Indígena de saúde. Eles vêm na minha casa e de outras famílias também, trazem os medicamentos e fazem acompanhamento. Aqui na comunidade, somos bem atendidos pelos Agentes Indígenas de Saúde. Qualquer hora que precisamos, seja de dia ou de noite, eles atendem. Eles são os nossos "doutores da comunidade". Mas também temos os nossos rezadores, que cuidam da gente com os saberes tradicionais. É assim que a gente vive aqui, com os dois conhecimentos."
Há seis anos, Maria Rosália atua como Agente Indígena de Saúde, na comunidade indígena Serra da Moça, região do Murupú, Wapichana, com forte ligação à sua terra e povo, ela é uma das responsáveis por garantir o acesso à saúde básica para centenas de pessoas em cinco comunidades: Anzol, Truarú da Cabeceira, Serra da Moça, Morcego e Serra do Truarú, onde fica o polo-base.
"Somos a linha de frente da nossa comunidade. Quem identifica um dente inflamado, quem busca uma gestante ou um idoso que está precisando de atendimento, somos nós, AIS. A comunidade nos procura direto no posto de saúde, e nós repassamos as demandas para a equipe", explica Rosália.
Rosalia informou que a comunidade conta com duas equipes de atenção básica. A equipe 1, considerada fixa, é composta por médico, dentista, profissional de vacinação e enfermeiro, e entra uma vez por mês para realizar os acompanhamentos. Porém a atuação das AIS é constante. "Trabalhamos com programas voltados para a saúde da mulher, do homem, dos idosos, das crianças e adolescentes. Todos são acompanhados mensalmente por nós."
Mesmo com a dedicação, Rosália relatou dificuldades constantes, especialmente pela falta de apoio da SESAI. "Estamos sem suporte. Mesmo assim, continuamos firmes. Acompanhamos pacientes até a CASAI, até o hospital, e não temos hora para parar. Trabalhamos praticamente dia e noite."
Segundo ela, a estrutura do posto de saúde da Serra da Moça é precária. "As salas não são suficientes. É muito ruim para fazer atendimento. Falta material de limpeza e, muitas vezes, tiramos do nosso próprio bolso. A população cresceu e o trabalho aumentou, mas o apoio não acompanha."
Todo o trabalho dos AIS é registrado manualmente, em cadernos. "Nosso maior desafio são as remoções de pacientes. Temos apenas dois carros para toda a região do Murupu, e não é suficiente. Muitas vezes, temos que improvisar e ajudar de qualquer jeito."
Em algumas situações, os AIS precisaram realizar até mesmo partos. "Já ajudei mulheres em trabalho de parto porque não tinha carro, não tinha equipe. Fiz o parto delas, graças a Deus deu tudo certo. Depois mandamos para a maternidade. Mas os primeiros atendimentos, quem faz somos nós."
Rosália também faz um apelo por mais capacitação. "Queremos cursos mais avançados, como primeiros socorros, parteira, atendimento de urgência. Muitas vezes nos deparamos com situações que exigem preparo, mas não temos. Precisamos de mais suporte da SESAI."
Apesar de todos os obstáculos, o que move Maria Rosália é o compromisso com sua comunidade. "É um trabalho cansativo, sim. Mas eu tenho compromisso. Eu consigo trabalhar porque sei que a minha comunidade precisa de mim."
Saberes tradicionais de cura
Nas comunidades indígenas, o cuidado com a saúde vai muito além do atendimento pela equipe de saúde. Os Agentes Indígenas de Saúde atuam na linha de frente, mas a medicina tradicional, representada pelos pajés e rezadores, mantém papel importante no cuidado, especialmente nos casos em que a ciência ocidental não encontra resposta imediata.
O pajé Augustino Macuxi, 72 anos, da comunidade indígena Camará explicou. "Eu tenho amor pelo que faço. O que o médico branco cura, eu não curo, e o que eu curo, o médico branco não cura. Cuidamos dos pacientes quando somos chamados."
Para muitos moradores, essa atuação é de muito valor. Uma paciente, por exemplo, contou que passou um mês sofrendo com fortes dores no corpo, sem diagnóstico claro. "O remédio do posto não combatia as dores. Meu esposo foi atrás do pajé, que soube identificar o problema. Com os cuidados do pajé, estou melhorando. Agora só depende de mim seguir as orientações e ter muita fé. O trabalho do pajé é importante, ele me orienta em tudo sobre a minha saúde."
Essa parceria, mesmo que informal, mostra como o diálogo entre a medicina ocidental e a tradicional pode ampliar as possibilidades de cura, respeitando a cultura e fortalecendo a confiança da comunidade nos seus próprios saberes.
Olhar para o futuro: Regulamentação da profissão
A profissão de Agente Indígena de Saúde está em processo de regulamentação no Brasil. É de autoria da ex-deputada Joênia Wapichana, que visa reconhecer e dar direitos trabalhistas aos AIS e AISAN. Um projeto de lei (PL 3514/19) que tramita na Câmara dos Deputados com o objetivo de regulamentar essas profissões dentro do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS).
De acordo com dados mais recentes do Ministério da Saúde (MS), atualmente 657 Agentes Indígenas de Saúde atuam nos estados de Roraima e uma pequena parte do Amazonas. Desse total, 380 estão vinculados ao DSEI Leste de Roraima e 277 ao DSEI Yanomami, evidenciando a importância desses profissionais na linha de frente da saúde indígena na região Norte.
Em conversas, os agentes reivindicam a valorização e salários justos, estabilidade, fortalecer o diálogo entre medicina tradicional e o sistema de saúde a medicina dos não indígenas, preservação dos saberes ancestrais, melhorar transporte, energia e comunicação nas comunidades indígenas para apoiar o trabalho desses profissionais.
As histórias de Patrícia Lima, Gilberto Mota, Lucineide Lima, Marina Silva, Maria Rosália e de tantos outros Agentes Indígenas de Saúde (AIS) revelam não apenas a importância desses profissionais na promoção do bem-estar em suas comunidades, mas também a força de um trabalho feito com o coração. Mesmo diante de inúmeras dificuldades e da escassez de recursos, o que move esses agentes vai além de qualquer limitação material. O trabalho é sustentado por empatia, coragem e, acima de tudo, por um profundo compromisso com o seu povo.
Fotos: Maciel Macuxi- Fotojornalista- ASCOM/CIR;
https://www.cir.org.br/post/sao-os-primeiros-a-chegar-nas-nossas-casas-prestando-os-primeiros-socorros-e-orientacoes-conheca-o-trabalho-dos-agentes-indigenas-de-saude-ais-em-duas-terras-indigenas-de-roraima
The news items published by the Indigenous Peoples in Brazil site are researched daily from a variety of media outlets and transcribed as presented by their original source. ISA is not responsible for the opinios expressed or errors contained in these texts. Please report any errors in the news items directly to the source