De Povos Indígenas no Brasil
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"É tudo pensamento de pajé"

por Lauro Brasil Kene Marubo

As cidades eram boas

Antes, as pessoas não sabiam falar a língua dos brancos, ninguém morava na cidade dos brancos. A cidade era boa, era bom estar na cidade. Naquela época nós não tínhamos documentos, podíamos ficar lá. Em 1955, eu fui morar na cidade dos brancos, eu era jovem. Cruzeiro não era deste tamanho, não era muito grande, nós ficávamos sem documento, não tinha problema, olhávamos as festas e voltávamos para casa. Nós tínhamos medo de bebedeira, não tomávamos cachaça. Os brancos também, eles cuidavam da gente, “não tomem cachaça!”, eles diziam. Nós ficávamos com um padre em Cruzeiro do Sul. Ele também nos dava dinheiro, dizia “procurem comida boa, tomem só esse refresco, guaraná”. Naquela época as mulheres brancas também não tinham ferida, tinham só piolho mesmo.

Mas agora não é assim. Agora nós todos temos que ter documentos. Por isso agora ficou difícil. “Vocês têm documentos? Onde vocês fizeram seus estudos?”, os brancos perguntam assim para os nossos jovens que vão estudar na cidade, e então é difícil, difícil morar assim. Há alguns anos nós chamamos uns brancos ruins para ensinarem na nossa aldeia. Eles vinham para cá para dar aulas, mas queriam mexer nas nossas mulheres, e então não puderam ficar morando com a gente, as mulheres quiseram assim. “Nós te chamamos para você nos amansar, mas você quer mexer com mulher!”, dissemos para ele.

Naquela época não era assim, nós não tínhamos malária, só gripe que passava logo, nós dizíamos para as pessoas que estavam gripadas não virem para cá, dizíamos para elas esperarem longe para não nos passarem gripe, os chefes mandavam assim. Não tínhamos diarréia nem vontade de vomitar, nós vivíamos bem antes. Não tinha dor de cabeça, não tinha dores de barriga [hepatite, gastrite], nós vivíamos assim. Hoje em dia, não dá para entender a doença, não dá para entender a febre.

Espíritos e bebidas

Tinha um chefe bom há algumas décadas atrás, o Raimundão. Trazia muita mercadoria, e dava para todo mundo, dava para as crianças, dava para as mulheres, era assim. Para beber cachaça também, ele reunia as pessoas e dizia para as pessoas não brigarem entre si, “vamos ficar bem, vamos fazer festa”. Assim faziam as pessoas, aqueles que tomavam cachaça faziam assim, não brigavam. Os outros chefes eram bravos, os chefes antigos. O velho Domingos matava pessoa. Quando eles morreram, Raimundão ficou sendo o chefe. Só dele é que nós não tínhamos medo, ele não era matador, era falador, e dizia assim: “não façam assim, nós não podemos nos matar entre si, nós temos que aumentar, não briguem entre si, não estraguem a nossa comunidade! Parem de ficar indo para a cidade, não fiquem morando com os brancos!”.

Assim se dizia naquele tempo, mas agora nós aprendemos a escrever, nós sabemos escrever, nós queremos aprender a língua do branco, nós moramos com o branco e entendemos a língua dele, e então nós vamos mesmo para a cidade, os jovens vão para a cidade. Na época do chefe Raimundão, não se mandava os jovens para a cidade, só agora mesmo é que começaram, aqui para cá em Cruzeiro tem alguns jovens morando, em Atalaia [do Norte] tem muita gente morando.

Os Ranenawavo [uma das nações dos Marubo] foram os primeiros a ir para a cidade, em 1973. Agora nós vamos trazer os nossos parentes. Morar na cidade faz mal às pessoas. Nós vamos trazer eles para cá, nós vamos viver no nosso rio, temos uma terra muito grande. Nós combinamos assim, não vamos mais morar na cidade. É muito ruim na cidade, vamos deixar Atalaia [do Norte], não vamos mais passear lá, vamos só para Cruzeiro (1).

As pessoas ficam ruins porque tomam cachaça, querem ver mulher para mexer, ficam pensando em brigar com as pessoas. As pessoas bebem e ficam com a cabeça doida, as pessoas tomam cachaça e o espírito (yochi) encosta nelas. Esse aí, meu parente, de quem eu gosto e não brigo, eu passo a pensar em brigar com ele. Eu viro outro, o meu pensamento muda, o espírito da cachaça (katxase yochi) vem, êh!, eu fico querendo te matar. O espírito da cachaça chega perto da gente. Ele faz a gente não gostar das pessoas, faz ficar com vontade de matar. Ele bate em quem você gosta, bate em seu pai, bate em sua mãe, bate em seu irmão, o espírito da cachaça. Por isso a cachaça é muito ruim.

A morte e o saque

Na cidade é assim. Aquele que matou com arma, os que matam com armas, se você brigou com um branco, se brigou com faca e alguém morreu, a pessoa morre e a sua alma (vaká), a sua alma vai encostar em outra pessoa. Na cidade é assim, a alma das pessoas matadoras entra pelas costas das outras. As pessoas que matam com armas, o espírito da cachaça, esses espíritos todos, os espíritos armados (pakãka yochi rasi), como os chamamos. Estes todos, estas almas entram pelas costas das pessoas, matam as pessoas, estes espíritos ruins que tem na cidade. Os montes de espíritos ruins, o espírito da cachaça, o espírito da cana, todos estes estão lá.

Quando os nossos antigos surgiram, eles foram exterminados por um grande vento da terra (mai wë), e então surgiram os Japós do Rio (ënë isko), que são gente muito brava, são os donos de vocês, os brancos bravos, os prendedores [policiais, soldados: tëskëkaya]. Foi a alma dos Japós do Rio que deu origem aos brancos prendedores. Japó do Rio não é nome de bicho não, é nome de gente branca mesmo, nome de alma de gente morta transformada em branco ruim. Eles não sabem pensar, sabem escrever, sabem escrever muito, mas tem pensamento bravo, tem branco que é assim...

Nós morremos nos brancos, mas nossa alma não fica vivendo lá não. Os brancos com quem crescemos juntos, eh!, estão velhos, fracos, de cabeça branca, com a vista ruim, andando mal, assim nós temos visto. Os brancos envelhecem rápido, mas nós não somos assim não, nós não ficamos velhos rápido. Eu estou dizendo que nós somos assim, nós somos assim mesmo, gente é assim. Quando morremos longe é assim, lá a nossa alma não pode ficar vivendo, de lá ela não pode seguir para o Caminho dos Mortos (Vëi Vai). O corpo da pessoa morre lá longe, mas ela vem para cá para, a nossa alma.

O Caminho dos Mortos é um só, isso é história dos velhos. Quando morre alguém, e o branco vem chegando, ele chama, “ooooooooooo”, e Papagaio (2) pergunta, “Quem são vocês? Vamos ver!”. Papagaio vem chegando e perguntando: “Quem é? Que tipo de gente chegou?”. A pessoa escuta Papagaio falar assim, se aproximando, se aproximando e olhando, “Êh! É branco (nawa) mesmo! Não tem tatuagem! Ele fala, mas a fala é diferente, você é nawa!” Ele manda a pessoa para seu caminho: “este é o caminho das pessoas como você, este caminho aí, olhe, vá por aí”, assim é a história de nossos antigos.

Mas quando a pessoa morre na cidade ela fica perdida, e para a pessoa não ficar assim nós conduzimos a alma, quando ela morre. A pessoa perdida fica aqui nesta terra, vira inambu, vira cotia, vira paca, vira sapo, vira cupim. Para não ficar assim é que nós conduzimos. As pessoas que morrem nos brancos, nós trazemos para cá, nós fazemos assim, trazemos mesmo. Lá não é nossa terra, é terra do branco. Nós trazemos para cá para sepultar na nossa terra.

Nós somos os donos, surgimos em nossa terra, nós surgimos primeiro, vocês surgiram depois, o lugar de surgimento de vocês é lá mesmo, na Europa, como vocês dizem. Surgindo de lá, vocês vieram e quiseram nos pegar, vocês, os seus antigos acabaram com a gente, vieram tomar as cidades da gente, eles acabaram com muita gente. Quando nós acabamos, outras pessoas chegaram, pegaram a terra e ficaram nela. Assim era contada a história por meu pai. Outras pessoas chegaram para viver, outras pessoas pegaram a terra. Para isso vocês vieram, vocês vieram e acabaram com os nossos antigos.

E os brancos chegaram, roubaram as mulheres dos antigos e mataram os homens, assim os brancos viraram nossos donos. Mas esta terra é nossa, toda esta terra é nossa porque nós surgimos primeiro. Os nossos antigos acabaram, e vocês roubaram as cidades, as cidades não são de vocês não, a terra é nossa, mas vocês roubaram. Então nós perguntamos se vocês não podem nos pagar, e os brancos dizem, “Assim não! Nós queremos pegar a terra, nós não pagamos não!”. “Nós não vamos acabar rápido! venham nos pagar!”, eu falo assim para o governo, fico bravo.

Os pajés dizem que foi com Shoma Wëtsa que estas coisas foram feitas, as coisas todas para fazer o ferro. Shoma Wëtsa é para fazer tudo, para fazer barco grande também. Ranë Topanë queimou a sua mãe, queimou ela e então...

Resumo do mito de Shoma

Wëtsa Shoma Wëtsa tinha lâminas afiadas nos braços, e matava muita gente assim. Quando seu filho, Ranë Topanë, se casou com a mulher Shëtã Vëká, Shoma Wëtsa não gostou. Ela comia os próprios netos que o filho deixava a seu cuidado quando ia caçar, e depois o enganava dizendo que não sabia de nada, que não tinha visto os netos, que eles talvez tivessem morrido. Rane Topane quis então se vingar e matar a mãe e a irmã dela, que se chamava Kecho. Tentou matar de várias formas, mas a mãe não morria porque era de ferro. Ranë Topanë fez uma armadilha: falou para a mãe dançar em torno de um buraco aberto dentro da maloca, onde havia uma fogueira. Shoma Wëtsa dançava de mãos dadas com a irmã em torno da fogueira, cantando, e então Ranë Topanë a empurra para dentro da fogueira. Ela morre queimada e explode: suas partes vão cair à jusante, na direção do rio grande [Solimões, talvez]. Seu fígado forma o ferro; seus dentes, que caem em um redemoinho de água, formam o ouro.

O carro, a moto, o relógio, estas coisas todas têm doença, são coisas feitas pelos pajés (kechitxo). Os relógios são pensados como olho de onça-fogo, olho de onça-azul, olho de onça-sol, são pensados assim, e então eles colocam febre, são os pajés que fazem. As motos são os ossos de Shoma Wëtsa mesmo. O papel também estraga os olhos. No início o seu olho fica vacilante, você não enxerga, fica com dor de cabeça, você fica assim. Assim faz o papel, ele dá tontura. É tudo pensamento (chinã) de pajé. Foram eles que surgiram primeiro, os pajés, gente dona de fala, os pajés-sol, os pajés-azul, os pajés-japó (3), estes que são os donos da fala, que surgiram primeiro, os pajés.

Notas

(1) Cruzeiro do Sul, no Acre, e Atalaia do Norte, no Amazonas, são as duas cidades por onde andam os Marubo, cada uma em um extremo da Terra Indígena Vale do Javari.

(2) Apesar do nome, este “papagaio” não é um pássaro, é gente, uma pessoa que cuida do Caminho dos Mortos.

(3) Tratam-se das classes dos pajés: uma pessoa Varinawavo (da nação ou povo do Sol), será por exemplo um vari kechi, “pajé-sol”, e assim de modo semelhante para as outras nações.

Depoimento recolhido, traduzido e editado por Pedro de Niemeyer Cesarino (Doutor em Antropologia - Museu Nacional [UFRJ] e consultor do Programa de Educação do Centro de Trabalho Indigenista [CTI] em dezembro de 2005, com sugestões de Elena Welper

Lauro Marubo, viajante e conhecedor dos jeitos dos brancos

por Pedro de Niemeyer Cesarino

Lauro Brasil Kene Marubo, também chamado de Pani papa, tem cerca de 60 anos, e é chefe (kakaya) da aldeia Alegria (Terra Indígena Vale do Javari/AM), junto com seu irmão mais velho Antônio Brasil Tekãpapa. Em sua juventude, morava junto com os outros Marubo em uma aldeia localizada entre as cabeceiras dos rios Ituí e Curuçá. Na época da borracha, saiu de lá (assim como fizeram muitos de seus parentes, se distribuindo nos dois rios onde hoje estão as aldeias dos Marubo) para trabalhar na borracha a jusante, mas ainda na cabeceira do rio Ituí.

Trouxe depois seu irmão Antônio para fundar a aldeia Alegria, há mais ou menos quarenta anos. Além da seringa, Lauro trabalhava com os patrões de Cruzeiro do Sul, dos quais pegava mercadorias para vender em sua terra, e também com madeira nos municípios amazonenses, rio abaixo, na direção de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, antes da demarcação e proteção de sua terra. É grande viajante e conhecedor dos jeitos dos brancos, além de kechitxo, um respeitado pajé-rezador, e pai de muitos filhos.