De Povos Indígenas no Brasil

"Agora vivemos na mistura"

por Fátima Paumari. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

Fátima Paumari. Foto: Oiara Bonilla, 2016.
Fátima Paumari. Foto: Oiara Bonilla, 2016.


Hoje em dia, essa nova geração não dá mais ouvidos, nem obedece os conselhos da mãe. Dizem que o que as mães aconselham não é verdadeiro. No meu tempo, crianças, moças e rapazes ouviam e seguiam os conselhos das mães, mas agora não dão mais ouvido para nada.

Antigamente, casávamos com nossos primos de verdade, esse era o jeito dos nossos antepassados. Agora há uma grande mistura, os jovens casam com não indígenas, ou com Apurinã. Ainda não casam com Jamamadi, nem com Deni.

Os não indígenas já têm espaço demais entre nós, em nossas aldeias.

Aconteceu comigo também. Minha filha não quis ouvir meus conselhos, casou com não-indígena e não gosto de chamá-lo de genro.

Ficaria muito alegre se ele fosse nosso parente. Se fosse assim, ele saberia falar na nossa língua, entenderia o jeito do meu povo e como a gente entende as coisas. Mas sou obrigada a falar com ele em português e isso eu não aceito.

Há muitos anos atrás, um homem não indígena se interessou por uma mulher paumari e se casou com ela quando ela saiu da reclusão. Ele a carregou nas costas (no ritual de puberdade amamajo), e só então ela se tornou sua esposa. Até hoje são casados, e ele fala na nossa língua.

Agora vivemos na mistura. Não queremos mais saber do jeito dos antigos.

Gostaria muito que nossos filhos e netos ainda quisessem saber da nossa língua, dos nossos cantos. Eu ainda continuo fazendo viver a nossa língua, os nossos cantos, para a nova geração.

Gostaria que, no futuro, meus netos, por sua vez, ensinassem nossa língua aos netos deles, e assim manteríamos a nossa língua viva.

Por isso, fico muito feliz com este trabalho da língua que está acontecendo agora [o Campeonato da Língua Paumari]. Acho muito lindo ouvir somente a nossa língua sendo falada. Quero que meu povo viva como nossos outros parentes, os que vivem do outro lado: os Jamamadi, os Jarawara, os Deni. Eles falam somente em sua língua. Queria ser do mesmo jeito: falando na minha língua, ouvindo as crianças falando entre elas em paumari.

Agora aqui não querem mais que eu fale na língua, mesmo se insisto em conversar em paumari com meus filhos e netos. Isso me deixa muito triste. Penso, falando comigo mesma: “Gostaria tanto que eles se esforçassem para falar a nossa língua, para que eles soubessem usá-la também aqui neste grande encontro que está acontecendo na nossa aldeia”. É assim a situação da nossa língua, Já faz três anos que acontece esse encontro!

Não quero que devalorizemos mais a nossa língua, como se a jogássemos fora. Vamos nos esforçar para conhecer a nossa língua. Nossos cantos já não são cantados como antigamente, mas eles ainda são lindos.

Também gosto dos cantos de louvor ao nosso pai [cânticos evangélicos], eles são belos como os cantos antigos do ihinika [rituais alimentares]; também os cantamos na nossa língua. Gostaria que todas as pessoas do meu povo fossem capazes de cumprimentar e responder na nossa língua.

Essa foi a minha conversa. Termino aqui a minha fala sobre como era o jeito de nossos antigos e como é nosso jeito hoje.

Uma mulher com história

por Oiara Bonilla, Antropóloga, professora no Departamento de Antropologia da UFF

Fátima Paumari é uma mulher com história. Ainda bem jovem, na década de 1960, viu o hidroavião das missionárias do Summer Institute of Linguistics (SIL) pousar pela primeira vez nas águas do Lago Marahã, na região Bacia do Rio Purus (AM). Alguns anos mais tarde, tornou-se uma das principais tradutoras dos textos bíblicos na língua paumari. Ao longo de sua vida, chegou a ser iniciada a técnicas e conhecimentos xamânicos por seu avô materno, em seguida se casou e teve duas filhas que criou sozinha, morando sempre na aldeia, à proximidade da sua irmã Gisi, de seu cunhado Antônio. Mais recentemente, criava três netos, filhos de sua filha caçula. Fátima era minha amiga e minha companheira de trabalho de muitos anos, desde 2000. Era uma mulher fora do comum por ser grande conhecedora dos rituais e dos cantos paumari. Muito respeitada e querida por todos, com uma personalidade forte e irreverente, cultivando incansavelmente a alegria, era sem dúvida uma liderança incontornável que “animava” e “puxava” reuniões, encontros, festas, manifestações. Amava cantar, dançar e contar histórias. Ela sempre pontuava nossas conversas com cantos, mitos, evocações de sua história de vida e reflexões sobre o mundo. No último mês de setembro, durante o Terceiro Campeonato da Língua Paumari, ela me recebeu em sua casa junto com minha amiga antropóloga Karen Shiratori e a amiga e companheira de trabalho dela, Mowe Jamamadi. Foram dias de muitas conversas, trocas de experiências (inclusive sobre o aprendizado das línguas paumari e jamamadi, o bilinguismo, a escola, casamentos e relacionamentos) e de lembranças comuns. Dias marcados pela alegria, pelo carinho e pela amizade, apesar de Fátima estar cansada e preocupada com o futuro da família e de seu povo. Foi nesse contexto que gravei este depoimento.

No dia 26 de outubro de 2016, um mês depois, Fátima faleceu na cidade de Lábrea (AM), após ser transferida com urgência da aldeia com uma pneumonia que não foi diagnosticada a tempo. A publicação destas palavras fica como uma homenagem.

O depoimento foi gravado por Oiara Bonilla durante o III Campeonato da Língua Paumari, na aldeia Crispim, TI do Lago Marahã, Amazonas, em setembro de 2016. A transcrição e a tradução foram realizadas em conjunto com Edilson Rosário Paumari, professor do Programa Sou Bilíngue, Lábrea (AM).