De Povos Indígenas no Brasil

"Minhas filhas estão me chamando de semente"

por Magaró Ikpeng. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

Koré Ikpeng (esq.) e Magaro Ikpeng (dir.). Foto: Isabel Harari, 2016.
Koré Ikpeng (esq.) e Magaro Ikpeng (dir.). Foto: Isabel Harari, 2016.


O trabalho com as sementes é um trabalho que se adaptou muito fácil com as mulheres, que têm mais paciência, mais habilidade na coleta de sementes. Os homens não conseguiram porque eles não têm essa sensibilidade com essa atividade. Tem muitos tipos de sementes: tem sementes que tem aqui perto e tem semente que é muito longe. Então você tem que ir muito longe para colher ou você colhe aqui perto. Tem semente que fica nas matas ciliares, que dão na beira do rio, e tem as sementes que dão na terra firme. Eu acredito que isso deu certo para as mulheres porque a atividade da coleta é das mulheres, é para mulheres.

Quando ela acorda , sempre acorda pensando nas sementes, porque vai fazer semente . Quando está dormindo ou está deitada à noite, já pensa : "Eu vou pegar tal semente, naquele lugar" . Fica deitada, pensando... Os homens não têm isso; eles não ficam pensando nas sementes. Eles têm outras atividades, não têm esse tempo para trabalhar com as sementes. Acordo já cedo com a ideia de colher semente e, inclusive, minhas filhas estão me chamando de Semente. Tem muito tipo de semente e cada semente é um trabalho. Semente grande, você vai e pega; e se for carnosa, você tem que trabalhar ela. Se for pequena, tem que procurar e peneirar. O que não caiu, você tem que subir pra tirar. Isso que a gente faz com as sementes. A gente tem que andar no sapé , no sapezal, na mata fechada, ou na mata aberta . Cada semente é um lugar e um desafio para colher.

Aí a gente fica sabendo que a Terra vai esquentar, que a Terra vai explodir, que as pessoas vão morrer, e que a Terra está muito quente por causa das mudanças climáticas. Tudo isso todo mundo sabe. Os próprios brancos que ficam falando, contando isso, mas são os próprios brancos que também desmatam. Foi com esse objetivo que a gente começou e agora está colhendo essas sementes. Os brancos acham que só nós vamos ser impactados com os impactos que eles estão causando. Não são só os indígenas; não sou eu que vou morrer. Somos todos nós que vamos morrer. Por isso estamos falando para vocês, que respeitem o meio ambiente, porque o impacto não vem só pra mim, vem pra vocês também. A natureza mantém a temperatura, a umidade e a qualidade de vida das pessoas. Hoje, com a diminuição das matas, o Sol fica muito quente, a terra fica escassa, e a gente sentiu isso na agricultura, porque a chuva não chegou. A chuva depende da mata e, esse ano, faltou chuva, não choveu muito. A gente fez o plantio e o Sol estava tão quente que torrou todas as ramas. Atrasou a produção e aí não produziu muito mandioca. A gente ficou sem comida e isso é uma consequência muito grave das mudanças climáticas. Antes era bem frio, e agora, como não tem mais mato, vai esquentar e vai ser fácil de pegar fogo. A gente tem risco de não ter também esses recursos, sementes, que dependem da água.

Antigamente o Sol era muito baixo. Os Ikpeng antigos puxaram esse Sol e levantaram ele lá em cima, amarraram bem amarrado com corda. Quando o homem branco começou a mexer com a terra, ir lá no céu – porque homem branco gosta de mexer em tudo, né? De cavar e ir lá no céu, não sei mais onde eles vão agora, porque eles já exploraram tudo. E, se arrebentar a corda, cai, e vai matar as pessoas e o mundo se acaba. Então as mudanças climáticas estão causando essas consequências.

Semente, para mim, são as minhas coisas. Porque, das sementes, vem embira [cipó], vêm frutas pra gente comer, material para construir artesanato, algumas ervas medicinais. Para mim semente é vida, para mim semente é tudo.

Desde a criação do mundo, desde que deram os nomes para as plantas, a gente sabe que todas as plantas têm seu espírito-dono – e esse espírito - dono é que aparece lá dentro. Por isso que os antigos falavam assim “não pode comer muito murici da mata senão vai causar dor de dente”. Quando você olha em todos os frutos, pega uma fruta e vê um bichinho dentro dela, ele é o espírito-dono. A gente só procura um jeito de não fazer seleção, porque a gente não pode desrespeitar a natureza distinguindo com esses espíritos-donos, que os brancos chamam de praga. Mas não são pragas, são donos. Então a gente faz seleções, a gente procura o jeito de evitar eles – mas isso sempre vai ter.

Quando eu vou trabalhar, vou com minhas noras, minhas netas, minhas sobrinhas, minhas filhas, porque aí elas ajudam na colheita. Sou a chefe delas aqui dentro da casa, mas todas ajudam e mandam em meu nome. Então a gente é assim, né? A gente está meio dividido, mas geralmente tem uma pessoa que lidera a coleta das mulheres e todas colhem e ajudam, mandam em nome daquela pessoa, e, quando recebe o dinheiro, às vezes divide ou compra alguma coisa que vai ser útil pra todas. O dinheiro beneficia todos da casa, não só as mulheres, mas também os homens.

Eu sou uma liderança, então tenho essa responsabilidade de estar no centro, de estar nas decisões, de falar. Mas dentro da casa, também: cada um tem sua pessoa de referência, tem uma liderança de casa que lidera também o seu grupo. Eu não sou chefa das pessoas, eu sou líder delas, das mulheres. Então as mulheres decidem, falam, eu só falo o que elas decidirem.

A todas as meninas indígenas, que estudem, que aprendam, que se dediquem na sua comunidade, para lutar por seus direitos, para aprender a ser professora, ser agente de saúde, ser dentista, ser liderança na sua aldeia. E também ser liderança para representar mulheres.

Vocês têm que se valorizar, têm que se dedicar, assumir responsabilidade na aldeia de vocês, na casa de vocês, para poder ter esse diálogo, ter essa força das mulheres. Para quando chegar lá, defender de uma forma certa e não na ideia da cidade. Você foi lá e aprendeu na cidade e vai defender interesse da cidade? Não! Você tem que defender interesse da sua comunidade, da sua realidade.

As mulheres coletoras do Xingu

Equipe de edição

As mulheres coletoras do povo Ikpeng se autodenominam Yarang. O termo quer dizer "saúva" na língua ikpeng e é inspirado no movimento de recolher sementes do chão da floresta e levá-las para limpar em casa. KORÉ e MAGARÓ, que vivem no Território Indígena do Xingu (MT), são duas das 65 coletoras de sementes que fazem parte do Movimento das Mulheres Yarang. Essas mulheres começaram trabalhar na coleta, beneficiamento, organização e comercialização de sementes porque ouviam notícias trazidas por seus filhos, e pelos brancos, dos impactos do desmatamento sobre seu território. Em 2008, a partir da Campanha 'Y Ikatu Xingu, tomaram a decisão de se organizar em um movimento, para ajudar a melhorar a qualidade da água na região e gerar recursos para suas comunidades.

Os depoimentos foram gravados por Isabel Harari nas aldeias Moygu e Arayo, Território Indígena do Xingu, Mato Grosso, em 2016. A tradução foi realizada por Oreme Ikpeng.