"Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos brancos, o rastro de vocês na terra"
por Davi Kopenawa Yanomami publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2006-2010 (ISA)
Quero dar para vocês minhas palavras tal como as penso. É assim. Nós, Yanomami, habitantes da floresta, não enchemos a terra de fumaças-epidemias xawara. São os brancos, os napëpë, que contaminam a terra. Esta é minha fala. Eles não parecem se preocupar com isso, mas nós, que vivemos na floresta, sabemos dessas coisas e por isso pensamos assim. Os brancos ficaram muito numerosos e começaram a destruir a floresta, a cortar suas árvores e a sujar seus rios. Eles fabricaram quantidades de mercadorias. Fizeram carros e aviões para andar rápido. Para fabricar todas essas mercadorias, cavaram o chão da terra para arrancar as coisas que estão nas suas profundezas. Assim começaram a propagar muitas fumaças-epidemias xawara por toda parte, estragando a terra.
Por causa disso, as chuvas estão começando a cair de um modo estranho . Quando os brancos estavam longe de nós, a floresta era bonita e saudável. Desde que passaram a ser muitos e se aproximaram de nós, ela tornou-se outra. Agora ela ficou ruim, cheia de fumaça-epidemia xawara. Nós, pajés, que fazemos dançar os espíritos xapiri, cuidamos da terra-floresta, por isso a conhecemos. Não nos perguntamos como os brancos: “O que está acontecendo de repente com a Terra?” Sabemos que o que está acontecendo de ruim não é por causa de nossa marca nesse chão. Se fosse, a gente tentaria consertar logo!
O antepassado que criou esta floresta, Omama, nos criou também para cuidar dela. Ele não quis que a destruíssemos. Nós somos seus filhos e por isso não podemos estragá-la. Nós, habitantes da floresta e de suas colinas, de seus rios e de seus igarapés, que vivíamos nela inteira antes que os brancos se aproximassem, nós cuidamos dela com atenção. Os pajés estão sempre atentos ao seu bem-estar. Quando a floresta está doente, tomam o pó de yãkõana e curam seus males. Os brancos, ao contrário, parecem não querer que ela seja cuidada. São essas as palavras de sabedoria que queremos dar para vocês. Grande parte dos brancos não vai escutá-las, eu sei; não vão dizer: “Os Yanomami estão certos! Vamos parar antes que a floresta seja toda destruída!” Mesmo assim quero fazer ouvir estas palavras.
Nós Yanomami, estamos muito preocupados porque os brancos só pensam em estragar a Terra, só sabem destruir a floresta. Eles não têm amizade por ela, não a querem. Da profundeza do seu chão só arrancam coisas para fabricar suas mercadorias, depois as queimam e o mundo se enche de fumaças que viram doença xawara para todos. A floresta também adoece dessas fumaças, suas árvores morrem, bem como suas águas e seus animais. É assim que entendemos as coisas. Por isso, nós Yanomami, estamos tão inquietos. Nós perguntamos: “Por que razão os grandes homens dos brancos não falam sabiamente entre eles e continuam querendo maltratar a Terra?” Eles já têm muitas mercadorias, é suficiente! Apesar disso querem ainda tirar da terra todas estas coisas brilhantes, pedras e metais, com os quais fabricam suas coisas preciosas. É isso que preferem entre tudo; é por causa disso que destroem e sujam nossa Terra!
Eles não sabem cuidar da floresta, nem querem. Só pensam: “A floresta cresceu sozinha, sem motivo, nós somos os donos das mercadorias e vamos continuar fabricando muitas mais!” Eles cavam seu chão, cortam suas árvores e a queimam em toda parte. Depois disso, todos vocês falam do que chamam de mudança climática. Nós ouvimos essas palavras, mas não as achamos bonitas. O que vocês nomearam assim não vem do nosso rastro . Nós, habitantes da floresta, não maltratamos a Terra. Não desmatamos a floresta sem medida. Toda essa destruição não é nossa marca, é a pegada dos brancos, o rastro de vocês na terra. É isso que queremos falar. Os brancos carecem de sabedoria e não pensam muito longe.
Por isso, uma vez minhas palavras yanomami transformadas em palavras de branco no papel, escutem-nas! Vocês, jovens homens e mulheres, vocês mais velhos, escutem-nas! Depois disso pensem: “É isso! É assim que falam os Yanomami habitantes da floresta e por isso eles estão muito preocupados!” Por que estamos tão preocupados? Porque nos perguntamos: “Quando todas estas fumaças espessas dos brancos subirem até o peito do céu e os trovões começarem a morrer, o que será da floresta?” É por isso que ficamos inquietos. Não existem remédios para curar a Terra e para que ela fique boa de novo . Se vocês brancos matam a floresta, vocês não vão ser capazes de fabricar outra, nova. Quando todas essas coisas brilhantes que vocês arrancam da terra, o ouro, os diamantes, os minérios, e também as coisas de fazer fogo [combustíveis], e todas as árvores, quando tudo isso acabar, a Terra vai ficar morta.
Damos essas palavras para que abram caminho na sua frente, como advertência. Esperamos que, com elas, vocês tornem-se mais atentos, mais espertos. Vocês devem parar de maltratar a Terra. Não podem continuar destruindo-a dessa maneira desenfreada! Quem a criou vai acabar ficando com raiva. A imagem dele existe ainda, seu fantasma existe ainda no mundo. Se ele acaba se zangando, vocês vão sofrer. Grandes chuvas não vão parar de inundar suas casas, ventos de tempestade vão sacudi-las e derrubá-las, mesmo nas cidades onde elas são muito altas e resistentes. No final vão cair embaixo da terra.
Nós que vivemos nela sabemos dessas coisas da floresta. Vemos quando os dias não amanhecem bonitos e ficam cheios de fumaça. Vemos, durante a noite, quando a lua também fica enfumaçada e avermelhada. A chuva cai muito pouco. Mas, depois, na lua seguinte, de repente cai muito forte, sem parar. A floresta mostra sua raiva; de maneira súbita, ela quer secar e queimar ou se cobrir de água. Nós, pajés, devemos então trabalhar para ajudá-la e para conter sua raiva. Só quando se aquieta podemos morar nela sem perigo, nós e os brancos também. Mas se todos os pajés dos habitantes da floresta morrerem, quando os brancos comedores de terra tiverem matado todas as suas árvores e seus rios, vocês todos poderão sofrer também.
Me junto aqui com amigos brancos para fazer ouvir essas palavras aos outros napëpë cujo pensamento é cheio de vertigem para que comecem a pensar nesta coisa que vocês chamam de mudança climática. Enquanto nós, habitantes da floresta, estivermos vivos, vocês, brancos, vão amanhecer salvos em suas casas, aquecidos suavemente pelo sol, e vão poder trabalhar na luz do dia em boa saúde. Mas se acabamos todos devorados pelas fumaças-epidemias da xawara, a Terra ficará com raiva. Então, os espíritos do vento da tempestade e dos trovões vão se vingar com muita força. É assim. A mente dos brancos é muito esquecida, por isso produzem todas essas fumaças perigosas da mudança climática e nos deixam viver nessa inquietação.
Nós somos os filhos de Omama e por isso protegemos a terra que ele criou . Nossa maneira de trabalhar nela é diferente [dos brancos]. Nossos rastros na floresta a deixam bonita como ela é. Não a desmatamos à toa, deixamos suas águas limpas. Ela sempre permanece clara, cheia de caça e de peixes. São estas minhas palavras. Uma vez escritas, espero que todas as pessoas que as ouvirem possam pensar: “Sim! Assim falam os filhos dos [antigos] habitantes da floresta! Essas são suas verdadeiras palavras! Não são eles que criaram essa coisa de mudança climática, é a nossa própria pegada no chão da Terra! Nós carecemos mesmo de sabedoria!” Se assim falarem entre eles depois de ver esses desenhos de palavras, ficarei feliz. Assim foi a minha fala, acabou.
A pegada dos napëpë
por Bruce Albert, antropólogo, pesquisador do IRD-MNHN e associado ao ISA
Davi Kopenawa nasceu em meados da década de 1950, numa casa coletiva próxima à fronteira venezuelana no rio Toototobi (afluente do Alto Demini, AM). Entre 1987 e 1990, quando uma intensa corrida do ouro provocou a morte de mais de mil Yanomami no Brasil, tornou-se o principal porta-voz da causa de seu povo e um dos líderes indígenas mais conhecidos no Brasil e no mundo.
Davi já vinha lutando, desde 1983, pela demarcação das terras dos Yanomami e, durante o episódio trá- gico da invasão garimpeira, visitou vários países da Europa e os Estados Unidos em defesa do seu povo. Recebeu importantes prêmios internacionais e distinções nacionais pela sua ação em favor da proteção da Amazônia e por despertar a consciência pública sobre a importância da cultura e dos conhecimentos dos povos tradicionais da região.
Desde o fim dos anos de 1970, vive na comunidade Watoriki (Serra do Vento), no extremo nordeste do estado do Amazonas. Casado com a filha do ancião fundador da aldeia (pata thë) e seu mais antigo pajé, Davi Kopenawa é um dos líderes mais influentes da terra indígena yanomami e um xamã muito respeitado. Permanece um incansável defensor da terra e dos direitos yanomami, assim como um exigente guardião dos valores de sua cultura.
Davi Kopenawa e Bruce Albert lançaram na França, no final de 2010, o livro La chute du ciel. Paroles d 'un chaman yanomami (A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami), cuja versão em português será publicada no Brasil em 2012, pela Companhia das Letras.
O depoimento a seguir foi gravado em abril de 2011, por Marcos Wesley de Oliveira, na forma de uma mensagem a Bruce Albert – que o traduziu e editou.