De Povos Indígenas no Brasil

Mulheres mebêngôkre kayapó: conquistando novos espaços

Por Maria Beatriz N. Ribeiro, bióloga, assessora técnica do ISA e da Rede Xingu+; O-é Paiakan Kayapó, cacica da aldeia Krenhyedja, assistente social e mestranda pela UFPA; Maial Paiakan Kayapó, bacharel em Direito e mestranda pela UFPA

Texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022

"A terra é o nosso corpo, os rios são nosso sangue, as raízes das árvores são nossas veias, e as folhas são o nosso cabelo. Defender nosso território é defender nossa cultura, nossa própria vida e a vida das nossas futuras gerações"²

Em 1989, rodou o mundo a imagem de uma mulher indígena tocando com um facão o rosto do então diretor de engenharia da Eletronorte, durante o Encontro dos Povos Indígenas em Altamira, mobilização indígena histórica contra um Complexo de Hidrelétricas que afetaria de forma irreversível o Rio Xingu. Essa mulher é Tuire Kayapó, uma Mebêngôkre que, em uma plenária formada quase que exclusivamente por homens, teve a coragem de se levantar para defender o seu território e mostrar a força do Povo Kayapó. Tuire inspirou e inspira ainda hoje muitas mulheres indígenas na busca por maior protagonismo na luta por seus direitos e na defesa de seus povos, territórios, culturas e modos de vida.

Tuíre Kayapó, liderança e guerreira kayapó, confronta com um facão o diretor da Eletronorte, José Antonio Muniz, contra os projetos de construção de hidrelétricas na região do Xingu, durante o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro de 1989. Foto: Protásio Nenê / Estadão Conteúdo
Tuíre Kayapó, liderança e guerreira kayapó, confronta com um facão o diretor da Eletronorte, José Antonio Muniz, contra os projetos de construção de hidrelétricas na região do Xingu, durante o I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro de 1989. Foto: Protásio Nenê / Estadão Conteúdo

A construção do complexo hidrelétrico do Xingu foi adiada por mais de 20 anos, até que, em 2016, foi finalmente inaugurada a polêmica Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, na região da volta grande do Xingu, em Altamira. Apesar dos impactos socioambientais irreversíveis desse gigantesco empreendimento para o Rio Xingu e suas populações, os barramentos previstos que afetariam diretamente os territórios Kayapó, as UHEs Jarina e Kokraimoro, foram retirados do projeto. Isto, no entanto, não impediu que as ameaças a essas áreas aumentassem de forma significativa nas últimas décadas, com a intensificação da ocupação e degradação das áreas do entorno dos territórios Kayapó. A exploração de madeira, a contaminação dos rios por agrotóxicos e, principalmente, o garimpo vêm trazendo enormes impactos para os territórios e as comunidades Kayapó. Nos últimos anos, ameaças legislativas, como o PL 191 que pretende legalizar a mineração e outros empreendimentos em Terras Indígenas (TIs), somadas ao enfraquecimento dos órgãos de controle e fiscalização de atividades ilícitas e ao discurso do atual governo a favor da mineração e do garimpo, resultaram na explosão de atividades ilegais nessas áreas. O desmatamento no Corredor de Áreas Protegidas do Xingu entre os anos 2019 e 2021 representou cerca de 30% do total desmatado nessa região nos últimos 20 anos. Em 2021, as quatro TIs mais desmatadas da Amazônia estavam localizadas na bacia do Xingu, entre elas a TI Kayapó, território que concentra quase 95% das áreas de garimpo de todos os territórios indígenas do Corredor Xingu e está entre as TIs mais impactadas por essa atividade na Amazônia. A luta pela proteção dos territórios e dos povos indígenas se faz mais urgente do que nunca.

A luta do movimento indígena brasileiro é histórica e tem sido fundamental para a defesa e garantia de seus direitos. Nos últimos anos, frente ao governo Bolsonaro, organizações indígenas que atuam no âmbito nacional, regional e local, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), coordenações / federações regionais e associações locais, como aquelas que representam as comunidades kayapó – Associação Floresta Protegida (AFP), Instituto Kabu (IK) e Instituto Raoni (IR) – têm tomado a frente de ações e mobilizações contra as ameaças aos seus direitos e territórios originários. Antes liderado principalmente por homens, hoje o movimento indígena tem muitas mulheres como protagonistas, as quais estão ocupando lugares que antes eram ocupados majoritariamente por homens. Espaços políticos passaram a ser ocupados por lideranças mulheres, como a deputada federal Joênia Wapichana, primeira e única mulher indígena a ocupar uma cadeira no Congresso Nacional, Sônia Guajajara, coordenadora da Apib, candidata a vice-presidente do Brasil nas eleições de 2018 e eleita deputada federal pelo Estado de São Paulo nas eleições de 2022, e várias outras mulheres que estão à frente da resistência indígena. Mas, para além das lideranças mais evidentes, o movimento de mulheres indígenas no Brasil tem suas raízes nas bases, nos movimentos locais de mulheres, que crescem e se fortalecem a cada ano entre diferentes povos indígenas do Brasil. E não tem sido diferente entre as mulheres mebêngôkre kayapó.

Mulheres kayapó durante a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, setembro de 2021. Foto: Maria Beatriz Nogueira Ribeiro/ISA
Mulheres kayapó durante a II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, setembro de 2021. Foto: Maria Beatriz Nogueira Ribeiro/ISA

Tradicionalmente, as questões importantes relativas às comunidades kayapó eram debatidas pelos homens nas chamadas casas dos homens ou ngobe, localizadas no centro das aldeias. Apesar de não participarem destas reuniões, as mulheres, a partir de seus núcleos familiares, exerciam, de forma indireta, influência nas decisões tomadas. No entanto, o papel das mulheres era limitado quando se tratava da participação política externa às aldeias, especialmente na relação com os não indígenas. As dificuldades enfrentadas pelas mulheres para se ausentarem de atividades cotidianas das aldeias, a necessidade de cuidado com as crianças, o ciúme por parte dos homens, assim como a limitação imposta pela língua portuguesa, restringiram a participação das mulheres nos espaços políticos fora de seus territórios. Mas isso não impediu que as mulheres mebêngôkre, cientes de sua força, seu conhecimento sobre a realidade e as necessidades de suas comunidades e sua responsabilidade pela proteção de seus filhos e netos, tomassem a frente das lutas.

Mulheres kayapó destacam-se como lideranças

Nos últimos anos, tem sido cada vez mais frequente o surgimento de lideranças mulheres nas aldeias mebêngôkre kayapó, assim como dos parentes mebêngôkre xikrin. Muitas dessas mulheres descendem de linhagens de lideranças tradicionais e assumiram o lugar de seus pais e avôs. Entre as aldeias da TI Kayapó, há pelo menos quatro cacicas mulheres: Nrehnkãmôro Kayapó, na aldeia A’Ukre; Bekwoynhô Kayapó, na aldeia Mejkare; Pãnh-ô Kayapó, na aldeia Ngôjamrôti; e O-é Paiakan, na aldeia Krenhyedja. Na TI Las Casas, há três cacicas: Tuire Kayapó, da aldeia Irã-Amraire; Ôyprã Kayapó, na aldeia Tekrejarotire; e Ôkamrek Kayapó, na aldeia Ronekôre. Na TI Menkragnoti, a aldeia Mekragnotire velha é liderada pela cacica Kokoba Mekragnotire. Na TI Capoto/Jarina, Mayalu Txukarramãe está à frente de diversas iniciativas do Instituto Raoni, e Kokonã Metuktire foi recentemente indicada por seu pai, o Cacique Raoni Metuktire, como uma nova liderança entre mulheres daquela região. Entre as parentes xikrin, a cacica Kokoti Xikrin foi empossada recentemente para liderar a aldeia Krimej, na TI Xikrin do Cateté, enquanto, na TI Xikrin do Bacajá, Ngrenhkarati Xikrin está à frente das iniciativas relacionadas às mulheres da Organização Indígena do Povo Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá (Abex).

As mulheres kayapó também têm se destacado na luta do movimento indígena brasileiro, para além de seus territórios. Tuire Kayapó continua, ainda hoje, na linha de frente da luta pelos direitos originários dos povos indígenas, participando de mobilizações e articulações em nível nacional, tanto junto aos homens quanto junto às lideranças kayapó mulheres dos territórios. A participação das mulheres kayapó em reuniões externas, encontros e mobilizações têm aumentado gradativamente, embora a grande maioria dos representantes dos territórios kayapó ainda sejam homens. A Marcha das Mulheres, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), tem representado uma oportunidade das lideranças kayapó mulheres se reunirem, se articularem com mulheres de outros territórios, se empoderarem e se manifestarem pela defesa de seus direitos. A última marcha das mulheres, que aconteceu em Brasília em 2021, contou com a presença de mais de 100 mulheres das diferentes Terras Indígenas do povo Kayapó.

I Encontro de Mulheres Mebêngôkre da Associação Floresta Protegida – Mẽnire Tỳj, julho de 2022. Foto: Maria Beatriz Nogueira Ribeiro/ISA
I Encontro de Mulheres Mebêngôkre da Associação Floresta Protegida – Mẽnire Tỳj, julho de 2022. Foto: Maria Beatriz Nogueira Ribeiro/ISA


Recentemente, algumas lideranças mulheres jovens estão tomando a frente na luta pelos direitos, em especial aquelas que dominam a língua portuguesa e tiveram a oportunidade de estudar fora das aldeias, ingressando em faculdades e em cursos de pós-graduação. Essas mulheres enfrentaram o choque cultural de viverem suas infâncias e/ou adolescências na cidade, longe do convívio cultural de suas famílias e de sua aldeia, o preconceito e as barreiras impostas por serem mulheres, pela sua língua materna e por serem indígenas em cidades com históricos de conflitos com seu povo. Porém, hoje, têm assumido um importante papel de interlocução do povo Kayapó com a sociedade não indígena, levando as preocupações e reivindicações de seu povo para a sociedade brasileira e internacional e trazendo de volta às suas bases informações essenciais sobre as ameaças e oportunidades para seus territórios e comunidades.

Entre as jovens lideranças mulheres, destacam-se as filhas da liderança Paulinho Paiakan e de sua esposa Irekran: O-é, Tânia e Maial Paiakan Kayapó, que desde meninas estudaram na cidade, contra a vontade de seus familiares, porém com o incentivo de seu pai – segundo o qual o estudo era uma ferramenta de luta e respeito na sociedade kuben. O-é se formou em Serviço Social, atuou na saúde indígena pelo Dsei Kayapó do Pará e na Associação Floresta Protegida (AFP) e, hoje é mestranda em Sociologia e Antropologia e cacica da aldeia Krenhyedja, sendo uma respeitada liderança entre os Kayapó. Tânia se formou em Biomedicina, trabalhou na área de saúde indígena e hoje atua no Instituto Paiakan. E Maial estudou Direito e hoje é mestranda na mesma área, sendo a primeira Kayapó a se candidatar a deputada federal.

Mayalu Txukarramãe é também uma voz feminina poderosa entre os Kayapó. Filha de Megaron Txukarramãe e de Kamirrã Waura, e neta de Raoni Metuktire, é uma mulher atuante e respeitada entre seu povo. Criada na cidade quando seu pai era administrador regional da Funai em Colíder (MT), é formada em Geografia, fundadora do Movimento Mebêngokrê Nyre e hoje atua como técnica do Instituto Raoni. Além das lideranças, outras mulheres jovens estão assumindo papeis importantes, como é o caso das cineastas Nhakmô Kayapó e Paikako Panhprin, que fazem parte da Rede de Comunicadores Indígenas e Ribeirinhos da Rede Xingu+, e de jovens mulheres kayapó que têm atuado na área da saúde indígena, como Irepoiti Metuktire e Kokoté Kayapó.

Nos últimos anos, algumas dessas lideranças mulheres Kayapó têm participado de reuniões e encontros de coletivos de mulheres de outros povos ou organizações indígenas, em âmbito nacional e internacional. O conhecimento que têm adquirido através destes intercâmbios tem contribuído para a constituição de um coletivo de mulheres mebêngôkre.

Em julho de 2022, as mulheres mebêngôkre das TIs Kayapó, Menkragnoti e Las Casas, assim como das TIs Xikrin do Cateté e Xikrin do Bacajá, se reuniram no I Encontro de Mulheres Mebêngôkre (Mẽnire Tỳj), apoiado pela AFP. Durante o encontro, as mulheres reafirmaram a importância de se unirem para ocupar os espaços de decisões antes ocupados predominantemente pelos homens e superar os conflitos e diferenças entre as aldeias kayapó, para juntas, cuidarem de seus territórios, sua cultura e de seus filhos e netos. O próximo encontro de mulheres kayapó reunirá, além de representantes das aldeias associadas à AFP, representantes das aldeias das TIs Baú, Menkragnoti e Capoto/Jarina, associadas aos Institutos Raoni e Kabu, assim como de mulheres do povo Panará. Assim como em outros territórios do Xingu, da Amazônia e do Brasil, o movimento das menire mebêngôkre veio para ficar e se fortalece a cada dia. (agosto, 2022)

Notas

¹ Agradecemos a Tânia Paiakan Kayapó, do Instituto Paiakan; Willianne Maior, da Associação Floresta Protegida; Sol Gonzales, do Instituto Raoni; Junio Esllei, do Instituto Kabu; e Thaís Mantovanelli, do Instituto Socioambiental, pelas informações fornecidas para a elaboração deste artigo.

² Trecho da Carta Aberta Das Mulheres Mebêngôkre – I Encontro de Mulheres Mebêngôkre da AFP – Mẽnire Tỳj