De Povos Indígenas no Brasil
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Anchieta, o santo do pau oco
06/04/2014
Autor: José Ribamar Bessa Freire
Fonte: Diário do Amazonas - http://blogs.d24am.com
Não consigo me alegrar com a canonização de Anchieta decretada na quinta-feira pelo Papa Francisco. Enquanto a cerimônia era celebrada lá no Vaticano, aqui no Brasil os sinos das igrejas bimbalhavam festivamente, sem que as badaladas tocassem meu coração. Bem que me esforcei para compartilhar o júbilo de meus compatriotas com "o terceiro santo do Brasil". Inutilmente. É angustiante ficar excluído da comunhão nacional. Aconteceu comigo na morte de Tancredo Neves. O Brasil inteiro em prantos e eu, de olhos secos. Só chorei na morte de Ulisses Guimarães.
Mas por que não festejar o novo santo? Porque lembrei que ele é do pau oco. A expressão é usada aqui como metáfora, sem objetivo de desrespeitar a fé de ninguém. Acontece que para alguém ser declarado santo, é preciso comprovar pelo menos dois milagres, Anchieta foi dispensado disso pelo 'poder de chave' do Papa que usou o sensus fidelis, isto é, o sentimento dos fiéis, entre os quais estão minhas nove irmãs. No entanto, não é por falta de milagre que ele é do pau oco. Afinal, a sabedoria popular sabe que santo de casa não faz milagre. É por causa do contrabando, do que está escondido.
Santo do pau oco - nos ensina Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro - se refere às "imagens de santos, esculpidas em madeira, que eram ocas e vinham de Portugal cheias de dinheiro falso". Essas estátuas, de diversos tamanhos, serviam também para contrabandear ouro e pedras preciosas. Como o poder da religião era incomensurável, os fiscais não tinham coragem de abrir o santo para checar o que havia dentro. Se é assim, cabe perguntar: qual é o contrabando trazido de Roma com a canonização de Anchieta? Trata-se de um contrabando ideológico
Devagar com o andor
É preciso abrir a imagem do novo santo, onde se encontram muitos valores falsos contrabandeados. O padre Valeriano Costa, diretor da Faculdade de Teologia da PUC/SP, definiu muito bem que a canonização "é uma grande oportunidade para a Igreja cultuar esse santo e se lembrar de alguns dos valores que pregava", entre eles o trabalho missionário de catequização, conversão e civilização de povos indígenas.
Essa ideia de que a canonização é um reconhecimento do trabalho missionário é reforçada pelo historiador Gabriel Bittencourt, autor de um livro sobre Anchieta, citado na matéria assinada por Tiago Dantas e Jaqueline Falcão. Ele afirma que Anchieta foi "um homem que soube lidar de forma diplomática com os índios, aprendeu o tupi-guarani, escreveu a primeira gramática da língua e estudou as crenças para montar peças teatrais que ajudassem os nativos a entender as lições de catecismo". (O Globo, 04/04/14).
Epa! Devagar com o andor. É controvertida a afirmação de que ele usou sempre meios diplomáticos. O jornal Porantim (agosto 1980), editado em Manaus, publicou várias cartas de Anchieta, onde ele trata os Tupinambá como "inimigos carniceiros" e descreve conflitos com os índios aliados dos franceses. O jesuíta se rejubila por haver dividido os índios:
"E foi coisa maravilhosa que se encontravam a flechadas irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios e mais ainda dois filhos que eram cristãos e estavam do nosso lado contra seu pai que estava contra nós".
Numa nota, o Porantim, depois de comparar Anchieta com o dominicano Bartolomeu De Las Casas, avalia que "é muito difícil afirmar que ele rompeu com o sistema colonial".
O notável trabalho de linguista de Anchieta também serviu não para reconhecer as culturas e valores indígenas, mas para usar a língua indígena como veículo de outros valores, adequando o léxico tupi para construir um universo de conceitos que negavam e satanizavam as religiões locais.
O santo é de barro
Se a canonização de Anchieta serve para fazer a apologia da catequese, sem qualquer visão crítica sobre suas consequências para os povos que aqui viviam, então estamos mesmo diante de um contrabando de moedas falsas. O catolicismo guerreiro, arrogante, só admitia um caminho para Deus: o de Roma. As religiões indígenas foram desprezadas, perseguidas, extirpadas a ferro e fogo.
Outro jesuíta, o padre Antônio Vieira, defendeu a transformação do "índio bárbaro" através da catequese. O missionário era o escultor que daria feições humanas aos índios:
- É uma pedra, como dizeis, o índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele. Aplicai o cinzel um dia e outro dia; dai uma martelada e outra martelada e vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem senão um cristão e pode ser um santo - escreveu Vieira.
Apesar da quantidade massiva de mártires indígenas, não se tem notícias de nenhum deles declarado santo, oficialmente reconhecido pela Igreja, mas o barulho de algumas "marteladas" chegaram até os dias de hoje, com notícias sobre as violências cometidas contra os índios, cujas religiões eram consideradas como "superstições".
Outro jesuíta, João Daniel, que viveu 16 anos na Amazônia (1741 a 1757) e escreveu um excelente relato de suas andanças, fez um balanço da catequese, que nos permite questionar a santidade de seus agentes. Apesar dos castigos corporais sistemáticos, "a religião ficou pouco intrinsicada no coração dos índios", com uma "fé morta no uso das cousas sagradas e na pouca reverência aos sacramentos". Segundo ele, os índios gostavam muito de medalhas, de verônicas, de escapulários, mas não era por respeito e devoção" e sim para "com elas enfeitar os seus macacos e cachorrinhos, atando-lhes ao pescoço".
http://blogs.d24am.com/taquiprati/2014/04/06/anchieta-o-santo-do-pau-oco/
Mas por que não festejar o novo santo? Porque lembrei que ele é do pau oco. A expressão é usada aqui como metáfora, sem objetivo de desrespeitar a fé de ninguém. Acontece que para alguém ser declarado santo, é preciso comprovar pelo menos dois milagres, Anchieta foi dispensado disso pelo 'poder de chave' do Papa que usou o sensus fidelis, isto é, o sentimento dos fiéis, entre os quais estão minhas nove irmãs. No entanto, não é por falta de milagre que ele é do pau oco. Afinal, a sabedoria popular sabe que santo de casa não faz milagre. É por causa do contrabando, do que está escondido.
Santo do pau oco - nos ensina Câmara Cascudo em seu Dicionário do Folclore Brasileiro - se refere às "imagens de santos, esculpidas em madeira, que eram ocas e vinham de Portugal cheias de dinheiro falso". Essas estátuas, de diversos tamanhos, serviam também para contrabandear ouro e pedras preciosas. Como o poder da religião era incomensurável, os fiscais não tinham coragem de abrir o santo para checar o que havia dentro. Se é assim, cabe perguntar: qual é o contrabando trazido de Roma com a canonização de Anchieta? Trata-se de um contrabando ideológico
Devagar com o andor
É preciso abrir a imagem do novo santo, onde se encontram muitos valores falsos contrabandeados. O padre Valeriano Costa, diretor da Faculdade de Teologia da PUC/SP, definiu muito bem que a canonização "é uma grande oportunidade para a Igreja cultuar esse santo e se lembrar de alguns dos valores que pregava", entre eles o trabalho missionário de catequização, conversão e civilização de povos indígenas.
Essa ideia de que a canonização é um reconhecimento do trabalho missionário é reforçada pelo historiador Gabriel Bittencourt, autor de um livro sobre Anchieta, citado na matéria assinada por Tiago Dantas e Jaqueline Falcão. Ele afirma que Anchieta foi "um homem que soube lidar de forma diplomática com os índios, aprendeu o tupi-guarani, escreveu a primeira gramática da língua e estudou as crenças para montar peças teatrais que ajudassem os nativos a entender as lições de catecismo". (O Globo, 04/04/14).
Epa! Devagar com o andor. É controvertida a afirmação de que ele usou sempre meios diplomáticos. O jornal Porantim (agosto 1980), editado em Manaus, publicou várias cartas de Anchieta, onde ele trata os Tupinambá como "inimigos carniceiros" e descreve conflitos com os índios aliados dos franceses. O jesuíta se rejubila por haver dividido os índios:
"E foi coisa maravilhosa que se encontravam a flechadas irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios e mais ainda dois filhos que eram cristãos e estavam do nosso lado contra seu pai que estava contra nós".
Numa nota, o Porantim, depois de comparar Anchieta com o dominicano Bartolomeu De Las Casas, avalia que "é muito difícil afirmar que ele rompeu com o sistema colonial".
O notável trabalho de linguista de Anchieta também serviu não para reconhecer as culturas e valores indígenas, mas para usar a língua indígena como veículo de outros valores, adequando o léxico tupi para construir um universo de conceitos que negavam e satanizavam as religiões locais.
O santo é de barro
Se a canonização de Anchieta serve para fazer a apologia da catequese, sem qualquer visão crítica sobre suas consequências para os povos que aqui viviam, então estamos mesmo diante de um contrabando de moedas falsas. O catolicismo guerreiro, arrogante, só admitia um caminho para Deus: o de Roma. As religiões indígenas foram desprezadas, perseguidas, extirpadas a ferro e fogo.
Outro jesuíta, o padre Antônio Vieira, defendeu a transformação do "índio bárbaro" através da catequese. O missionário era o escultor que daria feições humanas aos índios:
- É uma pedra, como dizeis, o índio rude? Pois trabalhai e continuai com ele. Aplicai o cinzel um dia e outro dia; dai uma martelada e outra martelada e vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem senão um cristão e pode ser um santo - escreveu Vieira.
Apesar da quantidade massiva de mártires indígenas, não se tem notícias de nenhum deles declarado santo, oficialmente reconhecido pela Igreja, mas o barulho de algumas "marteladas" chegaram até os dias de hoje, com notícias sobre as violências cometidas contra os índios, cujas religiões eram consideradas como "superstições".
Outro jesuíta, João Daniel, que viveu 16 anos na Amazônia (1741 a 1757) e escreveu um excelente relato de suas andanças, fez um balanço da catequese, que nos permite questionar a santidade de seus agentes. Apesar dos castigos corporais sistemáticos, "a religião ficou pouco intrinsicada no coração dos índios", com uma "fé morta no uso das cousas sagradas e na pouca reverência aos sacramentos". Segundo ele, os índios gostavam muito de medalhas, de verônicas, de escapulários, mas não era por respeito e devoção" e sim para "com elas enfeitar os seus macacos e cachorrinhos, atando-lhes ao pescoço".
http://blogs.d24am.com/taquiprati/2014/04/06/anchieta-o-santo-do-pau-oco/
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