De Povos Indígenas no Brasil
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Notícias
Paradoxo desnecessário: a crise energética no estado de Roraima e a questão indígena
27/05/2019
Autor: PEREIRA, André Paulo dos Santos
Fonte: Consultor Jurídico - https://www.conjur.com.br
Paradoxo desnecessário: a crise energética no estado de Roraima e a questão indígena
27 de maio de 2019, 12h43
Por André Paulo dos Santos Pereira
Situado no extremo norte do país, Roraima é o único estado do Brasil que ainda não faz parte do Sistema Interligado Nacional (SIN) e depende da energia elétrica fornecida pela Venezuela, através do Linhão de Guri. O caos institucional naquele país aqui também cobra sua fatura, e em 2018 houve, no estado, 85 blecautes, sendo 72 deles através de falhas no Linhão de Guri[1]. No início deste ano, o fornecimento energético venezuelano foi suspenso, e a demanda estadual vem sendo suprida por quatro usinas termelétricas que consomem 1 milhão de litros de óleo diesel por dia, ao custo diário de R$ 3,5 milhões[2]. Em 2018, as falhas no fornecimento energético venezuelano em Roraima custaram ao Brasil R$ 597 milhões[3]. Recentemente, o governo brasileiro iniciou tratativas com o regime de Maduro para tentar restabelecer o envio de energia do Linhão de Guri para Roraima[4].
Para resolver o problema de forma definitiva, há a construção do Linhão de Tucuruí, entre Manaus e Boa Vista, que interligará o sistema roraimense ao restante do país. Entretanto, esse linhão entre ambos os estados, de 715 km, atravessará a Terra Indígena Waimiri-Atroari, por aproximadamente 120 km, fato que vem gerando polêmica entre setores governamentais e defensores dos direitos dos indígenas.
Em fevereiro deste ano, o Conselho de Defesa Nacional caracterizou o linhão Manaus-Boa Vista como alternativa energética estratégica para soberania e defesa nacional, o que, na prática, permite ao governo federal aplicar a salvaguarda "V" definida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da PET 3.388/RR[5], isto é, que o usufruto dos índios não se sobrepõe à defesa nacional e permite, dentre outras ações, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai[6].
A ideia é a aceleração do processo de licenciamento e início das obras, como resultado de um esforço estratégico nacional, o que é imprescindível ao estado de Roraima e estratégico ao país. A questão que se coloca é a possibilidade jurídica de imposição da construção do Linhão de Tucuruí sem a anuência do povo indígena Waimiri-Atroari ou ainda que haja oposição.
Cabem aqui parênteses: este mesmo povo indígena sofreu um massacre durante a ditadura militar. Em nome do Plano de Integração Nacional decretado pelo general Emilio Garrastazu Medici, ocorreram bombardeios, chacinas e destruição de locais sagrados, para viabilizar três grandes projetos na região: a abertura da BR-174, a construção da hidrelétrica de Balbina e a atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas em seu território[7]. Segundo a Funai, a população Waimiri-Atroari era de 3 mil pessoas em 1972 e foi reduzida para apenas 350 sobreviventes em 1983; hoje, há aproximadamente 2 mil pessoas[8]. Portanto, é compreensível o temor de obras de infraestrutura que atravessem a terra indígena Waimiri-Atroari impondo-se coercitivamente, e a triste lição histórica nos ensina o que deve ser evitado.
Em tempos de modelos jurídicos dialógicos, não cabe mais o exercício do "poder de império" unilateral e coercitivo. Uma democracia moderna e consolidada pressupõe uma via de mão dupla com o cidadão e respeito ao pluralismo como um valor constitucional.
A Constituição Federal, em seu artigo 231, estabelece parâmetros de respeito aos direitos indígenas que se harmonizam com as modernas declarações de direitos internacionais. O artigo 6o da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais[9] estabelece a necessidade de "consulta aos povos interessados" quando medidas legislativas ou administrativas possam afetá-los, a serem efetuadas com boa-fé, tendo por escopo "se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas".
Da mesma forma, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em seu artigo 19, fala que "os Estados celebrarão consultas" para obter o "consentimento prévio, livre e informado" dos povos indígenas. O mesmo direito à consulta é mencionado no artigo XXIII da Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização dos Estados Americanos.
Logo, longe de ser uma questão meramente burocrática, o direito à consulta é essencial no respeito aos índios, posto que permite a busca de soluções negociadas, pacíficas e respeitosas acerca de medidas que os afetem.
Em entrevista ao Instituto Socioambiental, disse o indígena Tuwdja Atroari: "Nós não somos contra o linhão. Queremos estudar juntos, para que não fique ruim para o índio, o branco, o governo. Temos de ter uma parceria para que o resultado seja positivo para nosso lado"[10].
O Ministério Público de Roraima, através do seu Grupo de Atuação Especial de Minorias e Direitos Humanos, estabeleceu um diálogo com as lideranças Waimiri-Atroari, a pedido dos próprios índios, que querem ajuda na intermediação com a empresa concessionária e o governo federal, a respeito da construção do Linhão de Tucuruí[11]. No encontro, os indígenas "definiram que vão aguardar a apresentação do Plano Básico Ambiental por parte do consórcio que venceu a licitação para construir o Linhão. O documento deve descrever o impacto ambiental que a obra vai causar na região", diz notícia do jornal Folha de Boa Vista[12].
O estado de Roraima necessita ser interligado ao SIN para não mais depender da (instável) energia elétrica venezuelana nem da (cara) energia produzida pelas termelétricas, e isso passa, necessariamente, pela construção do Linhão de Tucuruí. Mas, ao contrário do que se pensa, não há escolha paradoxal entre o desenvolvimento regional e os direitos indígenas, mas possibilidade de congruência dialógica.
Para tanto, é preciso um olhar para trás, a fim de se evitar a repetição de erros históricos. É preciso um olhar para frente, em busca de soluções consultadas, negociadas e compartilhadas com os Waimiri-Atroari. Assim, avançaremos não apenas em infraestrutura, mas em respeito ao pluralismo e aos direitos dos nossos povos indígenas.
[1] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[2] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[3] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[4] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[5] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[6] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[7] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[8] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[9] Promulgada no Brasil através do Decreto 5.051 de 19 de abril de 2004.
[10] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[11] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[12] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
https://www.conjur.com.br/2019-mai-27/mp-debate-crise-energetica-estado-roraima-questao-indigena#_ftn10
27 de maio de 2019, 12h43
Por André Paulo dos Santos Pereira
Situado no extremo norte do país, Roraima é o único estado do Brasil que ainda não faz parte do Sistema Interligado Nacional (SIN) e depende da energia elétrica fornecida pela Venezuela, através do Linhão de Guri. O caos institucional naquele país aqui também cobra sua fatura, e em 2018 houve, no estado, 85 blecautes, sendo 72 deles através de falhas no Linhão de Guri[1]. No início deste ano, o fornecimento energético venezuelano foi suspenso, e a demanda estadual vem sendo suprida por quatro usinas termelétricas que consomem 1 milhão de litros de óleo diesel por dia, ao custo diário de R$ 3,5 milhões[2]. Em 2018, as falhas no fornecimento energético venezuelano em Roraima custaram ao Brasil R$ 597 milhões[3]. Recentemente, o governo brasileiro iniciou tratativas com o regime de Maduro para tentar restabelecer o envio de energia do Linhão de Guri para Roraima[4].
Para resolver o problema de forma definitiva, há a construção do Linhão de Tucuruí, entre Manaus e Boa Vista, que interligará o sistema roraimense ao restante do país. Entretanto, esse linhão entre ambos os estados, de 715 km, atravessará a Terra Indígena Waimiri-Atroari, por aproximadamente 120 km, fato que vem gerando polêmica entre setores governamentais e defensores dos direitos dos indígenas.
Em fevereiro deste ano, o Conselho de Defesa Nacional caracterizou o linhão Manaus-Boa Vista como alternativa energética estratégica para soberania e defesa nacional, o que, na prática, permite ao governo federal aplicar a salvaguarda "V" definida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da PET 3.388/RR[5], isto é, que o usufruto dos índios não se sobrepõe à defesa nacional e permite, dentre outras ações, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico, independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Funai[6].
A ideia é a aceleração do processo de licenciamento e início das obras, como resultado de um esforço estratégico nacional, o que é imprescindível ao estado de Roraima e estratégico ao país. A questão que se coloca é a possibilidade jurídica de imposição da construção do Linhão de Tucuruí sem a anuência do povo indígena Waimiri-Atroari ou ainda que haja oposição.
Cabem aqui parênteses: este mesmo povo indígena sofreu um massacre durante a ditadura militar. Em nome do Plano de Integração Nacional decretado pelo general Emilio Garrastazu Medici, ocorreram bombardeios, chacinas e destruição de locais sagrados, para viabilizar três grandes projetos na região: a abertura da BR-174, a construção da hidrelétrica de Balbina e a atuação de mineradoras e garimpeiros interessados em explorar as jazidas em seu território[7]. Segundo a Funai, a população Waimiri-Atroari era de 3 mil pessoas em 1972 e foi reduzida para apenas 350 sobreviventes em 1983; hoje, há aproximadamente 2 mil pessoas[8]. Portanto, é compreensível o temor de obras de infraestrutura que atravessem a terra indígena Waimiri-Atroari impondo-se coercitivamente, e a triste lição histórica nos ensina o que deve ser evitado.
Em tempos de modelos jurídicos dialógicos, não cabe mais o exercício do "poder de império" unilateral e coercitivo. Uma democracia moderna e consolidada pressupõe uma via de mão dupla com o cidadão e respeito ao pluralismo como um valor constitucional.
A Constituição Federal, em seu artigo 231, estabelece parâmetros de respeito aos direitos indígenas que se harmonizam com as modernas declarações de direitos internacionais. O artigo 6o da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais[9] estabelece a necessidade de "consulta aos povos interessados" quando medidas legislativas ou administrativas possam afetá-los, a serem efetuadas com boa-fé, tendo por escopo "se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas".
Da mesma forma, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em seu artigo 19, fala que "os Estados celebrarão consultas" para obter o "consentimento prévio, livre e informado" dos povos indígenas. O mesmo direito à consulta é mencionado no artigo XXIII da Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização dos Estados Americanos.
Logo, longe de ser uma questão meramente burocrática, o direito à consulta é essencial no respeito aos índios, posto que permite a busca de soluções negociadas, pacíficas e respeitosas acerca de medidas que os afetem.
Em entrevista ao Instituto Socioambiental, disse o indígena Tuwdja Atroari: "Nós não somos contra o linhão. Queremos estudar juntos, para que não fique ruim para o índio, o branco, o governo. Temos de ter uma parceria para que o resultado seja positivo para nosso lado"[10].
O Ministério Público de Roraima, através do seu Grupo de Atuação Especial de Minorias e Direitos Humanos, estabeleceu um diálogo com as lideranças Waimiri-Atroari, a pedido dos próprios índios, que querem ajuda na intermediação com a empresa concessionária e o governo federal, a respeito da construção do Linhão de Tucuruí[11]. No encontro, os indígenas "definiram que vão aguardar a apresentação do Plano Básico Ambiental por parte do consórcio que venceu a licitação para construir o Linhão. O documento deve descrever o impacto ambiental que a obra vai causar na região", diz notícia do jornal Folha de Boa Vista[12].
O estado de Roraima necessita ser interligado ao SIN para não mais depender da (instável) energia elétrica venezuelana nem da (cara) energia produzida pelas termelétricas, e isso passa, necessariamente, pela construção do Linhão de Tucuruí. Mas, ao contrário do que se pensa, não há escolha paradoxal entre o desenvolvimento regional e os direitos indígenas, mas possibilidade de congruência dialógica.
Para tanto, é preciso um olhar para trás, a fim de se evitar a repetição de erros históricos. É preciso um olhar para frente, em busca de soluções consultadas, negociadas e compartilhadas com os Waimiri-Atroari. Assim, avançaremos não apenas em infraestrutura, mas em respeito ao pluralismo e aos direitos dos nossos povos indígenas.
[1] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[2] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[3] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[4] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[5] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[6] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[7] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[8] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[9] Promulgada no Brasil através do Decreto 5.051 de 19 de abril de 2004.
[10] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[11] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
[12] Disponível em , acessado em 26/6/2019.
https://www.conjur.com.br/2019-mai-27/mp-debate-crise-energetica-estado-roraima-questao-indigena#_ftn10
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