De Povos Indígenas no Brasil
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Notícias
Falta de titulação das terras ameaça Quilombo Brejão dos Negros, a proteção ambiental e o arroz agroecológico
27/08/2025
Autor: Cristian Góes, Valter Davi, Bruno Costa
Fonte: Mangue Jornalismo - https://manguejornalismo.org/
Falta de titulação das terras ameaça Quilombo Brejão dos Negros, a proteção ambiental e o arroz agroecológico
Esta é a terceira reportagem da Mangue Jornalismo sobre a Série Brejão, quilombo de reexistência. A primeira foi conduzida por dona Marília e as histórias de luta no território. A segunda mostrou que, depois do reconhecimento oficial, o quilombo se tornou exemplo na produção de arroz agroecológico. A reportagem de hoje denuncia que, mesmo com essa conquista, os quilombolas vivem ameaçados, vítimas de crimes socioambientais, e tudo isso porque o Governo Lula ainda não titulou as terras do quilombo.
Leia a primeira reportagem em: "O medo é do tamanho que a gente faz". A história de luta na Resina no Quilombo Brejão dos Negros por dona Marília
Leia a segunda reportagem em: Arroz agroecológico Velho Chico promove revolução socioambiental no Quilombo Brejão dos Negros
Uma luta que parece não ter fim. O próximo 20 de novembro - data especial para o Dia da Consciência Negra - marca os dois anos que os 8 mil hectares do Território Quilombola Brejão dos Negros foram reconhecidos pelo Governo Federal. A publicação no Diário Oficial da União da Portaria no 234/2023 foi motivo de festa, mas não de paz, pelo contrário.
Sem o último ato do processo - que é o decreto de titulação das terras - os quilombolas das comunidades da Resina, Santa Cruz, Brejão, Carapitanga e Brejo Grande passaram a sofrer mais ameaças de fazendeiros, carcinicultores, empresas petrolíferas e mineradoras.
"A realidade é que tem ocorrido uma mobilização de forças econômicas e políticas poderosas para impedir que o presidente Lula titule nosso território. Só isso explica essa demora em tomar a decisão", avalia Maria Izaltina, uma das lideranças em Santa Cruz. "Não ter a posse definitiva mostra o racismo dentro do Estado e o poder de influência dos fazendeiros. Não ter a titulação intensifica conflitos com os grandes empreendimentos aumentando a degradação da natureza", reforça Magno de Jesus, também da Santa Cruz.
A luta formal pelo direito de existir do Território Quilombola Brejão dos Negros faz mais de 20 anos, com registros de muitos casos de perseguições, ameaças de morte e violentos ataques ao meio ambiente. A área é privilegiada, plana, fértil, protegida por manguezais e lagoas, banhada pelo São Francisco, bem na foz, e apenas a 115km de Aracaju, capital.
Apesar de uma área muito rica, a maioria de seus moradores vivia na escravização, na miséria quase absoluta, a maioria trabalhando para pagar dívidas injustificáveis em fazendas, sem direito às terras, às águas, à vida. "Historicamente, a gente só trabalhou para enriquecer os outros, para formar o filho do fazendeiro como advogado, juiz, promotor, e o nosso ainda vive na situação de pobreza", afirma Eneias Rosa, liderança na Resina.
O fato é que, graças ao reconhecimento, organização e consciência, os quilombolas em Brejão dos Negros tornaram-se guardiões das matas e dos rios, dos manguezais e das lagoas, buscando uma convivência integrada com a natureza, com uso de manejos agroecológicos, dando uma contribuição vital no combate aos efeitos da emergência climática. Uma luta que é animada e fortalecida com organizações solidárias, como a Cáritas Arquidiocesana (Nordeste 3), ligada à Igreja Católica, a Rede Balaio de Solidariedade, o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) e outras.
Nos últimos anos, o território quilombola chamou atenção por sua produção de arroz agroecológico, sem contar outros produtos da agricultura familiar, além de uma viva cultura ancestral. "A história desse quilombo é muito bonita, história de resistência, de um povo trabalhador, mas que sempre sofreu com o coronelismo, com os mandatários da região e com os interesses do grande capital", disse Antônio Bonfim, liderança em Santa Cruz.
Além de retomar a cultura coletiva ancestral, as lideranças do território buscam sempre denunciar as ameaças e agressões, principalmente contra o meio ambiente. Por exemplo, em maio de 2023, a Mangue Jornalismo publicou uma reportagem revelando que os quilombolas de Brejão dos Negros conseguiram a condenação de um criador de camarão por destruir o manguezal. Nessa ação do MPF/SE, o Governo de Sergipe também foi condenado por conceder licença ambiental irregular.
Os quilombolas também desenvolvem dois pequenos projetos de reflorestamento do manguezal, um ecossistema fortemente atacado pela ação imobiliária e pela criação de camarões. Entretanto, os projetos são bem pequenos diante do tamanho da devastação. Apesar da resistência e do apoio de várias organizações, a demora do Governo Federal em titular as terras tem provocado mais agressões socioambientais naquela área.
"É um jogo de empurra-empurra. Dizem que o processo está no Incra, em Brasília, depois que foi para Casa Civil e até agora nada de decreto. Dois anos nisso. Soubemos que tem um grupo de fazendeiros e seus políticos tentando anular a portaria de reconhecimento. Já se tentou fazer isso no Governo Bolsonaro, inventaram mentiras e ainda continuam fazendo isso. Temos toda documentação em dia, laudos antropológicos, tudo certinho. Não falta nada e não sei porque Lula está demorando tanto", diz Izaltina.
Da carcinicultura à mineração no quilombo
Os problemas pela falta de titulação das terras são grandes e graves no Território Quilombola Brejão dos Negros. Um deles é o avanço da criação de camarões em viveiros. "Está cada vez pior, aumentando, empresas que entram aqui e a gente não sabe quem é e fazem cercas, colocam cadeados, contratam jagunços, abrem estradas, levantam muros de alvenaria no mangue, entram com máquinas e destroem o manguezal, tudo para criação predatória de camarão", denuncia Antônio Bonfim.
Para Izaltina, o avanço da destruição do manguezal e de toda área ao redor para construção dos tanques de carcinicultura é resultado da lentidão do governo em não titular as terras. "Quanto mais tempo passa, mais eles invadem nosso território, fazendo barreiras, impedindo o acesso a áreas coletivas. A gente só vê passando caçambas e mais caçambas para dentro do manguezal", conta Bonfim.
Os quilombolas acreditam que há uma estratégia de fazendeiros, empresas e políticos em implantar estruturas ilegais na área para quando sair a titulação eles possam receber indenizações milionárias.
A expansão ilegal dos tanques de carcinicultura no quilombo e em área de preservação ambiental permanente implica desmatar e envenenar os manguezais, que são berçários da natureza. Para matar plantas e fazer o camarão crescer mais rápido, jogam-se venenos. "É no manguezal que várias espécies de peixes, caranguejos, siris, aratus, sururus, camarões nascem e se desenvolvem. Essas vidas convivem com a gente, nos alimentam e geram renda. Somos um povo que precisa do mangue vivo e saudável", afirma Eneias.
Antônio Bonfim reforça que a falta de titulação da área está produzindo a devastação do manguezal, um ataque de morte ao quilombo, porque "o mangue é energia, é ancestralidade, é orixá, é sustentabilidade, é vida. O manguezal é nossa mãe, nossa maior fonte de renda, nele catamos o caranguejo, guaiamum, os mariscos. A terra e as lagoas marginais são parte de nossa sobrevivência, com arroz, mandioca, milho, feijão, coco, legumes, frutos, pequenos animais, abelhas. Das nossas matas extraímos cambuí, araçá, aroeira, caju, murici, ubaia e tantas outras. Mas, tudo isso está seriamente ameaçado".
Em agosto do ano passado, a Mangue Jornalismo publicou reportagem denunciando que as comunidades costeiras de Sergipe resistem à destruição dos manguezais.
E não é só a destruição pela carcinicultura, mas a presença ilegal de empresas de petróleo e mineração dentro do Território Quilombola Brejão dos Negros. Desde os anos 1970, a Petrobrás explora a região, despejando muitos recursos na Prefeitura de Brejo Grande, mas deixando a maioria do povo na extrema pobreza.
Em 2021, o campo de petróleo e gás de Brejo Grande foi vendido para a empresa Carmo Energy, do grupo Cobra Instalaciones y Servicios, que também possui outros campos espalhados por Sergipe, o seu maior investimento é em Carmópolis, em que a empresa comprou por R$ 1,1 bilhão.
Em Brejo Grande, no ano de 2024, a Carmo Energy iniciou o processo de venda do campo. No entanto, no mesmo ano, foi aprovado pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o Plano de Desenvolvimento, em que estende a previsão de término da exploração em Brejo Grande para o ano de 2052.
"Jamais nos esqueceremos do desespero ao encontrar pedaços de petróleo em nossas areias, nos rios, manguezais e mar, causado pelo crime de derramamento. Até hoje não sabemos os responsáveis e nem o tamanho dos impactos para a natureza e para a nossa saúde", revela Izaltina.
Apesar do crime ambiental para aquela e outras comunidades, as ações para explorar petróleo e minérios no território quilombola avançam, tudo em razão da não titulação da área. Ainda em 2021, entrou na comunidade a empresa ExxonMobil e começou a perfurar 11 poços de petróleo na foz do Rio São Francisco. A Petrobras também já teria anunciado que pretende explorar mais campos de petróleo e gás na bacia Sergipe-Alagoas. "E se ocorrer um derramamento tão próximo do nosso rio, o que fazer?", pergunta-se Izaltina.
Os problemas podem se agravar no território porque foram vistos vários veículos na região de uma empresa de mineração - que não se sabe o nome - realizando um estudo para escavação e exploração de minérios como Zircônio, Titânio e Hematita. "A informação que nos passaram é que descobriram esses minérios aqui, mas não dentro da nossa área, só no entorno e que os estudos deles diziam que não tinham nada de vestígios de nossos antepassados. Isso não é verdade. É mais uma luta por aí", ressalta Izaltina.
Gerenciamento do Governo de Sergipe e especulação imobiliária
Além da carcinicultura, do petróleo e do minério, o que tem mais preocupado as comunidades que formam o Território Quilombola Brejão dos Negros é ação do Governo de Sergipe na área. Primeiro, foi realizado um gerenciamento costeiro que objetiva separar e identificar áreas de manguezal, restinga, dunas, entre outras no litoral, estabelecendo o que pode e não pode ter construções nelas. Segundo, foi criado o Programa Minha Terra que pretende cadastrar terrenos de produtores rurais irregulares para regularizar. "O problema é que no mapa deles nós não estão identificados como quilombo. Isso é grave", diz Eneias.
"Eu estou como membro do Conselho Estadual de Gerenciamento Costeiro, mas a gente percebe que esse espaço não foi construído para nós. É um espaço onde a maioria é do governo e a gente não tem voz, porque a decisão já vem tomada de cima. O zoneamento foi criado para legalizar o que é ilegal, um exemplo é a carcinicultura dentro do manguezal", denuncia Izaltina. Eneias complementa: "São áreas que estão sendo estudadas para serem entregues a exploração do capital. Isso vai afetar todas as comunidades".
As lideranças quilombolas denunciam a forte influência de grupos econômicos e políticos atuando no gerenciamento costeiro e no Programa Minha Terra. Elas resumem apontando que essas ações favorecem empreendimentos de turismo intensivo, especulação imobiliária, extração de petróleo e minérios, carcinicultura.
Faz um ano que a procuradora da República, Gisele Bleggi, informou ao Governo de Sergipe que não é possível o Estado de Sergipe regularizar terras que já foram regularizadas pela União. Esse caso pode parar no Supremo Tribunal Federal (STF).
O governo do estado informou que tem conhecimento de que existem discussões em Brejo Grande envolvendo área quilombola e que o levantamento que está sendo feito vai identificar as áreas do Estado. Ainda segundo o governo, o programa não tem o objetivo de atuar em terras que já foram tituladas pela União, reconhecidas e homologadas pela SPU.
Antônio Bonfim insiste que todas essas ações contra o território vêm ocorrendo em razão da não titulação pelo Governo Federal. "Ou o presidente Lula assina e publica este decreto ou teremos maiores retrocessos do que estamos vivendo agora, com ataque direto ao meio ambiente e a nossa ancestralidade. O que os poderosos querem é nos expulsar daqui, essa é a verdade, mas vamos resistir com nossas vidas".
A especulação imobiliária é um dos braços dos ataques ao território quilombola. Esquemas econômicos e políticos poderosos querem retirar pescadores, marisqueiras, extrativistas artesanais e entregar a área para empreendimentos imobiliários e turísticos.
"Fazendeiros, construtoras, prefeito, vereadores, deputados, empresários, todos querem se apropriar do território. Nossa comunidade está numa região muito bonita, visada pelo turismo e pela especulação imobiliária. Se é turismo, nós mesmo vamos fazer, mas é com pouca gente, de base comunitária e todos ganham um pouquinho, sem patrão, sem mandatário", diz Eneias.
Em janeiro do ano passado, a Mangue Jornalismo fez uma reportagem denunciando que as comunidades costeiras de Sergipe vivem sob ameaça constante de carcinicultores, da Petrobras e do descaso público.
Desrespeito da Convenção 169 da OIT e a emergência climática
Em novembro de 2023, todo Território Quilombola Brejão dos Negros realizou na Assembleia Legislativa de Sergipe o ato que oficializou o Protocolo de Consulta livre, prévia, informada e de boa fé do quilombo, uma das exigências da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Com esse instrumento legal, nenhum projeto, ação, atividade pública ou privada, nada pode ser planejado ou executado naquela área quilombola sem a escuta ampla da comunidade. A Mangue Jornalismo publicou uma reportagem sobre esse ato na assembleia.
Infelizmente, apesar dessa garantia nacional e internacional, o Protocolo de Consulta não tem sido respeitado. "Por exemplo, no tal gerenciamento costeiro não foi observada a Convenção 169 da OIT. Não podemos mais continuar sem que nosso território esteja livre de todo e qualquer impacto que comprometa a nós e a natureza. Como quilombolas e guardiões deste território, temos a responsabilidade de observar e avaliar bem toda ação que venha interferir em nosso lugar. É obrigação do Estado cumprir e fazer cumprir a legislação que respeite a nossa existência e garanta a manutenção de todos os ecossistemas", afirma Maria Izaltina. Veja um vídeo-documentário sobre a comunidade.
Vale registrar que o Território Quilombola Brejão dos Negros foi certificado como remanescentes de quilombo em 2006, pela Fundação Cultural Palmares. No mesmo ano, o Incra realizou o primeiro cadastramento dos quilombolas que se autorreconheceram. Em 2012, o Incra fez o levantamento fundiário, elaborou o mapa territorial e fez o recadastramento das famílias, após a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Cinco antropólogos estiveram lá e comprovaram a diversidade étnica, tradições culturais e o modo de viver. Em 2015, o RTID foi publicado e em 2023 foi publicada a Portaria no 234/2023 reconhecendo o território.
"Exigimos que respeitem nosso território, que é formado por terra e água, matas e manguezais, riachos e lagoas, rio e mar, dunas e ilhotas, que respeitem nossa identidade, nossa história negra/preta, que respeitem as tradições, as memórias. A Convenção 169 precisa ser respeitada, colocada em prática. A gente já cuida do território, mas com a titulação fica mais garantido e evita tantos problemas e conflitos. E a gente cuida para quem é quilombola e para quem não é. A gente já faz isso para a população em geral, para o mundo. Se você cuida do manguezal, você cuida do planeta", reforçou Eneias.
Sobre essa questão, em abril deste ano a Mangue Jornalismo publicou reportagem denunciando que sete comunidades pesqueiras sergipanas, entre elas o quilombo da Resina, enfrentam vários conflitos socioambientais e violações de direitos humanos.
O Território Quilombola Brejão dos Negros é vital no combate a emergência climática porque ele fica em uma área sensível da foz do Rio São Francisco. "Temos um problema sério que são as barreiras, a retirada da água e as hidrelétricas. Tudo isso retira a força do rio. Do outro lado, o mar tem ficado com mais volume por conta do aquecimento e do derretimento do gelo. O mar entra com força e empurra o rio para dentro", explica Eneias.
Com secas prolongadas ou desastres por conta das fortes chuvas, o quadro que se apresenta é de emergência climática. Em Brejão dos Negros, essa situação é crítica, porque a área pode desaparecer se manguezais e lagoas forem destruídos. Foi lá que um povoado inteiro, o Cabeço, foi engolido pelo mar. "As mudanças climáticas prejudicam a agricultura, a pesca. Somos vítimas dessa emergência. Isso é no mundo todo, mas também afeta o nosso território e não podemos deixar de destacar", completa Eneias.
Antes do Rio São Francisco chegar em Brejo Grande, ele sofre drásticas interrupções de pelo menos cinco grandes hidrelétricas e isso tem um violento impacto na foz. "É o que falei, a água que desce para o mar fica fraca, permite o avanço do ocenao e isso muda tudo, o peixe some porque não se dá com água salgada. Como podemos cultivar arroz com água salgada? E para beber, como faz? Passamos alguns anos sem plantar justamente por conta do avanço do mar. Aí voltou a chover um pouco, graças a Deus, a gente conseguiu fazer essa safra, principalmente no inverno", conta Eneias.
A Mangue Jornalismo fez uma reportagem, em setembro de 2023, mostrando em detalhes de como a água salgada avança sobre o Rio São Francisco e que os efeitos diretos disso são fome e sede, consequências mais perversas da emergência climática vivida por pescadores em Sergipe.
https://manguejornalismo.org/falta-de-titulacao-das-terras-ameaca-quilombo-brejao-dos-negros-a-protecao-ambiental-e-o-arroz-agroecologico/
Esta é a terceira reportagem da Mangue Jornalismo sobre a Série Brejão, quilombo de reexistência. A primeira foi conduzida por dona Marília e as histórias de luta no território. A segunda mostrou que, depois do reconhecimento oficial, o quilombo se tornou exemplo na produção de arroz agroecológico. A reportagem de hoje denuncia que, mesmo com essa conquista, os quilombolas vivem ameaçados, vítimas de crimes socioambientais, e tudo isso porque o Governo Lula ainda não titulou as terras do quilombo.
Leia a primeira reportagem em: "O medo é do tamanho que a gente faz". A história de luta na Resina no Quilombo Brejão dos Negros por dona Marília
Leia a segunda reportagem em: Arroz agroecológico Velho Chico promove revolução socioambiental no Quilombo Brejão dos Negros
Uma luta que parece não ter fim. O próximo 20 de novembro - data especial para o Dia da Consciência Negra - marca os dois anos que os 8 mil hectares do Território Quilombola Brejão dos Negros foram reconhecidos pelo Governo Federal. A publicação no Diário Oficial da União da Portaria no 234/2023 foi motivo de festa, mas não de paz, pelo contrário.
Sem o último ato do processo - que é o decreto de titulação das terras - os quilombolas das comunidades da Resina, Santa Cruz, Brejão, Carapitanga e Brejo Grande passaram a sofrer mais ameaças de fazendeiros, carcinicultores, empresas petrolíferas e mineradoras.
"A realidade é que tem ocorrido uma mobilização de forças econômicas e políticas poderosas para impedir que o presidente Lula titule nosso território. Só isso explica essa demora em tomar a decisão", avalia Maria Izaltina, uma das lideranças em Santa Cruz. "Não ter a posse definitiva mostra o racismo dentro do Estado e o poder de influência dos fazendeiros. Não ter a titulação intensifica conflitos com os grandes empreendimentos aumentando a degradação da natureza", reforça Magno de Jesus, também da Santa Cruz.
A luta formal pelo direito de existir do Território Quilombola Brejão dos Negros faz mais de 20 anos, com registros de muitos casos de perseguições, ameaças de morte e violentos ataques ao meio ambiente. A área é privilegiada, plana, fértil, protegida por manguezais e lagoas, banhada pelo São Francisco, bem na foz, e apenas a 115km de Aracaju, capital.
Apesar de uma área muito rica, a maioria de seus moradores vivia na escravização, na miséria quase absoluta, a maioria trabalhando para pagar dívidas injustificáveis em fazendas, sem direito às terras, às águas, à vida. "Historicamente, a gente só trabalhou para enriquecer os outros, para formar o filho do fazendeiro como advogado, juiz, promotor, e o nosso ainda vive na situação de pobreza", afirma Eneias Rosa, liderança na Resina.
O fato é que, graças ao reconhecimento, organização e consciência, os quilombolas em Brejão dos Negros tornaram-se guardiões das matas e dos rios, dos manguezais e das lagoas, buscando uma convivência integrada com a natureza, com uso de manejos agroecológicos, dando uma contribuição vital no combate aos efeitos da emergência climática. Uma luta que é animada e fortalecida com organizações solidárias, como a Cáritas Arquidiocesana (Nordeste 3), ligada à Igreja Católica, a Rede Balaio de Solidariedade, o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) e outras.
Nos últimos anos, o território quilombola chamou atenção por sua produção de arroz agroecológico, sem contar outros produtos da agricultura familiar, além de uma viva cultura ancestral. "A história desse quilombo é muito bonita, história de resistência, de um povo trabalhador, mas que sempre sofreu com o coronelismo, com os mandatários da região e com os interesses do grande capital", disse Antônio Bonfim, liderança em Santa Cruz.
Além de retomar a cultura coletiva ancestral, as lideranças do território buscam sempre denunciar as ameaças e agressões, principalmente contra o meio ambiente. Por exemplo, em maio de 2023, a Mangue Jornalismo publicou uma reportagem revelando que os quilombolas de Brejão dos Negros conseguiram a condenação de um criador de camarão por destruir o manguezal. Nessa ação do MPF/SE, o Governo de Sergipe também foi condenado por conceder licença ambiental irregular.
Os quilombolas também desenvolvem dois pequenos projetos de reflorestamento do manguezal, um ecossistema fortemente atacado pela ação imobiliária e pela criação de camarões. Entretanto, os projetos são bem pequenos diante do tamanho da devastação. Apesar da resistência e do apoio de várias organizações, a demora do Governo Federal em titular as terras tem provocado mais agressões socioambientais naquela área.
"É um jogo de empurra-empurra. Dizem que o processo está no Incra, em Brasília, depois que foi para Casa Civil e até agora nada de decreto. Dois anos nisso. Soubemos que tem um grupo de fazendeiros e seus políticos tentando anular a portaria de reconhecimento. Já se tentou fazer isso no Governo Bolsonaro, inventaram mentiras e ainda continuam fazendo isso. Temos toda documentação em dia, laudos antropológicos, tudo certinho. Não falta nada e não sei porque Lula está demorando tanto", diz Izaltina.
Da carcinicultura à mineração no quilombo
Os problemas pela falta de titulação das terras são grandes e graves no Território Quilombola Brejão dos Negros. Um deles é o avanço da criação de camarões em viveiros. "Está cada vez pior, aumentando, empresas que entram aqui e a gente não sabe quem é e fazem cercas, colocam cadeados, contratam jagunços, abrem estradas, levantam muros de alvenaria no mangue, entram com máquinas e destroem o manguezal, tudo para criação predatória de camarão", denuncia Antônio Bonfim.
Para Izaltina, o avanço da destruição do manguezal e de toda área ao redor para construção dos tanques de carcinicultura é resultado da lentidão do governo em não titular as terras. "Quanto mais tempo passa, mais eles invadem nosso território, fazendo barreiras, impedindo o acesso a áreas coletivas. A gente só vê passando caçambas e mais caçambas para dentro do manguezal", conta Bonfim.
Os quilombolas acreditam que há uma estratégia de fazendeiros, empresas e políticos em implantar estruturas ilegais na área para quando sair a titulação eles possam receber indenizações milionárias.
A expansão ilegal dos tanques de carcinicultura no quilombo e em área de preservação ambiental permanente implica desmatar e envenenar os manguezais, que são berçários da natureza. Para matar plantas e fazer o camarão crescer mais rápido, jogam-se venenos. "É no manguezal que várias espécies de peixes, caranguejos, siris, aratus, sururus, camarões nascem e se desenvolvem. Essas vidas convivem com a gente, nos alimentam e geram renda. Somos um povo que precisa do mangue vivo e saudável", afirma Eneias.
Antônio Bonfim reforça que a falta de titulação da área está produzindo a devastação do manguezal, um ataque de morte ao quilombo, porque "o mangue é energia, é ancestralidade, é orixá, é sustentabilidade, é vida. O manguezal é nossa mãe, nossa maior fonte de renda, nele catamos o caranguejo, guaiamum, os mariscos. A terra e as lagoas marginais são parte de nossa sobrevivência, com arroz, mandioca, milho, feijão, coco, legumes, frutos, pequenos animais, abelhas. Das nossas matas extraímos cambuí, araçá, aroeira, caju, murici, ubaia e tantas outras. Mas, tudo isso está seriamente ameaçado".
Em agosto do ano passado, a Mangue Jornalismo publicou reportagem denunciando que as comunidades costeiras de Sergipe resistem à destruição dos manguezais.
E não é só a destruição pela carcinicultura, mas a presença ilegal de empresas de petróleo e mineração dentro do Território Quilombola Brejão dos Negros. Desde os anos 1970, a Petrobrás explora a região, despejando muitos recursos na Prefeitura de Brejo Grande, mas deixando a maioria do povo na extrema pobreza.
Em 2021, o campo de petróleo e gás de Brejo Grande foi vendido para a empresa Carmo Energy, do grupo Cobra Instalaciones y Servicios, que também possui outros campos espalhados por Sergipe, o seu maior investimento é em Carmópolis, em que a empresa comprou por R$ 1,1 bilhão.
Em Brejo Grande, no ano de 2024, a Carmo Energy iniciou o processo de venda do campo. No entanto, no mesmo ano, foi aprovado pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o Plano de Desenvolvimento, em que estende a previsão de término da exploração em Brejo Grande para o ano de 2052.
"Jamais nos esqueceremos do desespero ao encontrar pedaços de petróleo em nossas areias, nos rios, manguezais e mar, causado pelo crime de derramamento. Até hoje não sabemos os responsáveis e nem o tamanho dos impactos para a natureza e para a nossa saúde", revela Izaltina.
Apesar do crime ambiental para aquela e outras comunidades, as ações para explorar petróleo e minérios no território quilombola avançam, tudo em razão da não titulação da área. Ainda em 2021, entrou na comunidade a empresa ExxonMobil e começou a perfurar 11 poços de petróleo na foz do Rio São Francisco. A Petrobras também já teria anunciado que pretende explorar mais campos de petróleo e gás na bacia Sergipe-Alagoas. "E se ocorrer um derramamento tão próximo do nosso rio, o que fazer?", pergunta-se Izaltina.
Os problemas podem se agravar no território porque foram vistos vários veículos na região de uma empresa de mineração - que não se sabe o nome - realizando um estudo para escavação e exploração de minérios como Zircônio, Titânio e Hematita. "A informação que nos passaram é que descobriram esses minérios aqui, mas não dentro da nossa área, só no entorno e que os estudos deles diziam que não tinham nada de vestígios de nossos antepassados. Isso não é verdade. É mais uma luta por aí", ressalta Izaltina.
Gerenciamento do Governo de Sergipe e especulação imobiliária
Além da carcinicultura, do petróleo e do minério, o que tem mais preocupado as comunidades que formam o Território Quilombola Brejão dos Negros é ação do Governo de Sergipe na área. Primeiro, foi realizado um gerenciamento costeiro que objetiva separar e identificar áreas de manguezal, restinga, dunas, entre outras no litoral, estabelecendo o que pode e não pode ter construções nelas. Segundo, foi criado o Programa Minha Terra que pretende cadastrar terrenos de produtores rurais irregulares para regularizar. "O problema é que no mapa deles nós não estão identificados como quilombo. Isso é grave", diz Eneias.
"Eu estou como membro do Conselho Estadual de Gerenciamento Costeiro, mas a gente percebe que esse espaço não foi construído para nós. É um espaço onde a maioria é do governo e a gente não tem voz, porque a decisão já vem tomada de cima. O zoneamento foi criado para legalizar o que é ilegal, um exemplo é a carcinicultura dentro do manguezal", denuncia Izaltina. Eneias complementa: "São áreas que estão sendo estudadas para serem entregues a exploração do capital. Isso vai afetar todas as comunidades".
As lideranças quilombolas denunciam a forte influência de grupos econômicos e políticos atuando no gerenciamento costeiro e no Programa Minha Terra. Elas resumem apontando que essas ações favorecem empreendimentos de turismo intensivo, especulação imobiliária, extração de petróleo e minérios, carcinicultura.
Faz um ano que a procuradora da República, Gisele Bleggi, informou ao Governo de Sergipe que não é possível o Estado de Sergipe regularizar terras que já foram regularizadas pela União. Esse caso pode parar no Supremo Tribunal Federal (STF).
O governo do estado informou que tem conhecimento de que existem discussões em Brejo Grande envolvendo área quilombola e que o levantamento que está sendo feito vai identificar as áreas do Estado. Ainda segundo o governo, o programa não tem o objetivo de atuar em terras que já foram tituladas pela União, reconhecidas e homologadas pela SPU.
Antônio Bonfim insiste que todas essas ações contra o território vêm ocorrendo em razão da não titulação pelo Governo Federal. "Ou o presidente Lula assina e publica este decreto ou teremos maiores retrocessos do que estamos vivendo agora, com ataque direto ao meio ambiente e a nossa ancestralidade. O que os poderosos querem é nos expulsar daqui, essa é a verdade, mas vamos resistir com nossas vidas".
A especulação imobiliária é um dos braços dos ataques ao território quilombola. Esquemas econômicos e políticos poderosos querem retirar pescadores, marisqueiras, extrativistas artesanais e entregar a área para empreendimentos imobiliários e turísticos.
"Fazendeiros, construtoras, prefeito, vereadores, deputados, empresários, todos querem se apropriar do território. Nossa comunidade está numa região muito bonita, visada pelo turismo e pela especulação imobiliária. Se é turismo, nós mesmo vamos fazer, mas é com pouca gente, de base comunitária e todos ganham um pouquinho, sem patrão, sem mandatário", diz Eneias.
Em janeiro do ano passado, a Mangue Jornalismo fez uma reportagem denunciando que as comunidades costeiras de Sergipe vivem sob ameaça constante de carcinicultores, da Petrobras e do descaso público.
Desrespeito da Convenção 169 da OIT e a emergência climática
Em novembro de 2023, todo Território Quilombola Brejão dos Negros realizou na Assembleia Legislativa de Sergipe o ato que oficializou o Protocolo de Consulta livre, prévia, informada e de boa fé do quilombo, uma das exigências da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Com esse instrumento legal, nenhum projeto, ação, atividade pública ou privada, nada pode ser planejado ou executado naquela área quilombola sem a escuta ampla da comunidade. A Mangue Jornalismo publicou uma reportagem sobre esse ato na assembleia.
Infelizmente, apesar dessa garantia nacional e internacional, o Protocolo de Consulta não tem sido respeitado. "Por exemplo, no tal gerenciamento costeiro não foi observada a Convenção 169 da OIT. Não podemos mais continuar sem que nosso território esteja livre de todo e qualquer impacto que comprometa a nós e a natureza. Como quilombolas e guardiões deste território, temos a responsabilidade de observar e avaliar bem toda ação que venha interferir em nosso lugar. É obrigação do Estado cumprir e fazer cumprir a legislação que respeite a nossa existência e garanta a manutenção de todos os ecossistemas", afirma Maria Izaltina. Veja um vídeo-documentário sobre a comunidade.
Vale registrar que o Território Quilombola Brejão dos Negros foi certificado como remanescentes de quilombo em 2006, pela Fundação Cultural Palmares. No mesmo ano, o Incra realizou o primeiro cadastramento dos quilombolas que se autorreconheceram. Em 2012, o Incra fez o levantamento fundiário, elaborou o mapa territorial e fez o recadastramento das famílias, após a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Cinco antropólogos estiveram lá e comprovaram a diversidade étnica, tradições culturais e o modo de viver. Em 2015, o RTID foi publicado e em 2023 foi publicada a Portaria no 234/2023 reconhecendo o território.
"Exigimos que respeitem nosso território, que é formado por terra e água, matas e manguezais, riachos e lagoas, rio e mar, dunas e ilhotas, que respeitem nossa identidade, nossa história negra/preta, que respeitem as tradições, as memórias. A Convenção 169 precisa ser respeitada, colocada em prática. A gente já cuida do território, mas com a titulação fica mais garantido e evita tantos problemas e conflitos. E a gente cuida para quem é quilombola e para quem não é. A gente já faz isso para a população em geral, para o mundo. Se você cuida do manguezal, você cuida do planeta", reforçou Eneias.
Sobre essa questão, em abril deste ano a Mangue Jornalismo publicou reportagem denunciando que sete comunidades pesqueiras sergipanas, entre elas o quilombo da Resina, enfrentam vários conflitos socioambientais e violações de direitos humanos.
O Território Quilombola Brejão dos Negros é vital no combate a emergência climática porque ele fica em uma área sensível da foz do Rio São Francisco. "Temos um problema sério que são as barreiras, a retirada da água e as hidrelétricas. Tudo isso retira a força do rio. Do outro lado, o mar tem ficado com mais volume por conta do aquecimento e do derretimento do gelo. O mar entra com força e empurra o rio para dentro", explica Eneias.
Com secas prolongadas ou desastres por conta das fortes chuvas, o quadro que se apresenta é de emergência climática. Em Brejão dos Negros, essa situação é crítica, porque a área pode desaparecer se manguezais e lagoas forem destruídos. Foi lá que um povoado inteiro, o Cabeço, foi engolido pelo mar. "As mudanças climáticas prejudicam a agricultura, a pesca. Somos vítimas dessa emergência. Isso é no mundo todo, mas também afeta o nosso território e não podemos deixar de destacar", completa Eneias.
Antes do Rio São Francisco chegar em Brejo Grande, ele sofre drásticas interrupções de pelo menos cinco grandes hidrelétricas e isso tem um violento impacto na foz. "É o que falei, a água que desce para o mar fica fraca, permite o avanço do ocenao e isso muda tudo, o peixe some porque não se dá com água salgada. Como podemos cultivar arroz com água salgada? E para beber, como faz? Passamos alguns anos sem plantar justamente por conta do avanço do mar. Aí voltou a chover um pouco, graças a Deus, a gente conseguiu fazer essa safra, principalmente no inverno", conta Eneias.
A Mangue Jornalismo fez uma reportagem, em setembro de 2023, mostrando em detalhes de como a água salgada avança sobre o Rio São Francisco e que os efeitos diretos disso são fome e sede, consequências mais perversas da emergência climática vivida por pescadores em Sergipe.
https://manguejornalismo.org/falta-de-titulacao-das-terras-ameaca-quilombo-brejao-dos-negros-a-protecao-ambiental-e-o-arroz-agroecologico/
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