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Notícias

A diáspora ribeirinha: expulsos por Belo Monte lutam para voltar pra casa sem morrer de cidade

17/09/2025

Autor: Guilherme Guerreiro Neto,

Fonte: Sumaúma - https://sumauma.com/a-diaspora-ribeirinha-expulsos-por-belo-monte-lutam-para-voltar-pra-ca



A diáspora ribeirinha: expulsos por Belo Monte lutam para voltar pra casa sem morrer de cidade
Quase dez anos depois do início da operação, a Norte Energia ainda não comprou as terras para o Território Ribeirinho e o governo parece sem força para fazer a empresa cumprir a norma. Em Altamira, os mais velhos adoecem e os mais jovens perdem a ligação com a Floresta

Guilherme Guerreiro Neto, Rio Xingu, Altamira, Amazônia
17 setembro 2025

Maria Madalena Câmara está encanteirada na periferia de Altamira. Faz dez anos que ela está assim, com a vida em suspenso. Em 2015, a concessionária Norte Energia arrancou Dadá, como é conhecida, das terras onde ela vivia, no Bacabal, à beira do Rio Xingu. Dadá foi deixada num lote no Reassentamento Urbano Coletivo (RUC) Água Azul. Quando pensou que finalmente retornaria ao seu lugar, encanteirou mudas de Abacate, Açaí, Biribá e Graviola para levar com ela. As mudas não deram conta de esperar. Dadá teve de plantá-las no quintal daquele lote na cidade, onde crescem espremidas entre muros. Mas, aos 64 anos, ela segue encanteirada, porque jamais coube no reassentamento urbano. E o dia de voltar para casa no beiradão até hoje não chegou.

O barramento do Rio Xingu para acionar as turbinas da Usina Hidrelétrica Belo Monte barrou também a vida da família de Dadá e de pelo menos outras 295 famílias ribeirinhas que eram parte do Rio. Aquele trecho do curso d'água virou reservatório de Belo Monte, a maior hidrelétrica 100% brasileira, que não produz nem 40% da energia de sua capacidade instalada e está com a licença de operação vencida desde 2021.

O Plano Básico Ambiental de Belo Monte prometeu a recomposição dos modos de vida das populações atingidas. A licença de operação saiu com a condição de que a empresa Norte Energia revisasse o tratamento dado aos Ribeirinhos, garantindo a dupla moradia própria dessa comunidade tradicional: uma casa no Rio, outra de apoio na rua. Mas a voadeira de Dadá e de seu companheiro, Edmo Cabral, de 68 anos, repousa no seco, no chão batido da cidade. Os olhos de Dadá, cansados da rua, procuram o Rio. Para os povos ribeirinhos, a violação nunca acabou. Passados quase dez anos do início da operação da usina, a reparação tampouco chegou.

A Ribeirinha Maria Madalena Câmara espera pelo território encanteirada no quintal de um reassentamento urbano em Altamira. Foto: Soll/SUMAÚMA

O primeiro passo para a reparação tem nome: Território Ribeirinho. Um território coletivo de 20,3 mil hectares, formado por três faixas contínuas e que no papel já está delimitado, zoneado, com os pontos de reocupação das famílias definidos. Um pedaço da terra fica dentro da Área de Preservação Permanente (APP) criada nas margens do reservatório e que foi em parte desmatada pela Norte Energia entre 2011 e 2014. A outra faixa são as terras de fundo, as chamadas áreas lindeiras, atrás da APP, que, segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Norte Energia deveria adquirir. Apesar de uma Declaração de Utilidade Pública feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica garantir que as áreas podem ser desapropriadas, a empresa vem protelando a compra dessas terras. E o governo federal parece não ter força para fazer cumprir a norma.

Menos da metade das 296 famílias ribeirinhas reconhecidas regressou ao beiradão e vive quase sempre dentro da APP. O Ministério Público Federal (MPF) considera que, mesmo sem as áreas de fundo regularizadas, as comunidades já deveriam ter voltado. Impedir esse retorno ao território tradicional é a mais grave das violências impostas contra quem foi arrancado do Rio.

Há muitas outras. Os Ribeirinhos que conseguiram voltar e ocupam terras no beiradão enfrentam restrições ao plantio das roças, escassez na pesca, vigilância constante, precariedade de acesso à educação e à saúde, além de pressão permanente de fazendeiros da região. Tudo parece ser feito para que desistam. Mas, estando lá, eles resistem.

Pelo menos 163 famílias permanecem longe do território e do Rio, espalhadas em reassentamentos urbanos na região. São amazônidas refugiados do desenvolvimento, sobrevivendo em diáspora, que nem Dadá. Ou morrendo, como seu neto Patrick, que em 2018, aos 14 anos, foi atropelado por uma caçamba. Patrick, menino das águas, morreu de cidade, mal que Belo Monte lhe trouxe. Sua avó e tantos outros Ribeirinhos sem Rio habitam um sofrimento prolongado. Encontram a velhice encanteirados, impedidos de, no tempo que lhes resta, reconstruir seus mundos.

'Sumiu tudo'

Enquanto passa o café, Joana Gomes da Silva lembra o tanto que viveu em seus 60 anos. Desde a infância pescando com a mãe no Rio Iriri até a vida de casada morando na Ilha da Samaúma, no Xingu. A ilha não sobreviveu a Belo Monte. "Sumiu tudo", ela conta. Joana e Lindolfo Aranha Neto, de 65 anos, fazem parte dos Ribeirinhos que, depois da usina, conseguiram voltar para a beira d'água. Vivem no Palhal, bem perto da barragem de Pimental, casa de força complementar de Belo Monte. Quando chegaram, o lugar era só um descampado onde a Norte Energia estacionava máquinas. Ali, o casal tenta dar vida ao Território Ribeirinho.

Ando com Lindolfo pela terra. Ele mostra as árvores como quem apresenta um filho. "Esta é a Seringueira, eu plantei quando cheguei aqui." A árvore refaz a Floresta numa área do Xingu que no passado abrigou seringais. O que brota no beiradão hoje quase sempre brota por teimosia. A Norte Energia proíbe os Ribeirinhos de plantar sem autorização na área de preservação permanente. Não podem semear o solo com liberdade nem cultivar sua roça. Sem roça, não têm mandioca para fazer farinha, nem milho para alimentar as galinhas.

As famílias contam que são constantemente vigiadas por equipes da empresa e até por drones. Tempos atrás, um drone rondou a casa da filha de Joana e Lindolfo, que fica nas proximidades. Ela estava lavando roupa e vestia apenas peças íntimas quando percebeu a presença intrusa que atravessava seu corpo e seu território. Correu para dentro de casa para se cobrir. Quando saiu, o drone continuava lá a invadi-la.

Além da roça proibida, Joana e Lindolfo, pescadores que são, sentem os efeitos do fim do mundo ao tocar as águas. Os Ribeirinhos não foram os únicos moradores expulsos do Rio. "Os peixes que a gente pegava, hoje em dia não tem mais. Não tem o Curimatã, o Pacu, o Pacu Seringa...", relata Joana. Lindolfo continua: "Não tem o Caribe, não tem o Piau, não tem Matrinxã. Eram peixes de água corrente. Hoje, com o lago, só tem Tucunaré, Pescada, Caratinga, Flecheira". Da Floresta matada restam, no curso do reservatório, os paliteiros, pontas expostas dos troncos das árvores afogadas.

Joana Gomes e Lindolfo Aranha Neto voltaram ao beiradão, mas na terra não podem plantar e no Rio não encontram os peixes de antes. Foto: Soll/SUMAÚMA

Durante a seca extrema de 2024, teve trecho onde o Rio rareou. O pescador de 59 anos Nelson Curuaia Caiapó, que até junho passado atendia por Nelson Dias da Silva, precisava deixar o trapiche de sua casa e ir beirando a lama por cerca de 150 metros para alcançar fiapos das águas do Xingu. No ponto que lhe coube do Território Ribeirinho, ele faz o oposto de tal cena de morte, em que emergência climática e Belo Monte se atam. Graças ao açaizal plantado por Nelson, a nascente de uma grota que havia secado danou a jorrar água de novo. Renasceu.

Nelson é filho de Teminó, Indígena Kayapó de 83 anos, e Francinete, Indígena Kuruaya de 72 - por isso agora incluiu a ascendência indígena como sobrenome. Depois de anos separados, seus pais se reencontraram na velhice. Passam um tempo na cidade cuidando da saúde, mas gostam mesmo é do beiradão. "A gente é acostumado a morar em beira de rio. O clima da cidade não dá pra nós", diz Francinete.

Os desmandos e as demoras da concessionária se acumulam, recaem sobre o cotidiano das famílias. Advertências do Ibama não surtem efeito contra a postura da Norte Energia. Questionado por SUMAÚMA, o órgão, responsável pelas licenças ambientais federais, alega que "tem adotado todas as medidas que lhe competem" e que "seguirá cobrando a execução do que foi determinado pelo Estado brasileiro no licenciamento". Mas o fato é que as obrigações documentadas não são cumpridas - e as consequências para a Norte Energia nunca vêm.

Por onze dias, SUMAÚMA tentou ouvir o Ministério do Ambiente e Mudança do Clima sobre como é possível que uma empresa se coloque acima da lei e do Estado brasileiro, como é possível que o governo federal não consiga fazer com que a Norte Energia cumpra o que deve aos tantos destinos que Belo Monte atravessou. O Ministério sugeriu que o secretário-executivo da pasta, João Paulo Capobianco, fosse entrevistado, o que foi aceito por SUMAÚMA, mas depois Capobianco desistiu, informou que mantém o que diz a nota do Ibama, e a entrevista jamais aconteceu. Ninguém apareceu para explicar por que o Território Ribeirinho até hoje não foi implementado e por que a Norte Energia segue sem cumprir o que foi combinado.

'O Rio morreu. E são vocês que vão dar vida ao Rio novamente', disse a antropóloga Sônia Magalhães a membros do Conselho Ribeirinho. Foto: Lilo Clareto

Entre direitos violados e vozes que lutam para ser escutadas

Uma inspeção interinstitucional liderada pelo Ministério Público Federal, em junho de 2015, percorreu as terras tradicionais ribeirinhas para acompanhar a remoção forçada das comunidades da beira do Rio. A equipe de trabalho constatou o descumprimento do Plano Básico Ambiental, com risco de perda do modo de vida tradicional e grave violação de direitos humanos. Identificou também que os Ribeirinhos estavam invisíveis no processo de licenciamento e que não havia escuta e negociação por parte da Norte Energia.

O governo federal iniciou, então, um processo que chamou de "diálogos ribeirinhos", com a promessa de abrir espaço para a participação das comunidades na reestruturação do território.

Acontece que o diálogo não se cumpriu. A Norte Energia continuou a ter poder absoluto de decidir quem era ou não Ribeirinho e que local seria destinado a cada um. Excluiu do direito de voltar ao beiradão Ribeirinhos reconhecidos e incluiu, por exemplo, o então secretário de Saúde de Altamira, Waldecir Maia, como beneficiário de um ponto de pesca. Era evidente a necessidade de mais estudos.

Foi quando Thais Santi, procuradora da República de Altamira, recorreu à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC. Em três meses, entre agosto e novembro de 2016, pesquisadores acadêmicos e Ribeirinhos, integrantes do Movimento Xingu Vivo para Sempre e do Instituto Socioambiental debruçaram-se sobre quais seriam os caminhos seguros para que o modo de vida dos povos ribeirinhos não submergisse junto com as ilhas do Xingu.

Em 11 de novembro de 2016, cerca de 800 Ribeirinhos, pescadores e Indígenas lotaram o Centro de Convenções de Altamira para a audiência pública que apresentou os resultados dos estudos. No relatório da SBPC, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha apontou premissas decisivas para o que viria a seguir: 1) é condição necessária para a reparação identificar corretamente a população atingida; 2) o princípio de qualquer identidade depende da autoidentificação e do reconhecimento dos pares. O relatório recomendou a criação de um conselho dos Ribeirinhos.

Em 2016, Ribeirinhos, pescadores e Indígenas lotaram o Centro de Convenções de Altamira para saber do relatório da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Foto: Lilo Clareto

O Conselho Ribeirinho, criado em dezembro de 2016, é um dos grandes acontecimentos da luta pela vida no Xingu. Ele se impõe contra o silenciamento, toma a palavra e anuncia: quem decide quem nós somos somos nós. Entre janeiro e março de 2017, o Conselho fez o reconhecimento social dos Ribeirinhos do beiradão. Pessoas que havia muito tempo viviam nas comunidades do Xingu, como Joana e Nelson, e que conheciam outras tantas enraizadas por lá, tornaram-se conselheiras.

Em 2018, durante um seminário na Universidade de Brasília (UnB) sobre a recomposição do modo de vida das comunidades, o Conselho apresentou o mapa do Território Ribeirinho. Manuela Degani, então gerente de projetos socioambientais da Norte Energia, afirmou que a legitimidade do Conselho Ribeirinho já era consenso. O antropólogo José Augusto Sampaio, que participou a convite da empresa, disse que o respeito ao modo de vida e à autonomia ribeirinha era questão de princípio e que a concessionária "já estava entendendo".

Mas não tem sido assim.

Num documento de 6 de agosto de 2025 enviado à Diretoria de Licenciamento Ambiental do Ibama, o superintendente socioambiental e do Componente Indígena da Norte Energia, Bruno Bahiana, ignora todo o trabalho do Conselho Ribeirinho para a regularização do território. E alega que, antes da regularização fundiária, seria preciso haver manifestação de interesse das famílias, formalização de "entidade legítima e regularizada juridicamente" de representação das famílias e definição jurídica e ambiental do território.

O projeto básico de recomposição do modo de vida das famílias ribeirinhas foi apresentado pela empresa ao Ibama em junho de 2019. Em novembro daquele ano, o Ibama publicou o parecer técnico de análise e aprovou o projeto. Num comunicado aos povos expulsos por Belo Monte, de abril de 2025, o Ibama considerava importante que a implantação do território fosse concluída o quanto antes, construindo de forma participativa os caminhos para a titulação coletiva.

'Há práticas evidentes de morte'

"A primeira violação desse processo é a empresa não respeitar o grupo tradicional, é não compreender com quem ela está lidando. Isso depois de dez anos!", avalia a procuradora Thais Santi. Entre os dias 6 e 10 de julho de 2025, no marco de uma década da inspeção interinstitucional, o Ministério Público Federal, o Ibama, o Conselho Ribeirinho, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e cientistas foram ao lago e aos RUCs reencontrar as famílias ribeirinhas. SUMAÚMA acompanhou parte das visitas.

Em julho, Ministério Público Federal, Ibama, Conselho Ribeirinho, ONU e cientistas visitaram os Ribeirinhos exilados na cidade e os que retornaram ao beiradão. Foto: Soll/SUMAÚMA

A antropóloga Sônia Magalhães, professora da Universidade Federal do Pará, estuda grandes projetos na Amazônia desde a década de 1980 e há quase 20 anos faz pesquisa na região do Xingu. Ela participou da inspeção de 2015 e, com Manuela Carneiro da Cunha, coordenou a pesquisa da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Agora, voltou a tocar as histórias dos condenados de Belo Monte e acompanhou a nova inspeção. Sônia procura formas de nomear as violências cotidianas com que se depara, mas falha. A linguagem não alcança a crueldade.

Em reunião com os participantes após os primeiros dias de vistoria, com indignação a professora declarou ser insustentável a violência jurídica e humanitária praticada contra os Ribeirinhos. "Há práticas evidentes de morte", afirmou. Mortes das gentes e de seus modos de fazer mundo. Percebeu, por outro lado, a potência de vida que as comunidades que já regressaram emprestam ao Xingu, com resistência social e restauração ambiental. "Ali não é mais beira do Rio. O Rio morreu. E são vocês que vão dar vida ao Rio novamente", afirmou, mirando os conselheiros presentes.

Para que os povos recuperem o que a hidrelétrica degradou, o beiradão tem que virar de fato território, ou seja, as famílias devem ter condições de recompor seu modo de vida lá. A área de preservação artificial, segundo Sônia Magalhães, precisa suportar a noção de morada ribeirinha e sua relação com a terra, não pode limitá-la. O jurista Carlos Marés, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, que também participou das visitas em julho, explicou que o sentido de uma APP é preservar as águas e matas ciliares da destruição provocada pelo agronegócio. É para conter esse modo predatório de estar no mundo que as APPs existem. Não pode ser para restringir um território tradicional que, em vez de destruir, convive com a Natureza.

O relatório do Ibama sobre a recente vistoria no Xingu afirma: "Os relatos [dos Ribeirinhos] mostram claramente que passados esses sete anos, desde a aprovação da proposta ribeirinha (2019), sem a possibilidade de moradia e subsistência na APP e acesso às terras lindeiras, que a Norte Energia tem obrigação de adquirir desde então, a vida na cidade tem trazido mais sofrimento que acolhimento ao modo de vida tradicional dos ribeirinhos". O relatório continua: "A moradia na cidade sem a possibilidade de buscar a subsistência da família nas roças previstas na proposta ribeirinha tem desgastado muito as famílias que ainda não ocupam seus respectivos pontos na APP do reservatório Xingu".

Mais da metade dos Ribeirinhos continuam impedidos de regressar ao Xingu. Muitos estão nos RUCs, reassentamentos urbanos coletivos. Foto: Soll/SUMAÚMA

Em email enviado a SUMAÚMA, o coordenador-geral da Coordenação de Licenciamento Ambiental de Empreendimentos Fluviais e Pontuais Terrestres, Edmilson Maturana, e o analista técnico da Coordenação de Licenciamento Ambiental de Hidrelétricas, Obras e Estruturas Fluviais, Henrique Marques, que acompanharam a vistoria de julho e assinam o relatório, reconheceram o cansaço que a demora para garantir o território gera aos Ribeirinhos e que a "aquisição [das áreas lindeiras] está demasiadamente longa e tem causado diversos problemas às famílias que não conseguem seguir com a vida normalmente".

A diretora de Licenciamento Ambiental do Ibama, Claudia Barros, enviou em 19 de agosto um ofício ao superintendente Socioambiental e de Assuntos Indígenas da Norte Energia. Entre outras demandas, o documento autoriza a empresa a ofertar pontos de moradia na APP para mais 20 famílias ribeirinhas; solicita à concessionária adequação de sua vigilância patrimonial, que "tem imposto constrangimentos ao modo de vida tradicional e restringido a liberdade dos moradores"; dá prazo de 15 dias para a Norte Energia apresentar proposta de aumento da verba de transição repassada mensalmente às famílias que aguardam retorno ao território, que atualmente é de 1.390 reais.

Sobre a compra das áreas lindeiras, a Norte Energia alega ao Ibama que falta o governo federal definir como vai acolher a terra, já que a destinação é coletiva. O Conselho Ribeirinho, o Ministério Público Federal e o Ibama tentam articular com o governo que tipo de assentamento tradicional as áreas de fundo à APP vão virar. Procurada por SUMAÚMA, a Norte Energia respondeu por email que não iria se manifestar.

Em maio deste ano, o MPF pediu uma reunião com o secretário-geral da Presidência da República, Márcio Macêdo, e com o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira. O ofício enviado cita "a urgência em superar o processo de violação de direitos" e retomar o compromisso do governo federal em assegurar a reterritorialização dos Ribeirinhos. A reunião ainda não ocorreu.

Primeiro passo para a reparação, o Território Ribeirinho está delimitado, zoneado, com pontos de reocupação definidos no mapa. Foto: Soll/SUMAÚMA

Recusa ao fim, monumento à dor

A demora para consolidar o território aumenta a vulnerabilidade e a pressão sobre as comunidades. Algumas famílias que já estão na beira do reservatório são vizinhas de fazendeiros. Às vezes os Ribeirinhos desistem da roça porque o gado da fazenda invade a área de preservação e destrói tudo. Outras vezes sentem o agrotóxico por pulverização aérea que vem da propriedade ao lado envenenar sua terra tradicional.

Os ruralistas se articulam contra os povos do Xingu. Em março de 2023, o Sindicato dos Produtores Rurais de Altamira (Siralta), para barrar o Território Ribeirinho e impedir desapropriações de propriedades rurais, organizou na cidade uma reunião com a presença dos senadores de ultradireita Damares Alves, do Republicanos do Distrito Federal, e Zequinha Marinho, que estava prestes a trocar o PL do Pará pelo Podemos. Como SUMAÚMA mostrou na época, os parlamentares foram recebidos no aeroporto por Eduardo Camillo, superintendente de Relações Institucionais da Norte Energia.

Três meses depois, Marinho apresentou no Senado um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para sustar os efeitos da condicionante de Belo Monte que assegura o reassentamento ribeirinho nas margens do rio - um revisionismo que tenta retirar direitos das comunidades e sepultar o Território Ribeirinho. Em abril de 2025, o relator na Comissão de Meio Ambiente da Casa, senador Beto Faro, do PT do Pará, considerou que o PDL tem "vício de constitucionalidade" e votou pela rejeição do projeto.

Enquanto isso, faltam condições básicas para os Ribeirinhos. Numa tarde de junho, Gelson Saraiva, de 65 anos, arrumava as malhadeiras de pesca na beira de casa, defronte à Ilha do Pedrão, quando sentiu uma esporada de Arraia. Sua companheira, Francineide Sousa, a França, de 54 anos, ouviu o grito e correu para acudi-lo. Como a assistência de saúde mais próxima fica na cidade, medicou Gelson ali mesmo com óleo de girassol e antibióticos que tinha em casa. Antes da hidrelétrica, a comunidade contava com serviço de saúde na Ilha do Espanhol, no Bacabal. O enfermeiro era Edmo Cabral, o companheiro de Dadá. Nem eles nem o atendimento de saúde retomaram seu lugar.

A Prefeitura de Altamira, em nota, afirmou que a área nas proximidades da Ilha do Espanhol faz parte do planejamento do Território Ribeirinho, "coordenado pela Norte Energia, que prevê a implantação de polos com núcleos de saúde e educação para atendimento às comunidades impactadas". Diz a nota que, em 18 de agosto, houve reunião entre a prefeitura e a empresa para tratar da construção de pontos de apoio, com serviços de educação e saúde, próximo à Ilha do Pedrão e na área entre o Palhal e o Paratizinho. Enquanto isso, segundo a prefeitura, desde fevereiro a Secretaria Municipal de Saúde faz expedições a cada dois meses ao local para atender os Ribeirinhos.

No Paratizão, pedaço do Território Ribeirinho dentro dos limites de Vitória do Xingu, Diony de Lima enquadra o futuro debruçado em sua janela. Ele tem 14 anos e cursa o 9o ano do ensino fundamental, o último oferecido pela escola São Lázaro do Rio. A escola tem uma sede provisória, com apenas duas salas de aula. Os Ribeirinhos contam que foi construída pela própria comunidade, à espera da escola definitiva que a Norte Energia ainda não fez. No ano que vem, se quiser cursar o ensino médio, Diony vai precisar procurar uma escola longe do território - a mais próxima fica a 19 quilômetros de estrada de chão, mais 5 quilômetros no asfalto.

O jovem ribeirinho Diony de Lima vê seu futuro ameaçado caso a Norte Energia continue a adiar a construção da escola no território. Foto: Soll/SUMAÚMA

Procurada por SUMAÚMA, a Prefeitura de Vitória do Xingu afirmou já ter feito várias reuniões com a Norte Energia para a construção da nova escola e de um posto de saúde no Paratizão. Em 2021, segundo a prefeitura, a concessionária garantiu ao município que logo iniciaria as obras, compromisso reiterado em janeiro deste ano. Mas até agora a nova escola, que além do infantil e do fundamental atenderia estudantes do ensino médio, não saiu do papel.

À Norte Energia, SUMAÚMA perguntou por que a escola definitiva do Paratizão e o espaço de atendimento à saúde próximo à Ilha do Pedrão ainda não foram construídos. Questionou por que a concessionária limita a relação dos Ribeirinhos com a terra, proibindo-os de plantar sem autorização, e como se manifesta a respeito de fiscalizações invasivas e constrangimentos relatados pelas famílias. Indagou se há alguma lista de pessoas mais velhas de quem a empresa pretende retirar o direito de ser Ribeirinho, como se ouve no beiradão. E, principalmente, perguntou por que as áreas lindeiras ainda não foram compradas e por que mais da metade das famílias Ribeirinhas continuam morando na cidade. A resposta foi uma não resposta: "A Norte Energia não irá se manifestar".

Dez anos depois da expulsão, a vida dos Ribeirinhos atingidos por Belo Monte ainda não foi recomposta. Em Altamira, escondida atrás de uma abafada casa de alvenaria no RUC Jatobá, Maria Neusa Aragão, de 76 anos, e seu companheiro, Flor Aragão, de 69, botaram de pé outra morada, uma casa ribeirinha, toda de madeira, como a que tinham na Ilha Três Irmãs. Só esta última é de fato casa para Neusa e Flor. Quando a noite cai, lá eles dormem, em suas redes ladeadas. A casa ribeirinha fora de lugar é uma recusa ao fim da existência e ao mesmo tempo um monumento a uma dor que nunca para de doer.

Flor e Maria Neusa Aragão sorriem na casa ribeirinha que fizeram no quintal do RUC, um ato contra a dor da espera pela beira do Xingu. Foto: Soll/SUMAÚMA

Reportagem e texto: Guilherme Guerreiro Neto
Edição: Fernanda da Escóssia
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o castelhano: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: James Young
Infográficos: Ariel Tonglet
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum

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