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BR-319 é bomba-relógio que põe em xeque metas climáticas do Brasil

19/09/2025

Autor: Fábio Bispo

Fonte: Info Amazônia - https://infoamazonia.org



Novo estudo publicado nesta quarta-feira (17) mostra que o surgimento de vias planejadas e ilegais com a obra da rodovia pode desmatar 5,78 milhões de hectares até 2070 e inviabilizar metas do Acordo de Paris.

A reconstrução da BR-319, entre Manaus e Porto Velho, que prevê cruzar o último grande bloco contínuo de floresta da Amazônia brasileira, pode colocar em risco a agenda climática que o Brasil levará à COP30, em Belém. Cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) apontam, em um novo estudo publicado nesta quarta-feira (17) na revista científica Regional Environmental Change, que a abertura de novas vias a partir da rodovia, caso a obra seja realizada, poderá provocar o desmatamento de 5,78 milhões de hectares (ha) até 2070 -uma área maior que a da Suíça (4,1 milhões ha) ou da Dinamarca (4,2 milhões ha).

O estudo analisou dois cenários, um com a BR-319 recuperada, onde o desmatamento cresce rapidamente com a abertura de novas estradas planejadas, como a AM-366, e com o surgimento de vias ilegais, conhecidas como ramais, e que ligam o eixo da rodovia a áreas preservadas da floresta. Já no cenário sem a recuperação da 319, o desmatamento na região se mantém estável.

Segundo os pesquisadores, a rodovia, com cerca de 885 km de extensão, ameaça a sobrevivência do bioma, com possíveis impactos em populações tradicionais, na fauna, na flora e nos grandes estoques de carbono, podendo influenciar até mesmo no regime de chuvas que irriga a agricultura no Centro-Oeste e no Sudeste.

"Com a BR-319, tudo indica que o país terá dificuldade para cumprir a meta de desmatamento zero", diz Aurora Miho Yanai, engenheira florestal e pesquisadora do Inpa, autora principal do estudo.

Com a BR-319, tudo indica que o país terá dificuldade para cumprir a meta de desmatamento zero.

Aurora Miho Yanai, engenheira florestal e pesquisadora do Inpa

A BR-319 foi construída em 1976, durante o processo de ocupação da Amazônia brasileira na Ditadura Militar, mas acabou abandonada no início da década de 1990 por falta de viabilidade econômica.

Na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), o projeto de reconstrução da rodovia foi anunciado como uma das prioridades do seu governo, mobilizando setores como agronegócio, mineração, madeireiras e até o setor de petróleo e gás. O plano é conectar as áreas produtoras aos portos do Arco Norte, que escoa grãos do Centro-Oeste pelos rios Madeira, Tapajós e Amazonas, uma alternativa aos portos de Santos e Paranaguá.

Os autores do estudo analisaram o desmatamento histórico na área de influência da rodovia para fazer as previsões, considerando padrões já observados para o avanço de propriedades e aberturas de ramais.

Os cientistas desenvolveram um modelo de previsão que utilizou dados históricos do desmatamento no entorno da BR-319, incluindo informações sobre os imóveis rurais e os padrões de ocupação já identificados nesta região. O estudo também indica que antes mesmo da abertura das vias planejadas já existe aumento do desmatamento, levando a devastação para longe das estradas pricipais.

Essa tendência já havia sido identificada durante o governo de Bolsonaro, após o anúncio da obra. Em 2022, mais de 46 mil hectares de desmatamento foram registrados na área de influência da rodovia, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) analisados pela InfoAmazonia.

"O desmatamento começa antes mesmo da obra sair do papel. No nosso modelo, três anos antes das estradas, já há ocupação ilegal", afirma Aurora Yanai. Ela explica que com a abertura de novas estradas a partir da rodovia, grileiros e desmatadores têm acesso à área mais preservada da Amazônia, na região Trans-Purus, a oeste do rio Purus.

O desmatamento começa antes mesmo da obra sair do papel. No nosso modelo, três anos antes da estrada, já há ocupação ilegal.

Aurora Yanai, engenheira florestal e pesquisadora do Inpa
As simulações dos pesquisadores mostraram que as florestas públicas não destinadas, terras da União ainda sem uso definido, serão as mais atingidas: o desmatamento nessas áreas pode crescer 728% até 2070, alcançando 3,9 milhões de ha. Só na região Trans-Purus, as perdas previstas chegam a 2 milhões de ha, impactando também unidades de conservação e terras indígenas.

Compromissos impactados e rios voadores em risco
Os compromissos do Brasil no Acordo de Paris para combater as mudanças climáticas preveem o desmatamento zero até 2030, a criação de mais áreas protegidas e a restauração florestal. Com a reconstrução da rodovia sem ações mais eficazes, segundo os especialistas, essas metas não serão alcançadas.

Pelo menos 69 terras indígenas onde vivem 18 povos, incluindo indivíduos totalmente isolados, e 41 unidades de conservação estão na região que pode ser diretamente impactada pela obra da rodovia.

"Nós não somos favoráveis à pavimentação da BR por conta de como está sendo conduzido o processo pelo governo. Sempre nós somos pressionados pelos grandes latifundiários, por grandes empresas que recebem concessão desses grandes empreendimentos e deixam nossa vida vulnerável", afirma o líder indígena Moangathu Jiahui, Coordenador Executivo da Organização dos Povos Indígenas do Alto Rio Madeira (OPIAM).

Segundo Jiahui, todo o processo tem sido conduzido sem respeitar o que prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê o direito à consulta livre, prévia e informada das comunidades tradicionais sempre que algum projeto possa impactar suas terras ou modos de vida.

Em 2022, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) anunciou a conclusão da consulta às populações indígenas, mas as próprias comunidades e o Ministério Público Federal (MPF) criticaram a postura do órgão, apontando violação dos direitos indígenas.

A obra também põe em risco a regulação climática que garante os chamados "rios voadores", correntes de umidade que abastecem o Sudeste e o Centro-Oeste do país com chuvas, como alerta o pesquisador do Inpa Philip Fearnside, doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA), e co-autor da pesquisa que avalia os impactos da rodovia.

"A devastação dessa região, chamada Trans-Purus, que concentra um dos maiores estoques de carbono do planeta, vai afetar o regime de chuvas que sustenta a agricultura do Brasil", diz o cientista. "A Amazônia já caminha para o limite. Com a BR-319, esse processo acelera e pode levar a consequências imprevisíveis: o Nordeste se tornando árido, secas cada vez mais extremas e até eventos climáticos fora dos modelos atuais. É devastador não só para o Brasil, mas para o planeta inteiro", completa.

A devastação dessa região, chamada Trans-Purus, que concentra um dos maiores estoques de carbono do planeta, vai afetar o regime de chuvas que sustenta a agricultura do Brasil.

Philip Fearnside, pesquisador do Inpa
Fearnside, que integrou o grupo ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2007 pelo trabalho de alerta sobre os riscos do aquecimento global, é categórico ao afirmar que a única alternativa viável no momento para preservar esta região da Amazônia é desistir da reconstrução da rodovia.

Segundo o pesquisador, a experiência brasileira mostra que, uma vez aberta a estrada, o governo perde o controle: "Quando se constrói uma rodovia na Amazônia, o resto vem quase que automaticamente, grilagem, invasões e novos ramais. Foi assim na BR-163 e pode ser ainda pior na BR-319".

Fearnside cita o caso da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, em que o governo federal criou um grande mosaico de áreas naturais protegidas na zona de influência da rodovia, com o argumento de preservar a floresta apesar da expansão da via. No entanto, a medida não foi suficiente, e o entorno da BR-163 enfrenta grilagem, desmatamento, queimadas e impactos relacionados a empreendimentos e à expansão do agronegócio.

Lula promete 'consenso', mas esqueceu de combinar
Apesar de não ter conseguido tirar a obra do papel, a gestão de Bolsonaro emitiu uma licença prévia para reconstrução da BR-319, que acabou suspensa no ano passado pela Justiça Federal em uma ação proposta pelo Observatório do ClimaRede que reúne 133 integrantes, entre organizações ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais..

A decisão da Justiça reconheceu a necessidade de preexistência de governança ambiental e controle do desmatamento para que a recuperação da rodovia possa ser iniciada.

Pressionado por parlamentares ligados aos setores que querem a obra, o presidente Lula (PT) afirmou que anunciará um "acordo definitivo" para concluir a BR-319, com "responsabilidade ambiental" e "em comum acordo com os ambientalistas".

No entanto, tudo indica que o presidente enfrentará resistência por parte de ambientalistas, cientistas e das próprias comunidades tradicionais que vivem na região.

"Se a referência do presidente Lula é os ambientalistas de forma geral, o consenso sobre essa obra é impossível. O Observatório do Clima é autor de uma ação judicial contra a licença prévia concedida pelo governo Bolsonaro para esse empreendimento, e detém uma liminar válida. Iremos até o fim com esse processo judicial, pois essa estrada causará graves impactos se não estiver consolidada previamente governança para o controle do desmatamento na região", afirma Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.

Promessa da rodovia fez desmatamento disparar
A reconstrução da rodovia ganhou destaque em maio de deste ano, quando a ministra do Meio Ambiente e das Mudanças do Clima (MMA), Marina Silva, foi ao Senado Federal e alertou para o risco potencial da obra para a Amazônia.

Na época, a ministra afirmou que só com o anúncio da estrada o desmatamento disparou na região, e alertou que a Amazônia se aproxima do ponto de não retorno - quando a floresta perde sua capacidade de regeneração, comprometendo os serviços ambientais e climáticos que beneficiam todo o planeta.

A fala provocou ataques de senadores que defendem a rodovia, que acusaram Marina Silva de apresentar "dados falsos" sobre o desmatamento.

No entanto, imagens de satélites e os dados oficiais de desmatamento analisados pela InfoAmazonia confirmam o que os dados oficiais mostram sobre o desmatamento no entorno da rodovia.

Entre 2019 e 2022, quando o governo Jair Bolsonaro anunciou a obra, mais de 132 mil hectares de floresta foram derrubados no entorno da rodovia - um aumento de 144% em relação à média da década anterior. Em 2023, após a vitória do presidente Lula, o desmatamento na região voltou a cair.

À reportagem, o MMA informou que "a BR-319 só avançará em modelo sustentável, apoiado em ações emergenciais de gestão e em uma Avaliação Ambiental Estratégica" -que pode definir se a construção da rodovia é viável.

"A meta de desmatamento zero até 2030 é inegociável, e o licenciamento ambiental conduzido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) segue parâmetros técnicos, com indicadores de monitoramento e controle", informou o Ministério.

O órgão também diz que o governo federal tem atuado atua para conter o desmatamento no eixo da rodovia, reforçando a fiscalização e integrando esforços institucionais.

https://infoamazonia.org/2025/09/19/br-319-e-bomba-relogio-que-poe-em-xeque-metas-climaticas-do-brasil/
 

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