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Parteiras se adaptam à seca extrema e andam quilômetros para salvar gestantes no Amazonas

22/09/2025

Autor: Jullie Pereira

Fonte: Info Amazonia - https://infoamazonia.org



Associação de parteiras tradicionais pede reconhecimento de piso salarial e leva para COP30 discussão sobre impacto da crise climática na vida das mulheres.

Nos últimos dois anos, 2023 e 2024, rios da Amazônia secaram e se formaram dunas e dunas de areia. Lucimar Pereira Vale, 62 anos, precisou andar quilômetros de distância, às vezes por mais de 1 hora, para exercer o trabalho de parteira. Isso aconteceu seis vezes. "Eu não meço distância. Eu encaro mesmo as dificuldades. Eu não digo assim 'ah, eu não vou porque tenho que andar na praia'. Eu enfrento mesmo, encaro e vou ajudar essas mulheres", diz.

Munida de suas ervas, chá de patinha-de-mulataBebida feita com uma planta medicinal usada para problemas como inflamações, retenção de líquidos e dores. Seu nome se dá porque o formato de suas folhas lembra as patas de animais felinos. e óleos como da copaíba e da andiroba, ela vai ao encontro das parturientes, ou as recebe em sua casa, na cidade de Tefé, a 525 km de Manaus. No ano passado, a situação foi agravada pelo El Niño e pelo aquecimento do Oceano Atlântico, que causaram registros de secas históricas, deixando a vida delas - das parteiras e gestantes - mais difícil.

Lucimar é uma entre as 1.144 mulheres que fazem parte da Associação das Parteiras Tradicionais do Amazonas (APTAM), que trabalham em 38 dos 62 municípios do estado para manter a vida de mulheres e bebês. Essas profissionais enfrentam os eventos extremos, como secas e enchentes, e suas consequências - o aumento das distâncias, das doenças e dos preços dos alimentos e itens maternos.

Tefé possui uma infraestrutura hospitalar maior, com cirurgiões à disposição e unidades de saúde com mais leitos. Por isso, é um município de referência para outros próximos, como Alvarães e Uarini. Gestantes de comunidades ribeirinhas e indígenas realizam consultas, fazem o parto e, para isso, precisam se locomover até Tefé. Normalmente, essa distância de rabeta leva de 40 minutos a 1 hora.

A seca muda esse trânsito e aumenta o tempo do trajeto em quase duas horas, tornando o transporte pelo rio mais caro. A água rala do rio não consegue sustentar as embarcações. Dependendo do porte do barco, é necessário sair para empurrar a pé. Os barqueiros precisam ter muito conhecimento do espaço para saber onde estão navegando, agora com a possibilidade de bater em pedras maiores.

Nessas condições, as mulheres gestantes são prejudicadas. Em alguns casos, quando não conseguem andar, elas são colocadas nas redes e carregadas por homens. Cada um numa ponta da corda leva a parturiente até o encontro das parteiras, que receberam o conhecimento de suas mães e avós. Uma conexão matriarcal que luta contra as consequências dos efeitos climáticos na Amazônia.

Conhecimento das parteiras
O conhecimento das parteiras tem uma função diferente de uma enfermeira com um curso técnico ou de uma doula que acompanha de forma humanizada um parto. Ele é feito de chás de plantas amazônicas, rezas indígenas e práticas adotadas há décadas por mulheres ribeirinhas. Elas também realizam o parto em si, cortando o cordão umbilical e avaliando os sinais vitais das mães.

Maria do Perpetuo Socorro Silva Rodrigues é presidente da associação. Ela começou a fazer partos aos 15 anos. Sua mãe, também chamada Maria, foi parteira das 75 famílias que viviam na comunidade Bacuri, às margens do rio Amazonas, próximo de Tefé, onde Socorro também nasceu. "Eu fiz o parto de três irmãs minhas, uma delas foi na canoa. A minha mãe fazia os partos porque as pessoas chegavam precisando. Às vezes, eu estava dormindo na cama e as mulheres chegavam", conta.

Durante a seca, Socorro conta que as parteiras atenderam mulheres que chegavam a pé, nas redes, de canoa e de carroça. "Depois que elas chegam, são horas e horas de trabalho de parto. A gente não pode adiantar o processo. É o corpo da mulher que comanda, é ela que vai parir. Nosso papel é esperar o momento certo. Durante o dia é muito difícil, porque o clima está cada vez mais quente. Antes, a sombra das árvores deixava o ar fresco, agora até dentro de casa é difícil de aguentar", afirma.

É o corpo da mulher que comanda, é ela que vai parir. Nosso papel é esperar o momento certo. Durante o dia é muito difícil, porque o clima está cada vez mais quente. Antes, a sombra das árvores deixava o ar fresco, agora até dentro de casa é difícil de aguentar.

Maria do Perpetuo Socorro Silva Rodrigues, presidente da APTAM
Além da quentura, a seca também faz aumentar as doenças. É comum a ingestão de água não filtrada. As comunidades cavam a areia até encontrar um olho d'águaNascentes naturais onde a água do lençol freático aflora à superfície, formando pequenas fontes ou poças. Na Amazônia, ribeirinhos e indígenas cavam a areia, especialmente perto dos rios, igarapés ou área de várzea, e encontram a água nos buracos que se formam. ou fazem racionamento. Isso aumenta a chance de malária e diarreia. Com as longas distâncias, os mais idosos sentem dor nos ossos e, quem têm artrose, doença que afeta as articulações, sofre mais.

"Se [a gestante] está com a barriga muito grande e não consegue andar, somos nós que atravessamos o rio para a acompanhar. É um esforço grande, que machuca nossas pernas. Com esse clima de chuva e calor, a gente se molha, depois vem a quentura. Isso traz muita doença. Para nós, está cada vez mais difícil", explica Socorro.

Trabalho de adaptação climática sem reconhecimento
As parteiras que atuam nas comunidades ribeirinhas, sem vínculo empregatício, não entram na folha de pagamento e não são reconhecidas como profissionais da saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Elas realizam seu trabalho gratuitamente e, agora, querem ser incluídas no piso salarial da enfermagem nacional e pretendem levar a discussão à 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30).

Elas já enfrentam os desafios climáticos e desenvolvem estratégias de adaptação em regiões sem atendimento médico, onde seus serviços são essenciais. Em nível federal, as parteiras foram incluídas no piso salarial nacional da enfermagem pela Lei no 14.434, de 4 de agosto de 2022. Contudo, a legislação só reconhece como parteiras aquelas que trabalham em algum estabelecimento de saúde.

"Ela [Lei] aceita a parteira, mas a parteira do hospital, a que tem um curso técnico. Hoje, no estado do Amazonas, apenas duas parteiras entram nesse sistema de piso salarial. Elas são [do município] de Santa Isabel do Rio Negro", explica Socorro.

A cada ano de seca, as parteiras criam novos mecanismos de adaptação - ações e estratégias para lidar com os impactos já sentidos pelas mudanças climáticas. Essas medidas podem e devem receber o apoio do Estado, com obras de infraestrutura, medidas econômicas, mudanças nas práticas agrícolas. O objetivo é reduzir vulnerabilidades e aumentar a resiliência da população.

Para a COP30, o presidente, André Corrêa do Lago, afirmou que a adaptação será um dos temas centrais. O Brasil deve lançar o Plano Clima, que está dividido em 16 planos setoriais e a Estratégia Nacional de Adaptação. Existem os eixos temáticos de agricultura, mineração, povos indígenas, combate ao racismo, energia, saúde, transporte, dentre outros.

O que as parteiras tradicionais querem é estar no centro do debate sobre o impacto da crise climática na vida das mulheres, com o próprio trabalho sendo valorizado. No momento, estão tentando credenciamento na zona verde da conferência, para levantar da luta pela justiça climática, entregando cartas e solicitando os pedidos às autoridades.

"Nós estamos lutando pelo básico. Precisamos de kits de maternidade para as gestantes, cestas básicas, o essencial", explica Socorro.

A InfoAmazonia procurou o Ministério da Saúde e questionou sobre a inserção das parteiras tradicionais nas políticas públicas do SUS. Em nota, o ministério informou que o piso realmente só é válido para profissionais que estão "formalmente vinculados a um estabelecimento de saúde público ou privado (via CLT, estatutário ou servidor temporário), com registro no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e enquadramento na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/MTE), especificamente como parteira (CBO 5151-15)".

"O piso não se aplica a parteiras que atuam sem vínculo formal, sem registro em CBO/CNES e sem habilitação no Coren. A legislação estabelece que se trata de um direito trabalhista/remuneratório, restrito às profissionais com vínculo de emprego ou cargo público em serviços de saúde, inclusive em entidades conveniadas ou contratualizadas pelo SUS", afirmaram.

https://infoamazonia.org/2025/09/22/parteiras-se-adaptam-a-seca-extrema-e-andam-quilometros-para-salvar-gestantes-no-amazonas/
 

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