De Povos Indígenas no Brasil
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Notícias
Indígena faz de bairro de Manaus símbolo de luta por direitos e dignidade
15/09/2025
Fonte: FSP - https://www1.folha.uol.com.br/
Indígena faz de bairro de Manaus símbolo de luta por direitos e dignidade
Vanda Witoto criou escola de saberes ancestrais e ateliê de moda no Parque das Tribos após liderar luta por serviços básicos na pandemia
Ativista é finalista do Empreendedor Social 2025 na categoria Soluções que Inspiram
15/09/2025
Victória Pacheco
O ponteiro do relógio se aproximava do meio-dia quando Vanda Witoto e sua família ouviram o apito do barco que a levaria até Manaus. Em silêncio, eles se apressaram rumo ao porto de Amaturá (AM), ponto de partida da travessia de três dias que a adolescente de 16 anos faria sobre o rio Solimões.
"Todos estavam segurando o choro", relembra a indígena do povo witoto, que embarcou sozinha e sem data de retorno, incentivada pelo pai a estudar e trabalhar na capital amazonense.
Enquanto a embarcação desaparecia no horizonte, Vanda viu a mãe sucumbir às lágrimas. A imagem, que ficou marcada na memória da amazonense, hoje com 38 anos, foi prelúdio da jornada iniciada em 2002, que a separaria dos familiares por quase uma década.
Dor retratada em um documentário, em fase de produção, sobre a experiência de mulheres indígenas forçadas a migrar para a cidade grande, o que elas consideram uma espécie de sequestro. "Você não consegue voltar para perto da sua família e nem sabe como esse retorno é possível."
Em Manaus, Vanda virou empregada doméstica, ganhando R$ 100 por mês. "Eu trabalhava basicamente por comida e para ter onde dormir."
Ao longo de seis anos, passou por situações de violência, incluindo assédio sexual. O primeiro emprego com carteira assinada foi em uma loja de tortas, onde o salário-mínimo lhe permitiu fazer um curso técnico de enfermagem.
Anos depois, ela prestaria vestibular para pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas. A inscrição na cota para indígenas a fez se aprofundar na própria origem.
Seus antepassados witoto fugiram da Colômbia no ciclo da borracha, após massacre que resultou em 50 mortes. Os sobreviventes, incluindo sua avó paterna, Teresa, buscaram refúgio no Brasil e no Peru.
Em terras brasileiras, foram acolhidos por missionários católicos na região do Alto Rio Solimões. Lá, fundaram o que viria a ser a aldeia Colônia.
No momento da inscrição para o vestibular, a estudante descobriu que era do clã Derequine -"formiga brava", na língua dos witoto. Uma informação contida no seu Rani (Registro Administrativo de Nascimento de Indígena).
A matriarca, Leia Kokama, guardava o papel sem entender sua serventia. "Vanda fez a gente descobrir que aquele documento era importante." Foi assim que a futura líder dos witoto descobriu seu nome indígena, aos 27 anos. "Senti revolta. Como isso tinha sido negado a mim?", questiona.
Ao ingressar na universidade, ela ainda se apresentava como Vanderlecia Ortega, seu "nome branco".
Vanda liderou um movimento de 20 alunos indígenas para garantir permanência no ambiente acadêmico. E foi a primeira do seu povo a obter diploma universitário -mas não a única mulher indígena a sofrer violências no contexto urbano.
"Na universidade, fui escutar as histórias daquelas que vivenciaram as mesmas violências, de exploração sexual e de trabalho escravo."
Dez anos depois, ela está à frente do Instituto Witoto, com a missão de garantir direitos e impedir o apagamento histórico das 35 etnias que hoje convivem no Parque das Tribos, bairro indígena na periferia de Manaus.
Nascia também a Vanda empreendedora social, à frente do Ateliê Derequine, que empodera artesãs indígenas, e da escola ancestral Jofo Nimairama ("casa de conhecimento", na língua dos witoto).
Espaços dedicados a mulheres, que encontram no ateliê de moda uma saída para a violência doméstica, e a crianças, que aprendem a língua materna e suas tradições.
Vanda chegou em 2016 ao território que abriga 700 famílias, cerca de 3.000 pessoas. Juntou-se à luta de Lutana e Messias Kokama, a fundadora e o então cacique do Parque das Tribos. Eles enfrentaram mais de dez pedidos de reintegração de posse antes de a comunidade ser reconhecida oficialmente em 2019.
Dos 15 universitários indígenas que se mudaram para lá, apenas Vanda permaneceu. "Chegamos a perder três parentes eletrocutados tentando trazer eletricidade para cá", relata.
Os problemas se agravaram na pandemia. "Nosso cacique morreu porque não havia nenhum atendimento médico no território. Não foi liberada ambulância", indigna-se Vanda.
A técnica de enfermagem, primeira pessoa vacinada contra a Covid-19 no Amazonas, montou um hospital de campanha e utilizou as redes sociais para arrecadar recursos para a compra de oxigênio e medicamentos.
Ao lado de lideranças indígenas, Vanda assinou uma carta pedindo a construção de uma Unidade Básica de Saúde, o que aconteceu apenas em 2024.
Outras mobilizações resultaram em acordo com uma concessionária de água, a instalação de rede elétrica e uma escola municipal.
"As crianças precisavam se deslocar até o centro para estudar, mas a maioria não ia por falta de dinheiro", afirma Vanda, que cede o quintal de sua casa para que quase uma centena delas faça atividades educativas nas manhãs de sábado.
"Buscamos fortalecer nossa cultura para que elas cresçam reconhecendo sua identidade e adquiram autoestima", explica, enquanto espalha no chão instrumentos como flautas e maracás, na sala de aula improvisada ao ar livre.
Pais da comunidade já pediram para que os filhos não fossem pintados com urucum e jenipapo, por medo de que sofressem preconceito.
Negação de identidade que marcou a chegada dos witoto ao Brasil. "Eles não podiam falar a nossa língua, nem viver sua espiritualidade e rituais, pois eram perseguidos", diz Vanda.
Clara Dias, 39, da etnia tukano, tem cinco filhos matriculados na escola do Parque das Tribos. "Quando chegamos, deixamos de ensinar nossa cultura para os filhos. Pedimos que não se identificassem como indígenas", conta a auxiliar de cozinha, que se mudou para Manaus há 15 anos.
Hoje, ela vê orgulhosa os rebentos reivindicando sua identidade. "A primeira vez que minha filha disse em público que era da nossa etnia me emocionei. Agora ela sabe que é uma menina indígena."
Esse orgulho se traduz nas peças do Ateliê Derequine, confeccionadas com grafismos tradicionais por oito mulheres -entre elas, a mãe e a irmã de Vanda-, que se reúnem de segunda a sexta na área de serviço da casa da presidente do Instituto Witoto.
Ali, ao redor de uma mesa de madeira que, na hora do almoço, troca os tecidos por pratos de comida, o trabalho flui, interrompido vez ou outra por vizinhos em busca da ajuda, como as cestas básicas que o instituto distribui.
No canto do cômodo, encostada na parede de alvenaria, uma máquina de costura dá forma às peças, que depois são pintadas à mão e deixadas para secar em um varal improvisado, antes de serem penduradas em duas araras metálicas no corredor.
A produção garante a cada artesã, em média, um salário-mínimo por mês. O ateliê conquistou clientes pelo Brasil e fatura cerca de R$ 18 mil mensais.
"Vanda foi a primeira mulher a montar um negócio no Parque das Tribos. E muitas daquelas que passaram pelo ateliê hoje têm seus próprios negócios", diz Lutana, que critica o machismo na comunidade. "Nosso território é liderado por mulheres, mas muitos homens daqui não aceitam nosso trabalho por dizer que, nos povos deles, não existe isso."
A ex-empregada doméstica que virou líder estudantil e indígena vê hoje sua voz ganhar ressonância global. Vanda participou de duas COPs, em 2022, no Egito, e em 2023, em Dubai, e se prepara para ir a Belém em novembro.
Para além do ativismo em favor dos povos originários como guardiões da floresta, a empreendedora social planeja construir uma maloca para ampliar a escola ancestral e empregar mais artesãs, a começar pelas 18 que passaram por um curso de corte e costura em parceria com o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas.
"Temos histórias de mulheres no ateliê que conseguiram romper ciclos de violência e conquistar independência financeira", orgulha-se a "formiga brava". "Garantir autonomia é garantir nossa segurança."
EM NÚMEROS
3.000 indígenas
vivem hoje no Parque das Tribos, maior concentração indígena urbana
R$ 200 mil
foram movimentados pelas iniciativas do Instituto Witoto em 2024
88 crianças
com idades de 4 a 12 anos frequentam a escola Jofo Nimairama, criada por Vanda Witoto
400 refeições
são distribuídas por mês pela cozinha solidária apoiada pelo Instituto Witoto
1,7 milhão de indígenas
vive no Brasil, sendo que 914 mil destes estão em áreas urbanas (ou 53,97%), segundo o IBGE
https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2025/09/indigena-faz-de-bairro-de-manaus-simbolo-de-luta-por-direitos-e-dignidade.shtml
Vanda Witoto criou escola de saberes ancestrais e ateliê de moda no Parque das Tribos após liderar luta por serviços básicos na pandemia
Ativista é finalista do Empreendedor Social 2025 na categoria Soluções que Inspiram
15/09/2025
Victória Pacheco
O ponteiro do relógio se aproximava do meio-dia quando Vanda Witoto e sua família ouviram o apito do barco que a levaria até Manaus. Em silêncio, eles se apressaram rumo ao porto de Amaturá (AM), ponto de partida da travessia de três dias que a adolescente de 16 anos faria sobre o rio Solimões.
"Todos estavam segurando o choro", relembra a indígena do povo witoto, que embarcou sozinha e sem data de retorno, incentivada pelo pai a estudar e trabalhar na capital amazonense.
Enquanto a embarcação desaparecia no horizonte, Vanda viu a mãe sucumbir às lágrimas. A imagem, que ficou marcada na memória da amazonense, hoje com 38 anos, foi prelúdio da jornada iniciada em 2002, que a separaria dos familiares por quase uma década.
Dor retratada em um documentário, em fase de produção, sobre a experiência de mulheres indígenas forçadas a migrar para a cidade grande, o que elas consideram uma espécie de sequestro. "Você não consegue voltar para perto da sua família e nem sabe como esse retorno é possível."
Em Manaus, Vanda virou empregada doméstica, ganhando R$ 100 por mês. "Eu trabalhava basicamente por comida e para ter onde dormir."
Ao longo de seis anos, passou por situações de violência, incluindo assédio sexual. O primeiro emprego com carteira assinada foi em uma loja de tortas, onde o salário-mínimo lhe permitiu fazer um curso técnico de enfermagem.
Anos depois, ela prestaria vestibular para pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas. A inscrição na cota para indígenas a fez se aprofundar na própria origem.
Seus antepassados witoto fugiram da Colômbia no ciclo da borracha, após massacre que resultou em 50 mortes. Os sobreviventes, incluindo sua avó paterna, Teresa, buscaram refúgio no Brasil e no Peru.
Em terras brasileiras, foram acolhidos por missionários católicos na região do Alto Rio Solimões. Lá, fundaram o que viria a ser a aldeia Colônia.
No momento da inscrição para o vestibular, a estudante descobriu que era do clã Derequine -"formiga brava", na língua dos witoto. Uma informação contida no seu Rani (Registro Administrativo de Nascimento de Indígena).
A matriarca, Leia Kokama, guardava o papel sem entender sua serventia. "Vanda fez a gente descobrir que aquele documento era importante." Foi assim que a futura líder dos witoto descobriu seu nome indígena, aos 27 anos. "Senti revolta. Como isso tinha sido negado a mim?", questiona.
Ao ingressar na universidade, ela ainda se apresentava como Vanderlecia Ortega, seu "nome branco".
Vanda liderou um movimento de 20 alunos indígenas para garantir permanência no ambiente acadêmico. E foi a primeira do seu povo a obter diploma universitário -mas não a única mulher indígena a sofrer violências no contexto urbano.
"Na universidade, fui escutar as histórias daquelas que vivenciaram as mesmas violências, de exploração sexual e de trabalho escravo."
Dez anos depois, ela está à frente do Instituto Witoto, com a missão de garantir direitos e impedir o apagamento histórico das 35 etnias que hoje convivem no Parque das Tribos, bairro indígena na periferia de Manaus.
Nascia também a Vanda empreendedora social, à frente do Ateliê Derequine, que empodera artesãs indígenas, e da escola ancestral Jofo Nimairama ("casa de conhecimento", na língua dos witoto).
Espaços dedicados a mulheres, que encontram no ateliê de moda uma saída para a violência doméstica, e a crianças, que aprendem a língua materna e suas tradições.
Vanda chegou em 2016 ao território que abriga 700 famílias, cerca de 3.000 pessoas. Juntou-se à luta de Lutana e Messias Kokama, a fundadora e o então cacique do Parque das Tribos. Eles enfrentaram mais de dez pedidos de reintegração de posse antes de a comunidade ser reconhecida oficialmente em 2019.
Dos 15 universitários indígenas que se mudaram para lá, apenas Vanda permaneceu. "Chegamos a perder três parentes eletrocutados tentando trazer eletricidade para cá", relata.
Os problemas se agravaram na pandemia. "Nosso cacique morreu porque não havia nenhum atendimento médico no território. Não foi liberada ambulância", indigna-se Vanda.
A técnica de enfermagem, primeira pessoa vacinada contra a Covid-19 no Amazonas, montou um hospital de campanha e utilizou as redes sociais para arrecadar recursos para a compra de oxigênio e medicamentos.
Ao lado de lideranças indígenas, Vanda assinou uma carta pedindo a construção de uma Unidade Básica de Saúde, o que aconteceu apenas em 2024.
Outras mobilizações resultaram em acordo com uma concessionária de água, a instalação de rede elétrica e uma escola municipal.
"As crianças precisavam se deslocar até o centro para estudar, mas a maioria não ia por falta de dinheiro", afirma Vanda, que cede o quintal de sua casa para que quase uma centena delas faça atividades educativas nas manhãs de sábado.
"Buscamos fortalecer nossa cultura para que elas cresçam reconhecendo sua identidade e adquiram autoestima", explica, enquanto espalha no chão instrumentos como flautas e maracás, na sala de aula improvisada ao ar livre.
Pais da comunidade já pediram para que os filhos não fossem pintados com urucum e jenipapo, por medo de que sofressem preconceito.
Negação de identidade que marcou a chegada dos witoto ao Brasil. "Eles não podiam falar a nossa língua, nem viver sua espiritualidade e rituais, pois eram perseguidos", diz Vanda.
Clara Dias, 39, da etnia tukano, tem cinco filhos matriculados na escola do Parque das Tribos. "Quando chegamos, deixamos de ensinar nossa cultura para os filhos. Pedimos que não se identificassem como indígenas", conta a auxiliar de cozinha, que se mudou para Manaus há 15 anos.
Hoje, ela vê orgulhosa os rebentos reivindicando sua identidade. "A primeira vez que minha filha disse em público que era da nossa etnia me emocionei. Agora ela sabe que é uma menina indígena."
Esse orgulho se traduz nas peças do Ateliê Derequine, confeccionadas com grafismos tradicionais por oito mulheres -entre elas, a mãe e a irmã de Vanda-, que se reúnem de segunda a sexta na área de serviço da casa da presidente do Instituto Witoto.
Ali, ao redor de uma mesa de madeira que, na hora do almoço, troca os tecidos por pratos de comida, o trabalho flui, interrompido vez ou outra por vizinhos em busca da ajuda, como as cestas básicas que o instituto distribui.
No canto do cômodo, encostada na parede de alvenaria, uma máquina de costura dá forma às peças, que depois são pintadas à mão e deixadas para secar em um varal improvisado, antes de serem penduradas em duas araras metálicas no corredor.
A produção garante a cada artesã, em média, um salário-mínimo por mês. O ateliê conquistou clientes pelo Brasil e fatura cerca de R$ 18 mil mensais.
"Vanda foi a primeira mulher a montar um negócio no Parque das Tribos. E muitas daquelas que passaram pelo ateliê hoje têm seus próprios negócios", diz Lutana, que critica o machismo na comunidade. "Nosso território é liderado por mulheres, mas muitos homens daqui não aceitam nosso trabalho por dizer que, nos povos deles, não existe isso."
A ex-empregada doméstica que virou líder estudantil e indígena vê hoje sua voz ganhar ressonância global. Vanda participou de duas COPs, em 2022, no Egito, e em 2023, em Dubai, e se prepara para ir a Belém em novembro.
Para além do ativismo em favor dos povos originários como guardiões da floresta, a empreendedora social planeja construir uma maloca para ampliar a escola ancestral e empregar mais artesãs, a começar pelas 18 que passaram por um curso de corte e costura em parceria com o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas.
"Temos histórias de mulheres no ateliê que conseguiram romper ciclos de violência e conquistar independência financeira", orgulha-se a "formiga brava". "Garantir autonomia é garantir nossa segurança."
EM NÚMEROS
3.000 indígenas
vivem hoje no Parque das Tribos, maior concentração indígena urbana
R$ 200 mil
foram movimentados pelas iniciativas do Instituto Witoto em 2024
88 crianças
com idades de 4 a 12 anos frequentam a escola Jofo Nimairama, criada por Vanda Witoto
400 refeições
são distribuídas por mês pela cozinha solidária apoiada pelo Instituto Witoto
1,7 milhão de indígenas
vive no Brasil, sendo que 914 mil destes estão em áreas urbanas (ou 53,97%), segundo o IBGE
https://www1.folha.uol.com.br/folha-social-mais/2025/09/indigena-faz-de-bairro-de-manaus-simbolo-de-luta-por-direitos-e-dignidade.shtml
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