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A semana em que os Guarani no Continente decidiram 'derrubar o Mundo'

17/10/2025

Autor: Por Flávio V. Machado, da Equipe de Incidência Internacional do Conselho Indigenista Missionário

Fonte: Cimi - https://cimi.org.br



Desde que o cacique Guarani-carijó Arosca decidiu enviar um de seus filhos, Iça-mirim, à Europa, em 1504, para aprender artilharia, iniciava-se uma resistência dos povos que falavam Guarani e que em poucos anos se espalharia por toda uma territorialidade invadida e de escala continental. Essas resistências ressoaram de geração em geração, através de eventos únicos, não lineares, multicosmológicos e com repertórios próprios. E, alcançando os Guarani contemporâneos, agenciam nas forjas do tempo e do espaço o exercício de sua inerente autodeterminação sobre uma pertencente territorialidade não cedida aos invasores. Uma indigeneidade que caminha e reafirma "lealtad sobre tumbas, piedra sagrada".

Cerca de 520 anos depois, Avá Ruvicha Mirim, conhecido em português por Fidencio Vera, ñandeva, oferece-nos, em sua dissertação, uma cosmopolítica que ressoa esse legado. Ela não apenas lembra o passado: projetando-o ao presente, desafia o Estado, recupera voz, reivindica existência, com a seguinte compreensão cosmopolítica:

"[...] conforme a cosmologia Guarani, a terra está sustentada sobre um ponto de apoio que, a qualquer momento, pode cambalear-se e cair. [...] as crises e os riscos causados pelas ações humanas na dinâmica da modernidade e do capitalismo mundial podem acelerar a destruição do mundo. Isso porque, os tempos difíceis que vivenciamos não se tratam apenas de crises nas dimensões sociais, políticas, econômicas, dentre outros, mas uma ameaça global à vida e a existência de todos os seres que partilham o espaço na Terra. O desequilíbrio tanto da negatividade e positividade é iminente. Em verdade, a Terra já está esgotada, as águas estão diminuindo, os animais sumindo, suplicando ao Ñande Ruete que acabe com tudo isso."
O que os Guarani, mais uma vez, expuseram nos últimos dias é a resistência histórica do choque continuum e inevitável entre projetos de mundo antagônicos

Por óbvio, isto não é mais uma metáfora, e sim um diagnóstico. A cosmopolítica de Vera surge como um alerta cósmico e ético, revelando como o pensamento Guarani articula passado, presente e ação política. Ela dialoga com a ciência política contemporânea ao descrever a mesma crise: um sistema que, ao devorar territórios e múltiplas formas de vida, condena todos e tudo ao "Mba'e Megua": a crise, o desequilíbrio, a iminência do fim. Mas não se trata de um destino inevitável: há resistência! E nela reside um pulsar de esperança, ainda que cataclísmico, em reconstruir o equilíbrio perdido.

Percorrendo de acampamento tenso em frente à Casa de Governo em Misiones, Argentina, passando pelas estradas bloqueadas que asfixiam o agronegócio e o sistema econômico na Bolívia e Paraguai, até a terra retomada à sangue e rezas em Guyraroka, Passo Piraju e Guyra Gueyjhã (antigos Avaete 1 e 2), em Mato Grosso do Sul, o que assistimos não é uma série de incidentes sem conexão, "conflitos locais", mas uma única e vasta operação política. Uma indigeneidade cosmo-coordenada que, por sua própria força, agencia todos esses atores e eventos em uma convergência que derrubou mundos e privilégios. O que os Guarani, mais uma vez, expuseram nos últimos dias é a resistência histórica do choque continuum e inevitável entre projetos de mundo antagônicos.

Argentina: o acampamento do sentir-agir dignidade

Os registros da mais nova ofensiva continental Guarani começam pela territorialidade originária Guarani não cedida à Argentina, onde lideranças de 50 comunidades Guarani-Mbyá acamparam, a partir do dia 15 de setembro, no coração do poder político da Província de Misiones, em frente à Casa de Governo, em Posadas. Os indígenas reivindicavam, frente às invasões dos territórios por empresas madeireiras de pinus, projetos de turismo e pelo agronegócio, que o governador Hugo Passalacqua os recebesse. Em matéria produzida pela 'Equipo Nacional de Pastoral Aborigen (ENDEPA)', entidade vinculada à Conferência Episcopal Argentina, o Mburuvicha Hilario Moreira afirmou que a mobilização é resultado da falta de diálogo com o governo provincial e da histórica postergação dos direitos indígenas:

"A reivindicação se baseia no fato de que o governo não nos recebe. Sabemos que estamos muito postergados em termos de direitos. Nossas reivindicações básicas são pelos territórios, pois eles são a nossa grande casa. Daí depende a sobrevivência das comunidades. Não pedimos favores, estamos exigindo o que nos pertence."
As reivindicações centrais do Povo Guarani-Mbyá incluem a demarcação e restituição de seus territórios ancestrais, uma questão intensificada pelo descumprimento da Lei 26.160, que há quase duas décadas determinou a realização de um levantamento territorial que segue inconcluso na província; respeito às instituições próprias como Povos Pré-existentes; além do acesso a serviços essenciais como saúde, educação, moradia e água: direitos básicos que, segundo o direito internacional, o Estado argentino tem a obrigação de garantir e que são impossíveis de serem efetivados sem a demarcação do território.

Após a forte pressão, o governo provincial assinou o compromisso de realizar uma Assembleia Geral dos Mburuvichas no próximo dia 14 de outubro na Comunidade El Pocito, Capioví. No entanto, para muitas lideranças e seus aliados, a medida foi vista como uma estratégia para desmobilizar o acampamento sem, contudo, apresentar soluções estruturais para as reivindicações territoriais históricas.

Onde a política e a espiritualidade se entrelaçam, mulheres, homens e crianças dançam uma Aty viva, pulsante, tecida em reza e resistência, que faz de seus corpos o próprio território da denúncia e da esperança de um porvir que abençoará a todos

Acampados por dias diante da sede do poder em Posadas, transformaram o chão pisado em altar e trincheira. Seus corpos e cantos deram matéria e estrondo à denúncia de um Estado colonial e repressor que insiste na antiga tática de ignorá-los por medo. Afinal, o "corpo é o lugar onde o poder e a verdade se enfrentam" e o antagonismo vivo e necessário da proposta de sociedade dos Guarani significa, também, o fim do modelo europeu de Estado-colonial.

As resistências como brisa dos Guarani-Mbyá em Misiones, sobretudo das mulheres, que sustentam com ternura e firmeza o fogo das lutas de geração em geração, são um testemunho que transcende a conhecida questão indígena. Ali, onde a política e a espiritualidade se entrelaçam, mulheres, homens e crianças dançam uma Aty viva, pulsante, tecida em reza e resistência, que faz de seus corpos o próprio território da denúncia e da esperança de um porvir que abençoará a todos.

Paraguai: a fúria das massas que derrubou o poder

Enquanto ocorriam as manifestações na Argentina, em 20 de setembro, na territorialidade originária Guarani não cedida ao Paraguai, a Articulação Nacional Indígena por uma Vida Digna (ANIVID), que reúne 34 organizações indígenas e conta entre seus dirigentes com lideranças como Mario Rivarola, do povo Avá-Guarani, e Maria Luisa Duarte Guarani, intensificava ações de resistência direta em escala nacional. Rodovias foram bloqueadas, e uma marcha massiva foi convocada para o centro de Assunção. As mobilizações expressavam uma reação coletiva à violência contínua e à omissão estatal, unificando comunidades de diferentes regiões em torno de reivindicações convergentes: a saída imediata do presidente do Instituto Paraguaio do Indígena (INDI), a reabertura de sua sede central e o fim das violências contra as comunidades.

O sitiamento provocou uma grave crise alimentar, a impossibilidade de acesso a cuidados médicos e um estado permanente de medo e intimidação, agravado pela conivência de agentes do Ministério Público de Katueté

Um ataque brutal à comunidade Avá Guarani, tekoha Karapá, situada em Ypejhú, Canindeyú, em 1o de outubro, deixou casas destruídas e feriu a liderança Gildo Romero Benialgo. O episódio tornou-se o estopim de uma mobilização que já se gestava havia meses, diante dos sistemáticos despejos forçados promovidos tanto pelas forças de segurança do Estado quanto por milícias do agronegócio. Há quase um mês, a empresa Agropecuária Principado S/A mantém toda a comunidade de Karapá em cativeiro: portões e guardas armados foram instalados nos principais acessos públicos, impedindo a entrada e a saída das famílias. O sitiamento provocou uma grave crise alimentar, a impossibilidade de acesso a cuidados médicos e um estado permanente de medo e intimidação, agravado pela conivência de agentes do Ministério Público de Katueté. A escalada da violência se expressa não apenas em ataques armados, mas, sobretudo, na falência do Estado, que compactua com o bloqueio da atuação policial por seguranças privados da empresa Visión Global S.A.

O movimento indígena acionou o promotor Néstor Narváez, de Curuguaty, que visitou a comunidade no dia 3. Naquela mesma noite, o grupo foi novamente atacado, obrigando famílias e crianças a se abrigarem na mata. A comunidade também acusa que o grupo de pessoas envolvidas em uma série de atropelamentos e nestas destruições das casas, ataques e estados de sítio milicianos é composto por ruralistas brasileiros que adquiriram propriedades na região. O poder envolvido seria a causa das negligências dos poderes públicos. Trata-se de uma emergência que exige intervenção imediata para garantir o direito à vida, à dignidade e ao território dos Guarani.

No distrito de Raúl Arsenio Oviedo, departamento de Caaguazú, em 2 de outubro, um xamã Guarani ergueu a voz no meio da avenida. Cantou com seu mbaraka como um coração antigo, promovendo diálogo e reciprocidade entre os espíritos donos-protetores envolvidos, dançou de um lado para o outro e proferiu palavras de encorajamento e resistência diante de cerca de cem Xondaros Guarani, perfilados em uma barreira de guerreiros, portando seus yvyra para. Do outro lado, aproximadamente trinta policiais do batalhão de choque empunhavam escudos e armas de fogo. O confronto ocorreu. O caos se instalou. Entre poeira, correrias e cânticos, os Guarani fizeram recuar as forças de segurança.

A queda do presidente do INDI representa uma vitória sobre a estrutura formal do Estado

A pressão coordenada tornou-se insustentável para o governo e, no dia 3 de outubro, a mobilização nacional alcançou seu objetivo: o governo cedeu, e o general da reserva Juan Ramón Benegas foi exonerado da presidência do INDI. A vitória abriu um canal de negociação imediato e, no mesmo dia, lideranças indígenas se reuniram com o novo presidente do órgão para apresentar suas exigências: a reabertura da sede central do INDI, a instalação de uma Mesa Nacional de Diálogo, a ampliação do orçamento para a compra de terras e o fim dos despejos forçados. Mas enquanto a vitória era negociada nos gabinetes da capital, a violência no campo não dava trégua. Naquela mesma noite, a comunidade de Tekoha Karapá foi novamente atacada.

Todo este contexto, e em especial os acontecimentos contraditórios de 3 de outubro, confirma que a resistência, inicialmente voltada à defesa do acesso à terra, desdobrou-se em uma grave crise institucional. A queda do presidente do INDI representa uma vitória sobre a estrutura formal do Estado. Contudo, a persistência dos ataques evidencia que a luta também se dá contra um poder paralelo, violento e conivente, que invade e opera nos territórios. A crise expõe a degradação de um Estado que se revela incapaz de cumprir suas obrigações constitucionais e internacionais de proteger os povos indígenas.

Brasil: a pedagogia do pertencimento contra o agrobanditismo estatal

Na madrugada de domingo, 21 de setembro, menos de 24h após os Mbyá Guarani encerrarem seu protesto na Praça 9 de Julho, em Posadas, e, enquanto no Paraguai os diversos povos Guarani se entrincheiravam nos bloqueios de estrada que antecederam a marcha nacional, na territorialidade originária Guarani não cedida ao Brasil, um casal de xamãs Kaiowá centenários, Ñanderu Papito (Tito), de 106 anos, e Ñandesy Miguela, de 98 anos, cansados de sofrerem com a contaminação aguda de mulheres e crianças por agrotóxicos e da impossibilidade de plantar sua própria alimentação, devido a falta de espaço, onde há mais de 30 anos, 120 pessoas sobrevivem em 50 hectares, rezava sobre sua comunidade e a terra reconquistada. Pediam a proteção de Ñanderuvusu, 'Nosso Grande Pai', diante do iminente ataque do batalhão de choque da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso do Sul, que se preparava para avançar contra eles. A resposta do Estado foi imediata, brutal e ilegal.

No mesmo dia, em resposta aos mesmos problemas e guiados pelo mesmo espírito, a comunidade Kaiowá de Passo Piraju, em Dourados, também retomou parte de seu território e recebeu igual resposta do batalhão de choque sob o comando do governador Eduardo Riedel. Conhecido ruralista, o atual chefe do Executivo estadual, quando presidia a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul, organizou o chamado "leilão da resistência", que, se não fosse impedido pela Justiça, visava armar fazendeiros da região. A atuação ilegal da Polícia Militar como segurança privada para fazendeiros não é um fato isolado; trata-se de uma política deliberada, debatida e planejada anos antes em uma audiência pública organizada por deputados ruralistas e entidades de classe na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul.

A gravidade da situação foi reconhecida internacionalmente quando este mandato da ONU, vinculado diretamente ao seu Secretário-Geral, concedeu ao casal Ñanderu Papito e Ñandesy Miguela o prêmio "Campeões da Prevenção Raphael Lemkin 2023

Essa violência estrutural e sistemática do Estado pode se enquadrar em terrorismo de Estado, em que as Forças de Segurança Pública atacam uma população civil desarmada, e constitui fatores de risco de crimes contra a humanidade e, dada a intencionalidade, também de genocídio, ambos fatores estabelecidos pelo Escritório de Prevenção do Crime de Genocídio das Nações Unidas. A gravidade da situação foi reconhecida internacionalmente quando este mandato da ONU, vinculado diretamente ao seu Secretário-Geral, concedeu ao casal Ñanderu Papito e Ñandesy Miguela o prêmio "Campeões da Prevenção Raphael Lemkin 2023. A homenagem do escritório da ONU conseguiu reunir em poucas palavras a importância e os custos políticos que as violências contra a comunidade acarretam:

"A negação de seus direitos à terra criou condições que ameaçam constantemente a sobrevivência desta comunidade. Eles representam o verdadeiro espírito de prevenção de um grupo protegido que enfrenta a aniquilação. Ao longo de suas vidas, foram vítimas de inúmeros deslocamentos forçados que os expulsaram de suas terras tradicionais. Toda a sua comunidade vive em uma pequena área de 50 hectares, parte de seu território original chamado Guyraroka, que foi reconhecido pelo Executivo, mas depois anulado pelo Judiciário brasileiro. Sua comunidade de pouco mais de 100 pessoas está constantemente sob ameaças, ataques de pistoleiros e pulverização aérea e terrestre de agrotóxicos, o que os impede de produzir seus alimentos tradicionais e ter acesso à água potável, além de causar doenças, principalmente entre mulheres e crianças. O Sr. Tito e a Sra. Miguela, apesar de suas idades (103 e 96 anos, respectivamente), são incansáveis nas orações por seu povo, na defesa de seu território e na defesa de suas terras para que um dia seu povo possa cuidar de sua terra, trazendo de volta os animais, as plantas, as árvores e todos os espíritos que habitam essas florestas. Eles são guardiões e protetores do conhecimento ancestral de cuidado com seu povo e seu entorno. Seu espírito incansável continua lutando pela demarcação definitiva de seu território tradicional (Escritório de Prevenção de Genocídio das Nações Unidas, dezembro de 2023)."

Já há algum tempo é possível afirmar que o Mato Grosso do Sul se tornou o epicentro de uma resistência originária contra o agro-Estado e tudo o que ele representa, um complexo das principais violências contra os povos indígenas, com repercussões nacionais e internacionais. Os Kaiowá e Guarani não podem mais esperar pela Justiça. A autodemarcação de seus territórios não cedidos, realizada por meio das retomadas, é um ato de autodeterminação direta, em outros termos, a aplicação imediata de seus direitos sobre as terras que tradicionalmente sempre ocuparam. Por isso, a resposta estatal é a violência, operada à margem da lei por um aparelho repressor forjado e controlado por aqueles que historicamente invadiram e violentaram esses corpos-territórios.

O futuro da comunidade depende diretamente de uma decisão do STF, que pode restabelecer o reconhecimento oficial de sua Terra Indígena

Os ataques persistiram nos dias que se seguiram, mas também cresceram as mobilizações populares em defesa das comunidades, como a caravana de direitos humanos realizada no dia 26 de setembro, envolvendo lideranças dos movimentos sociais e eclesiais, professores e deputada estadual. A resistência, no entanto, persiste e se reinventa em outro nível de sofisticação. No dia 3 de outubro, em meio à tensão, os Kaiowá levaram suas crianças para uma aula de campo. O território de Guyraroka transformou-se em sala de aula ao ar livre, um gesto pedagógico que ensina às novas gerações que a autodeterminação, antes de ser um conceito jurídico, é uma prática de pertencimento corporal à terra. As crianças aprenderam sobre seus direitos originários à terra, enquanto produziam cartazes de apelo ao Supremo Tribunal Federal (STF). O futuro da comunidade depende diretamente de uma decisão do tribunal, que pode restabelecer o reconhecimento oficial de sua Terra Indígena.

É a pedagogia do pertencimento: a terra que acolhe como trincheira de resistência intergeracional, mobilizando seres humanos e não humanos em sua proteção e defesa. A retomada da terra promove uma ressignificação generalizada da existência. É o exercício prático, a materialização de seu modo de ser e de sua autodeterminação - o seu teko. Trata-se de um ato único que é, simultaneamente, físico, jurídico e espiritual.

Bolívia: a estratégica soberana que sitiou o Estado

A cerca de 1.200 km de Guyraroka, em 27 de setembro, o Conselho de Capitães Guarani de Santa Cruz (CCGSC), que compõe parte da territorialidade originária Guarani não cedida à Bolívia, emitiu a 'resolução determinativa n. 26/2025', dando um ultimato ao governador Luis Fernando Camacho para atender às suas demandas. A decisão foi tomada após o governador e seu gabinete ignorarem quatro solicitações de reunião enviadas entre 2 e 25 de setembro de 2025 para discutir a falta de execução de programas e projetos já acordados. A resolução do Conselho Guarani, fundamentada em conceitos legais e políticos que reconhecem sua autodeterminação, declarou estado de emergência e mobilização, estabelecendo um prazo de 48 horas:

"[...] Que, o Art. 2 da CPE, assinala que dada a existência pré-colonial das nações e povos indígenas originário camponeses e seu domínio ancestral sobre seus territórios, garante-se sua livre determinação no marco da unidade do Estado, que consiste em seu direito à autonomia, ao autogoverno, à sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades territoriais, conforme esta Constituição e a lei. Que o parágrafo II, número 4 do Art. 30 da CPE assinala a livre-determinação e territorialidade dos povos indígenas.

[...] Nos declaramos em ESTADO DE EMERGÊNCIA E MOBILIZAÇÃO A PARTIR DESTA DATA E DAMOS UM PRAZO DE 48 horas pelo descumprimento de nossas demandas pelo Governador de Santa Cruz. Luis Fernando Camacho Vaca e seu Gabinete pela falta de interesse em instalar a mesa de diálogo e atenção às demandas e agenda programática da Nação Guarani de Santa Cruz, é que damos um prazo de 48 horas a contar da segunda-feira, 29 de setembro de 2025. 2. Caso nossas demandas não sejam atendidas no prazo estabelecido, será iniciado o bloqueio indefinido da estrada internacional, ROTA 9 (Santa Cruz - Argentina)."

Diante da falta de resposta, os Avá Guarani iniciaram uma tática de resistência direta em 1 de outubro, com o fechamento por tempo indeterminado de uma das principais artérias da economia boliviana: a Rodovia Internacional 9. As exigências apresentavam um amplo espectro de necessidades. Na infraestrutura, pediam eletrificação, perfuração de poços de água e melhoria de estradas. Na área social, reivindicavam a garantia do café da manhã escolar para 2024 e 2025, além de melhorias na saúde e educação. A pauta se completava com demandas políticas cruciais: a definição de seus limites territoriais, uma discussão sobre os impactos da rodovia bioceânica para o território de Ñembi Guasu e o seu reconhecimento institucional dentro da estrutura do Estado.

A escolha do local foi estratégica. Para um Estado sem litoral como a Bolívia, cujas exportações e importações dependem de corredores terrestres, a rota bloqueada é de importância capital, sendo a principal ligação entre Santa Cruz, o motor econômico do país, e os mercados da Argentina e do Mercosul. O impacto foi imediato: calcula-se que cada dia de bloqueio custou cerca de 580 mil dólares ao capital agroindustrial da região.

Os bloqueios não surgem como um simples protesto. Trata-se de uma ferramenta de negociação forçada, diante da omissão dos poderes públicos para com os direitos dos povos indígenas

A pressão político-econômica surtiu efeito. No dia 5 de outubro, após manifestações na imprensa, o governo autônomo de Santa Cruz propôs uma reunião de diálogo e a instalação de uma mesa técnica. Com a conquista do canal de negociação direto, representando uma vitória da estratégia coordenada, parte das Capitanias Guarani, e sua principal organização, a Asamblea Pueblo Guaraní (APG), decidiram suspender o bloqueio no dia 8 de outubro.

No entanto, a mobilização revelou também a complexidade da governança Guarani. No dia seguinte, 9 de outubro, enquanto a reunião de alto nível ocorria entre as autoridades e o governo de Santa Cruz, ao menos dois pontos de bloqueio se mantiveram, com comunidades locais exigindo a presença de técnicos do governo para resolver demandas in loco. O episódio ilustra a natureza de um poder que é, simultaneamente, centralizado o suficiente para desafiar o Estado e descentralizado o bastante para garantir que as necessidades de cada território sejam, ao final, reivindicadas e atendidas.

Os bloqueios não surgem como um simples protesto. Trata-se de uma ferramenta de negociação forçada, diante da omissão dos poderes públicos para com os direitos dos povos indígenas. A resposta estatal foi um chamado tardio ao diálogo e não se caracteriza como um gesto de benevolência, mas porque o custo econômico da paralisação se tornou politicamente insustentável. Assim, os Avá Guarani demonstraram que, mesmo sem um exército, podem deter o poder de sitiar o Estado em seu próprio campo de batalha.

Uma governança cosmo-coordenada

A lógica constitutiva dos atuais modelos europeus de Estado, herdeiros de uma sofisticada estrutura colonial, impõe fronteiras físicas imaginadas e a conversão de tudo em mercadoria descartável. Este projeto de mundo só consegue conceber Terra, um bem a ser exaustivamente explorado. Em oposição direta, a cosmopolítica Guarani parte do Território, o Tekoha, como a própria condição de existência. A distinção é fundamental: a terra não é um objeto de posse, mas de pertencimento, um sujeito de direito, ator político na governança global, que convoca a todos e tudo a resistir.

Assim, esta ofensiva continental Guarani, e a própria resistência dos povos indígenas em todo o mundo, são cosmo-coordenadas, e resultado de sua diplomacia autóctone junto ao sujeito Terra e todos os seres humanos e não humanos que a constituem. Há elementos concretos que evidenciam que não se trata de eventos produzidos pelo acaso, ou seja, desvinculados entre si, mas resultado de um longo processo de articulação política, formalizado através de encontros continentais que, desde 2006, reúne a Nação Guarani para além de todas as fronteiras, não só física, reconectando processos históricos e cujos algozes são coincidentes.

No Brasil, onde a violência é mais brutal, aprofundou-se na resiliência da autodemarcação, a retomada que se transformou em pedagogia

O que testemunhamos é a materialização de um repertório de ação direta, adaptado a cada contexto, mas unificado por uma compartilhada consciência política e ética originária. Na Argentina, esta consciência assumiu a forma do acampamento paciente, que força o diálogo pela presença intrépida. Na Bolívia, demonstrou uma inteligência estratégica aguda, usando o bloqueio para sitiar o Estado. No Paraguai, insurgiu-se com a fúria da marcha para provocar rupturas institucionais. E no Brasil, onde a violência é mais brutal, aprofundou-se na resiliência da autodemarcação, a retomada que se transformou em pedagogia. Todas manifestam o inédito-viável freiriano.

São táticas diversas, mas que partem de uma mesma governança descentralizada e cosmo-coordenada, supranacional, autodeterminada e ágil, capaz de penetrar nos flancos do sistema e abrir fissuras em todos os seus níveis. Uma força de lastro histórico que emerge dos acampamentos à beira de estrada, ocupa universidades e mandatos políticos, ressoa nas milhares de aldeias, chegando aos palácios do poder e do multilateralismo. Um espírito que senta à mesa como outra autoridade, não para se render, mas para forçar, passo a passo, a falência de um projeto de mundo que, segundo Wallerstein, está com os dias contados.

O que a semana de insurgência revela, portanto, é a plena emergência da Nação Guarani como um sujeito político continental, cuja lealdade ao Tekoha inerentemente precede, desafia e rompe com a ordem imposta pelos atuais modelos hegemônicos. A ordenança de Leila, liderança Ñandeva, "tem que ser na luta, tem que ser na briga" - ecoa, convoca e transforma diante da iminência da Terra cambalear em seu ponto de apoio. Os próprios povos Guarani, num ato de ruptura e reimaginação política, contestam ativamente este pilar estado-colonial. Eles não anunciam apenas o fim de um mundo; eles praticam, em cada territorialidade, a refundação de outros mundos, deixando um aviso que reverbera por todo o continente, nas consciências dos que lutam:

"Se amanhã ou depois eu cair, tem outra pessoa que vai levantar novamente e continuar a luta" (Leila Rocha, Ñandeva)

https://cimi.org.br/2025/10/a-semana-em-que-os-guarani-no-continente-decidiram-derrubar-o-mundo/
 

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