De Povos Indígenas no Brasil
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Notícias

Justiça suspende projetos de crédito de carbono do governo do Amazonas

24/11/2025

Autor: Por Elaíze Farias

Fonte: Amazonia Real - https://amazoniareal.com.br



Manaus (AM) - A 9ª Vara da Justiça Federal suspendeu o edital do governo do Amazonas, lançado em 2023, para contratação de empresas interessadas em implantar projetos de mercado de crédito de carbono/REDD+ em 21 Unidades de Conservação (UC) no Amazonas, atendendo a um pedido do Ministério Público Federal e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Conforme dados da Funai, algumas das 21 UCs do edital estão sobrepostas a 5 terras indígenas, além de outras numerosas comunidades onde vivem populações indígenas que moram ou fazem uso do recurso da floresta. Em fevereiro deste ano, o órgão entrou como polo ativo do processo judicial.

A decisão da juíza Marília Gurgel Rocha de Paiva, do dia 17 de novembro, também suspende os atos administrativos em andamento pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) e proíbe o ingresso de empresas ou agentes públicos nas áreas.

A sentença já se aplica ao acordo que o governador Wilson Lima (União Brasil) assinou durante a COP30, em Belém, com a empresa Future Climate (antes chamada Future Carbon Holding S.A.) para implantar projeto de crédito de carbono no Parque Estadual Sucunduri, uma das nove UCs que fazem parte do Mosaico do Apuí, nos municípios de Apuí e Maués. Durante o ato, o governo do Amazonas disse que a assinatura "tem potencial para movimentar 590 milhões de reais em 30 anos" em conservação da floresta.

Além de um extenso cenário de violação de direitos e falta de consulta adequada - sem número limitado de pessoas -, o MPF também aponta inexistência de informação sobre como funcionam as propostas de projetos de crédido de carbono/REDD+.

"A alegação do Estado de que o edital seria apenas uma fase preparatória não afasta a potencialidade lesiva do ato, que já produz efeitos concretos ao estruturar a cadeia de decisões administrativas voltadas à implementação pública com impacto territorial, ambiental e cultura", diz a magistrada, em sua decisão.

REDD+ é a sigla para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, uma proposta lançada há 20 anos na Conferência do Clima. A premissa faz parte do conceito de economia verde para preservar o meio ambiente e combater a crise climática através de mitigações e redução de emissões de gases de efeito estufa. Para serem gerados, os créditos de carbono dependem da proteção da floresta, sobretudo onde vivem povos indígenas e comunidades tradicionais. As críticas para a iniciativa ocorrem porque não há evidência real do êxito da iniciativa.

Nos últimos tempos, os projetos têm adotado a REDD jurisdicional, instrumento desenvolvido em uma área de jurisdição; podendo ser um estado ou um país. Geralmente, o programa é realizado por governos, como acontece no Acre e no Pará, em contextos de oposição por parte de indígenas e povos tradicionais.

O procurador da República Fernando Merloto Soave, autor da ação do MPF, declarou à Amazônia Real que o edital atropelou todos os requisitos da Convenção 169 de consulta às comunidades tradicionais e indígenas. "A Justiça Federal reconhece que o governo não está consultando, não respeita os direitos dos indígenas e dos povos tradicionais. Mesmo que não tivesse sido suspenso, o edital já estava errado", disse.

Soave esteve na semana passada na comunidade Barra de São Manoel, que faz parte de um projeto de assentamento e está na área de influência do Parque Estadual Sucunduri, e ouviu de moradores que desconheciam o acordo do governo com a empresa Future Climate.

Embora seja uma UC de ocupação restrita, os moradores das comunidades adjacentes utilizam os castanhais dentro da floresta para suas atividades de subsistência e arranjos produtivos, já que se trata de área de uso tradicional.

"Perguntei: 'vocês estão sabendo que o governador assinou um contrato na área de vocês'? Falaram: 'não'. 'Vocês sabem o que é isso'? Um deles me disse: 'Fui numa reunião do Mosaico, mas não falaram o que é'. Assinaram um contrato e eles disseram que não sabiam o que era crédito de carbono, não sabiam como funciona", contou o procurador.

No plano de gestão do Mosaico do Apuí, publicado em 2010, diz no item "atividades econômicas" que "os moradores que trabalham na própria roça também fazem extrativismo de produtos não madeireiros e pesca. As áreas utilizadas tradicionalmente para as atividades extrativistas (extração de óleo de copaíba e coleta de castanha) pelos moradores da comunidade se encontram hoje em algumas unidades de conservação de proteção integral, entre elas o Parest (Parque Estadual) Sucunduri".

Terras indígenas dentro de UCs

Documento da Funai obtido pela Amazônia Real informa que a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá está sobreposta às seguintes Terras Indígenas (TI): Porto Praia, Jaquiri, Uati-Paraná, Mapari e Acapuri de Cima, dos povos Tikuna, Kambeba, Kaiana e Kokama.

Além destas cinco terras indígenas em situação de sobreposição, indígenas de outras duas TIs (Cuiu-Cui e Tupa Supé) são conhecidos como "usuários" da RDS Mamirauá. Há também existência de áreas reivindicadas dentro desta UC estadual.

"Todos esses indígenas são moradores e/ou usuários desta UC e participam de sua gestão por meio de seus representantes no Conselho Gestor. No entanto, esse conselho tampouco parece ter sido devidamente esclarecido e consultado sobre a publicação do edital", diz documento da Funai.

Outros casos de sobreposição ou uso dos recursos nas UCS por povos indígenas foram identificados nas RDS Piaguaçu Purus, RDS Rio Madeira, RDS Puranga Conquista, APA Margem Esquerda do Rio Negro (Setor Aturia Apuazinho), RDS Cujubim, RDS Uacari, RDS Amanã, APA Katuá Ipixuna e APA Margem Esquerda do Rio Negro (Setor Tarumã Açu).

Segundo a Funai, com base em um documento da Articulação dos Povos Indígenas do Amazonas (APIAM), as salvaguardas para projetos de REDD+ não estão sendo seguidas, conforme previsto em regramentos internacionais, nacionais e subnacionais.

"O citado edital não respeitou a salvaguarda B, que diz que as estruturas de governança florestais nacionais devem ser observadas, fortalecidas e transparentes. Não consta a informação de que o Conselho Gestor da Unidade de Conservação, no qual os povos indígenas têm seus representantes, tenha sido ouvido no processo", diz documento da Funai.

Na sua decisão, a juíza Marília de Paiva destacou o posicionamento da Funai no processo, dizendo que a manifestação do órgão federal "reforça a gravidade das irregularidades apontadas e atesta a necessidade de sua presença ativa no controle e validação de qualquer procedimento que envolva os territórios indígenas, inclusive aqueles sobrepostos ou em situação de reivindicação possessória".

O governo do Amazonas lançou o edital de chamamento em 2023. As empresas selecionadas foram Future Carbon (brasileira), que recebeu 12 concessões; Ecosecurities (Suíça), com três; BR Carbon (brasileira), Carbonext (brasileira) e Permian Global (inglesa).

Em ofício interno, a Funai afirma que "no documento que apresenta o resultado da chamada não constam detalhes sobre as propostas apresentadas".

Relatos de falta de consulta

Há mais de um ano o MPF se reuniu com moradores de comunidades tradicionais e indígenas, quando ouviu deles diversos relatos sobre falta de consulta e pressão e assédio de agentes públicos para aceitarem os projetos do crédito de carbono. Há moradores que só ouviam falar do sistema REDD+ e crédito de carbono sem entender o que estavam escutando. Os comunitários também relataram casos de desassistência por parte do poder público para suas necessidades.

"A percepção transmitida pelos comunitários ao MPF foi de que o abandono governamental do estado do Amazonas na gestão das UCs estaduais foi proposital e a menção ao projeto de crédito carbono como um meio de 'voltar a ter atendimento e recursos' seria uma forma de pressionar os comunitários a aceitarem tais projetos de qualquer jeito, sem outras alternativas possíveis diante da omissão e do abandono vivenciados atualmente", diz trecho da ação do MPF.

Em nota enviada ao MPF, a Articulação dos Povos Indígenas do Amazonas (APIAM) já alertava que a sobreposição de terras gera conflitos de gestão e de uso. Como o projeto do governo do Amazonas, a situação iria se agravar. "A abertura do edital sem informar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) evidencia a falta de transparência e governança no processo. A ausência de comunicação adequada compromete a legitimidade das ações e fere a confiança dos povos e comunidades envolvidas", diz a organização indígena.

Durante a COP30, a coordenadora da APIAM, Mariazinha Baré, interpelou o governador Wilson Lima ao final de um dos painéis em que ele participava, depois de apresentar projetos de sua gestão. Um deles foi o plano de sociobioeconomia. Segundo Mariazinha, o plano foi construído sem a participação das populações indígenas.

Assim como este projeto, ela também questionou as propostas de mercado de crédito de carbono nos territórios no Amazonas sem envolver diretamente quem está, de fato, na floresta.

"É o maior estado da federação [Amazonas], o que tem maior número de população e povos indígenas, e o maior com número de terras indígenas. São 411 terras indígenas, entre elas demarcadas, em demarcação ou reivindicada. A nossa reivindicação é que nós estejamos no início do processo da elaboração das políticas públicas e dos programas. Não quando ele está já está em execução", disse Mariazinha à Amazônia Real, na ocasião.

Segundo a Convenção 169 da OIT, tratado internacional do qual o Brasil é signatário desde 2003, a realização da consulta deve ser prévia, livre e informada é obrigatória para todos os projetos e empreendimentos que afetam terras indígenas e comunidades tradicionais, entre elas ribeirinhos e quilombolas.

Cientistas, especialistas, representantes de movimentos sociais e autoridades públicas têm criticado o uso do mercado de crédito de carbono como a solução verde para salvar o planeta da crise climática.

Na semana passada, representantes da Defensoria Pública da União e do Estado do Pará, o MPF no Amazonas, juristas de instituições e universidades do Brasil, Reino Unido, Estados Unidos, Finlândia e Holanda emitiram uma Nota Técnica sobre REDD e compensação de carbono florestal onde apresentam um resumo com importantes pontos sobre o tema em todo o mundo.

Segundo a nota, o REDD é ineficaz. Os especialistas dizem que a maioria desses projetos de carbono são "essencialmente inúteis", pois não resolvem o problema do clima ao permitir que o poluidor continue ignorando a lei. A nota diz ainda que o sistema é "enganação ou maquiagem verde (greenwashing)": "O sistema serve para muitas empresas e corporações fazerem propaganda enganosa de que são amigas da natureza, enquanto atrasam a solução de verdade".

Para os autores da nota, o REDD é considerado uma medida colonial, pois "perpetua uma visão de mundo na qual os países do norte global, desenvolvidos, podem utilizar-se dos recursos naturais dos países do sul global, em geral ex-colônias, para manter um progresso econômico ilimitado, terceirizando as externalidades (impactos negativos) do sistema capitalista a outros territórios".

Projeto virou lei

A lei que regula o mercado de crédito de carbono foi sancionada em dezembro de 2024 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Um dos pontos mais importantes refere-se ao "consentimento resultante de consulta livre, prévia e informada, prevista na Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais".

As populações afetadas também terão direito a benefícios monetários e poderão, se preferirem, ter autonomia para obter assessoria técnica e jurídica independente, com recursos pagos pela empresa interessada em implantar projeto de crédito de carbono.

"Nos termos do protocolo ou plano de consulta, quando houver, da comunidade consultada, não podendo a comunidade arcar com os custos do processo, sendo todo o processo de consulta custeado pelo desenvolvedor interessado, garantidas a participação e a supervisão do Ministério dos Povos Indígenas, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Câmara Temática Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6ª Câmara de Coordenação e Revisão) do Ministério Público Federal, órgãos responsáveis pela política indigenista e pela garantia dos direitos dos povos indígenas", diz trecho da lei, que foi regulamentada em agosto de 2025.

A lei também prevê o pagamento mínimo de 70% da comercialização do crédito de carbono para povos indígenas e tradicionais decorrentes dos projetos "REDD+ abordagem de mercado".

O governo do Amazonas foi procurado para responder sobre a decisão judicial e outros assuntos desta reportagem, mas não retornou até a sua publicação. A Future Climate foi procurada através de uma mensagem na seção "Contatos" em seu site, mas também não respondeu. Caso haja resposta, esta reportagem será atualizada.

https://amazoniareal.com.br/justica-federal-suspende-projetos-de-credito-de-carbono-do-governo-do-amazonas/
 

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