De Povos Indígenas no Brasil
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Notícias
Eles estão em liberdade
20/04/2007
Fonte: CB, Cidades, p. 24-25
Eles estão em liberdade
Dez anos depois de matarem barbaramente índio Pataxó, criminosos levam uma vida normal, fora da cadeia
Guilherme Goulart
e Talita Cavalcante
Da equipe do Correio
A médica Maria Célia Martins Bispo pouco esperava do plantão da madrugada de 20 abril de 1997. Mas, por volta das 5h30 daquele dia, a tranqüilidade no Hospital Regional da Asa Norte (Hran) acabou. Uma ligação do pronto-socorro pedia para que a especialista do setor de queimados recebesse um paciente em estado grave. Em segundos, ela estava diante de um homem de 44 anos com o corpo destroçado pelo fogo. Apresentava dificuldades respiratórias e na função renal. Maria Célia sabia que morreria logo. Só ele não imaginava o tamanho do estrago. Acreditava ter ferimentos leves. E narrou à médica o sofrimento vivido ao acordar com a própria pele ardendo em chamas. Vinte horas depois, o paciente estava morto.
O homem destruído pelo fogo se chamava Galdino Jesus dos Santos. Um índio pataxó atacado por cinco jovens de classe média alta enquanto dormia na parada de ônibus da 703 Sul. Há exatos 10 anos, em 20 de abril de 1997, a história de horror ocorrida na capital federal chocava o Brasil. Abria-se ali uma batalha judicial que terminou em 2001 com a condenação de quatro acusados - o quinto era adolescente - a 14 anos de reclusão. Dez anos depois, os assassinos estão livres. Na prisão, gozaram de benefícios, desrespeitaram autorizações judiciais, beberam com amigos, namoraram. Ainda assim, ganharam liberdade condicional da Justiça no fim de 2004.
Max Rogério Alves, Antônio Novély Vilanova e Tomás Oliveira de Almeida têm hoje 29 anos. Eron Chaves Oliveira, 28. Todos conquistaram o direito de se reintegrarem à sociedade antes de cumprirem a metade da condenação. Na prisão, viveram dias de regalia. Tiveram celas próprias, visitas que não passavam por revista e conquistaram benefícios raros para um crime hediondo: enquanto presos, estudaram e trabalharam, como qualquer cidadão comum. "Freqüentaram academias, shoppings e bares quando não deviam. Dá para concluir que tiveram privilégios que nem toda a população carcerária tem", avaliou o promotor Maurício Miranda, do Tribunal do Júri de Brasília, que atuou no julgamento.
Segundo Miranda, o Ministério Público do Distrito Federal recorreu contra todas as vantagens do grupo. Mas nem a atuação do órgão conseguiu barrar a liberdade condicional antes do cumprimento de dois terços da pena de 14 anos em regime fechado. No total, os assassinos ficaram sete anos na cadeia. E falta pouco menos de quatro para terem prestado conta pela barbárie cometida em 1997. "Eles estão na boa vida. Na época em que ficaram presos, montaram até uma biblioteca para eles lá dentro", denunciou a promotora Maria José Miranda, do Tribunal do Júri, que também trabalhou no caso.
Vida normal
Apesar de livres, os assassinos de Galdino têm algumas obrigações até o fim da condenação. Precisam se apresentar a cada dois meses na Vara de Execuções Criminais (VEC). Devem cumprir horários para chegar em casa e pedir autorização para viagens. Max Rogério, Antônio, Tomás e Eron também podem perder o benefício caso sejam condenados por qualquer novo crime. Mas a Promotoria de Execuções Penais admite a falta de fiscais para seguir a rotina daqueles que conquistam a liberdade condicional.
O Correio investigou as atuais ocupações de cada condenado pela morte do pataxó ao longo da última semana (leia quadro acima). Tomás trabalha pela manhã no setor de marcação de consultas do Hospital Santa Helena, no Setor Hospitalar Local Norte. E à noite cursa o 5º semestre de administração no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). Por telefone, ele evitou comentar o caso. "Não tenho interesse em falar. Não quero falar, mas obrigado", limitou-se a dizer.
Antônio trabalhou na área de cirurgia plástica do mesmo hospital em que Galdino morreu. Prestou serviços administrativos no Hran por seis anos, mesmo depois de ter obtido a condicional. Mas pediu desligamento da função há dois meses. Uma servidora do Hran informou apenas que ele mudou de emprego. Na casa do pai dele, no fim da Asa Sul, uma funcionária disse que Antônio não freqüenta a residência. E que não sabe onde ele mora.
Eron trabalhou na Coordenação de Documentação e Informação do Ministério do Trabalho entre 2002 e 2006. Mas pediu demissão para trabalhar em um restaurante do Plano Piloto. Max Rogério deixou a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) assim que conseguiu a condicional. Nenhum telefone ou endereço dos dois foi localizado pela reportagem.
Para quem participou do socorro a Galdino, resta o sentimento de revolta. A médica Maria Célia Bispo viu de perto a agonia do índio. E não entende o desfecho da história. "O que mais chama a atenção é como alguém pode fazer uma maldade daquelas e ficar solto. Para mim, o pior sentimento é o de impotência. Sabia que aquele paciente (Galdino) ia morrer. Só restava aliviar a dor", contou. A especialista mora em Goiânia, mas continua a atender no Hran. Nunca mais esqueceu a tragédia de 20 de abril de 1997.
Assim como todo brasiliense.
A revolta do povo Pataxó
Um tem 18 anos. O outro, 19. Eles ainda mantêm o jeito tímido de adolescentes, mas começam a encarar, sem temor algum, o futuro repleto de responsabilidades. César Procotoá Aritiwe e Hariã Nunes de Souza são primos. E sobrinhos do índio Galdino Jesus dos Santos, assassinado por cinco jovens brasilienses em abril de 1997.
Estão em fase de preparação para passarem pelas mesmas dificuldades um dia enfrentadas pelo tio. Em breve, eles serão os líderes dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, do sul da Bahia. Representarão, assim, a reserva indígena Caramuru Catarina Paraguassu, a 560km de Salvador.
Os dois jovens estiveram em Brasília durante a semana para prestar homenagens ao parente vítima da barbárie que horrorizou o Brasil há uma década. Ambos pintaram o corpo, dançaram ao redor do Monumento a Galdino - obra erguida pelo artista plástico Siron Franco, na 703 Sul, local do ataque - e protestaram contra a liberdade condicional concedida pela Justiça a Max Rogério Alves, Antônio Novély Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida e Eron Chaves Oliveira no fim de 2004. "Não temos medo. Vamos assumir esse papel, até mesmo para cobrar Justiça. Se eles (os assassinos) fossem pobres, ainda estariam presos", ataca César.
Trajetória de luta
Os sobrinhos de Galdino moram na região fincada entre os municípios baianos de Pau Brasil, Camacã e Itaju do Colônia. Vivem em uma área de 54,1 mil hectares marcada por conflitos entre fazendeiros e índios desde 1920. Os atuais donos das terras são acusados de contratar pistoleiros para defender as fazendas. E as tribos locais pedem na Justiça a anulação dos títulos de propriedade concedidos aos rivais no início do século passado.
Galdino e o pai, Juvenal Rodrigues dos Santos, estavam em Brasília em 1997 para cobrar agilidade na ação movida há 25 anos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no Supremo Tribunal Federal (STF).
Entre 1980 e 2003, os pataxós retomaram 14,5 mil hectares de terra (26,8% do total). Mas a conquista tem acabado mal para os índios. Pelo menos 18 líderes foram mortos por pistoleiros, segundo levantamento de órgãos como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Dez anos depois, Galdino e o pai também estão mortos - Juvenal morreu no ano passado. Segundo familiares, não resistiu ao desgosto provocado pelo descaso da Justiça no julgamento dos assassinos do filho. Aos 70 anos, a mãe do líder pataxó, dona Minervina Maria de Jesus, está com a saúde debilitada. Viria a Brasília nesta semana, mas piorou com a aproximação do aniversário dos 10 anos da morte do filho.
...e de muita dor
Após o fim trágico de Galdino, o legado de liderança pataxó ficou com Marilene Jesus dos Santos.
A irmã dele é a atual cacique dos Pataxó Hã-Hã-Hãe. Ela e outras lideranças locais cuidam da preparação dos sobrinhos César e Hariã. Outro responsável pela formação deles é o primo Luiz Titiah. Ele diz que os garotos participam das reuniões mensais que a tribo realiza todo dia 1º. Os encontros funcionam como um debate, no qual os problemas da terra são discutidos com os mais velhos do grupo.
"Eles estão sendo preparados para a luta. Estão ganhando experiência e, felizmente, não se retraíram com a morte brutal do tio", comemora Titiah.
A exemplo da mãe, Marilene ficou na reserva indígena Caramuru Catarina Paraguassu nesta semana. Ajuda nos preparativos da homenagem prevista para Galdino na própria aldeia. Indígenas de várias localidades se reunirão em torno da cova onde está enterrado o líder pataxó. Eles protestarão no sábado, data do crime que acabou com a vida de Galdino, contra a barbárie e a atual situação dos cinco assassinos.
Durante o ato, também será lembrado outro irmão do índio morto em Brasília. João Cravim foi assassinado em 1988, por conta das disputas territoriais locais. (GG)
Década de vergonha
19 de abril de 1997 (Dia do Índio)
Um dos líderes da tribo Pataxó Hã-Hã-Hãe, Galdino Jesus dos Santos está em Brasília para lutar pela demarcação das terras do seu povo no sul da Bahia. À noite, ao retornar à pensão onde estava hospedado, ele se perde no início da Asa Sul. Decide dormir no ponto de ônibus da 703 Sul. Max Rogério Alves,Antônio Novély Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida, Eron Chaves Oliveira e um adolescente, irmão de Tomás, compram álcool num posto de gasolina e ateiam fogo no pataxó por volta das 5h30. O chaveiro Nairo Euclides Santos e a amiga Tatiana Basso perseguem o carro dos rapazes e anotam a placa do veículo.
20 de abril de 1997
Apenas uma hora após o crime, a PM localiza o motorista do Monza usado pelo grupo.É Max Rogério Alves, enteado de um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele revela a participação dos colegas, que acabam presos no mesmo dia. Os acusados são encaminhados à 1ª DP (Asa Sul), onde confessam o crime. De lá,o grupo segue para o Núcleo de Custódia de Brasília, onde permanece quatro anos e sete meses preso até o início do julgamento. O irmão de Tomás, então com 17 anos, é encaminhado à Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA).
21 de abril de 1997
Às 2h, Galdino morre no Hospital Regional da Asa Norte com 95% do corpo queimado. Laudo do Instituto de Medicina Legal aponta insuficiência respiratória e falência múltipla dos órgãos. Restaram-lhe intactos apenas o couro cabeludo e a sola dos pés. O corpo de Galdino segue poucos dias depois para a reserva indígena da família, onde é enterrado. A polícia classifica o crime: homicídio triplamente qualificado.
12 de agosto de 1997
A presidente do Tribunal do Júri de Brasília, Sandra de Santis Mello, desqualifica o crime para lesão corporal seguida de morte, livrando os réus do júri popular.O Ministério Público do DF recorre.
12 de setembro de 1997
O irmão de Tomás é libertado por decisão do Tribunal de Justiça do DF. Em sessão secreta,
juízes trocam a internação de três anos por liberdade assistida.
5 de março de 1998
O TJDF confirma a sentença da juíza. O MPDF recorre ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
9 de fevereiro de 1999
O STJ decide que os réus devem ser julgados no júri popular por homicídio triplamente qualificado.
20 de março de 1999
O Supremo Tribunal Federal (STF) mantém o julgamento por júri popular.
27 de março de 2001
Superior Tribunal de Justiça (STJ) nega todos os recursos e marca a data do júri popular. Sandra de Santis é confirmada como juíza do caso.
6 de novembro de 2001
Começa o julgamento dos quatro acusados.
11 de novembro de 2001
Por cinco votos a dois, o júri popular considera que os quatro réus cometeram homicídio triplamente qualificado (crime hediondo), por motivo torpe (diversão), de forma cruel (uso de fogo) e covarde, sem chance de defesa à vítima. A juíza fixa a pena em 14 anos,em regime fechado.
Junho de 2002
Menos de um ano após a condenação,Eron,Tomás e Antônio Novély conseguem autorização judicial para estudar e trabalhar fora do presídio,sem escolta policial ou vigilância.
Novembro de 2002
Max Rogério recebe o mesmo benefício.
Outubro de 2003
O Correio publica série de reportagens em que flagra Antônio Novély, Max Rogério e Eron Chaves desrespeitando as autorizações judiciais concedidas para trabalho e estudo fora da prisão. Os três são filmados bebendo, namorando e encontrando amigos em bares do Plano Piloto. Tómas de Oliveira não teve a rotina acompanhada pelo jornal.Ainda assim, a Vara de Execuções Criminais (VEC) suspende provisoriamente as regalias concedidas pela Justiça a todos eles.
Dezembro de 2003
A VEC proíbe em definitivo os quatro condenados de saírem da prisão para estudar e
trabalhar.
Novembro de 2004
Tomás e Eron conquistam a liberdade condicional.
Dezembro de 2004
Max e Antônio Novély saem da prisão pelo mesmo benefício.
Fim de 2006
O pai de Galdino, Juvenal Rodrigues dos Santos, morre no sul da Bahia.
17 de abril de 2007
Os 10 anos da morte de Galdino são lembrados por índios de 102 etnias em Brasília. Cerca de 400 deles pintam com tinta preta o Monumento a Galdino, na 703 Sul, obra do artista plástico goiano Siron Franco.
CB, 20/04/2007, Cidades, p. 24-25
Dez anos depois de matarem barbaramente índio Pataxó, criminosos levam uma vida normal, fora da cadeia
Guilherme Goulart
e Talita Cavalcante
Da equipe do Correio
A médica Maria Célia Martins Bispo pouco esperava do plantão da madrugada de 20 abril de 1997. Mas, por volta das 5h30 daquele dia, a tranqüilidade no Hospital Regional da Asa Norte (Hran) acabou. Uma ligação do pronto-socorro pedia para que a especialista do setor de queimados recebesse um paciente em estado grave. Em segundos, ela estava diante de um homem de 44 anos com o corpo destroçado pelo fogo. Apresentava dificuldades respiratórias e na função renal. Maria Célia sabia que morreria logo. Só ele não imaginava o tamanho do estrago. Acreditava ter ferimentos leves. E narrou à médica o sofrimento vivido ao acordar com a própria pele ardendo em chamas. Vinte horas depois, o paciente estava morto.
O homem destruído pelo fogo se chamava Galdino Jesus dos Santos. Um índio pataxó atacado por cinco jovens de classe média alta enquanto dormia na parada de ônibus da 703 Sul. Há exatos 10 anos, em 20 de abril de 1997, a história de horror ocorrida na capital federal chocava o Brasil. Abria-se ali uma batalha judicial que terminou em 2001 com a condenação de quatro acusados - o quinto era adolescente - a 14 anos de reclusão. Dez anos depois, os assassinos estão livres. Na prisão, gozaram de benefícios, desrespeitaram autorizações judiciais, beberam com amigos, namoraram. Ainda assim, ganharam liberdade condicional da Justiça no fim de 2004.
Max Rogério Alves, Antônio Novély Vilanova e Tomás Oliveira de Almeida têm hoje 29 anos. Eron Chaves Oliveira, 28. Todos conquistaram o direito de se reintegrarem à sociedade antes de cumprirem a metade da condenação. Na prisão, viveram dias de regalia. Tiveram celas próprias, visitas que não passavam por revista e conquistaram benefícios raros para um crime hediondo: enquanto presos, estudaram e trabalharam, como qualquer cidadão comum. "Freqüentaram academias, shoppings e bares quando não deviam. Dá para concluir que tiveram privilégios que nem toda a população carcerária tem", avaliou o promotor Maurício Miranda, do Tribunal do Júri de Brasília, que atuou no julgamento.
Segundo Miranda, o Ministério Público do Distrito Federal recorreu contra todas as vantagens do grupo. Mas nem a atuação do órgão conseguiu barrar a liberdade condicional antes do cumprimento de dois terços da pena de 14 anos em regime fechado. No total, os assassinos ficaram sete anos na cadeia. E falta pouco menos de quatro para terem prestado conta pela barbárie cometida em 1997. "Eles estão na boa vida. Na época em que ficaram presos, montaram até uma biblioteca para eles lá dentro", denunciou a promotora Maria José Miranda, do Tribunal do Júri, que também trabalhou no caso.
Vida normal
Apesar de livres, os assassinos de Galdino têm algumas obrigações até o fim da condenação. Precisam se apresentar a cada dois meses na Vara de Execuções Criminais (VEC). Devem cumprir horários para chegar em casa e pedir autorização para viagens. Max Rogério, Antônio, Tomás e Eron também podem perder o benefício caso sejam condenados por qualquer novo crime. Mas a Promotoria de Execuções Penais admite a falta de fiscais para seguir a rotina daqueles que conquistam a liberdade condicional.
O Correio investigou as atuais ocupações de cada condenado pela morte do pataxó ao longo da última semana (leia quadro acima). Tomás trabalha pela manhã no setor de marcação de consultas do Hospital Santa Helena, no Setor Hospitalar Local Norte. E à noite cursa o 5º semestre de administração no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). Por telefone, ele evitou comentar o caso. "Não tenho interesse em falar. Não quero falar, mas obrigado", limitou-se a dizer.
Antônio trabalhou na área de cirurgia plástica do mesmo hospital em que Galdino morreu. Prestou serviços administrativos no Hran por seis anos, mesmo depois de ter obtido a condicional. Mas pediu desligamento da função há dois meses. Uma servidora do Hran informou apenas que ele mudou de emprego. Na casa do pai dele, no fim da Asa Sul, uma funcionária disse que Antônio não freqüenta a residência. E que não sabe onde ele mora.
Eron trabalhou na Coordenação de Documentação e Informação do Ministério do Trabalho entre 2002 e 2006. Mas pediu demissão para trabalhar em um restaurante do Plano Piloto. Max Rogério deixou a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) assim que conseguiu a condicional. Nenhum telefone ou endereço dos dois foi localizado pela reportagem.
Para quem participou do socorro a Galdino, resta o sentimento de revolta. A médica Maria Célia Bispo viu de perto a agonia do índio. E não entende o desfecho da história. "O que mais chama a atenção é como alguém pode fazer uma maldade daquelas e ficar solto. Para mim, o pior sentimento é o de impotência. Sabia que aquele paciente (Galdino) ia morrer. Só restava aliviar a dor", contou. A especialista mora em Goiânia, mas continua a atender no Hran. Nunca mais esqueceu a tragédia de 20 de abril de 1997.
Assim como todo brasiliense.
A revolta do povo Pataxó
Um tem 18 anos. O outro, 19. Eles ainda mantêm o jeito tímido de adolescentes, mas começam a encarar, sem temor algum, o futuro repleto de responsabilidades. César Procotoá Aritiwe e Hariã Nunes de Souza são primos. E sobrinhos do índio Galdino Jesus dos Santos, assassinado por cinco jovens brasilienses em abril de 1997.
Estão em fase de preparação para passarem pelas mesmas dificuldades um dia enfrentadas pelo tio. Em breve, eles serão os líderes dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, do sul da Bahia. Representarão, assim, a reserva indígena Caramuru Catarina Paraguassu, a 560km de Salvador.
Os dois jovens estiveram em Brasília durante a semana para prestar homenagens ao parente vítima da barbárie que horrorizou o Brasil há uma década. Ambos pintaram o corpo, dançaram ao redor do Monumento a Galdino - obra erguida pelo artista plástico Siron Franco, na 703 Sul, local do ataque - e protestaram contra a liberdade condicional concedida pela Justiça a Max Rogério Alves, Antônio Novély Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida e Eron Chaves Oliveira no fim de 2004. "Não temos medo. Vamos assumir esse papel, até mesmo para cobrar Justiça. Se eles (os assassinos) fossem pobres, ainda estariam presos", ataca César.
Trajetória de luta
Os sobrinhos de Galdino moram na região fincada entre os municípios baianos de Pau Brasil, Camacã e Itaju do Colônia. Vivem em uma área de 54,1 mil hectares marcada por conflitos entre fazendeiros e índios desde 1920. Os atuais donos das terras são acusados de contratar pistoleiros para defender as fazendas. E as tribos locais pedem na Justiça a anulação dos títulos de propriedade concedidos aos rivais no início do século passado.
Galdino e o pai, Juvenal Rodrigues dos Santos, estavam em Brasília em 1997 para cobrar agilidade na ação movida há 25 anos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) no Supremo Tribunal Federal (STF).
Entre 1980 e 2003, os pataxós retomaram 14,5 mil hectares de terra (26,8% do total). Mas a conquista tem acabado mal para os índios. Pelo menos 18 líderes foram mortos por pistoleiros, segundo levantamento de órgãos como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Dez anos depois, Galdino e o pai também estão mortos - Juvenal morreu no ano passado. Segundo familiares, não resistiu ao desgosto provocado pelo descaso da Justiça no julgamento dos assassinos do filho. Aos 70 anos, a mãe do líder pataxó, dona Minervina Maria de Jesus, está com a saúde debilitada. Viria a Brasília nesta semana, mas piorou com a aproximação do aniversário dos 10 anos da morte do filho.
...e de muita dor
Após o fim trágico de Galdino, o legado de liderança pataxó ficou com Marilene Jesus dos Santos.
A irmã dele é a atual cacique dos Pataxó Hã-Hã-Hãe. Ela e outras lideranças locais cuidam da preparação dos sobrinhos César e Hariã. Outro responsável pela formação deles é o primo Luiz Titiah. Ele diz que os garotos participam das reuniões mensais que a tribo realiza todo dia 1º. Os encontros funcionam como um debate, no qual os problemas da terra são discutidos com os mais velhos do grupo.
"Eles estão sendo preparados para a luta. Estão ganhando experiência e, felizmente, não se retraíram com a morte brutal do tio", comemora Titiah.
A exemplo da mãe, Marilene ficou na reserva indígena Caramuru Catarina Paraguassu nesta semana. Ajuda nos preparativos da homenagem prevista para Galdino na própria aldeia. Indígenas de várias localidades se reunirão em torno da cova onde está enterrado o líder pataxó. Eles protestarão no sábado, data do crime que acabou com a vida de Galdino, contra a barbárie e a atual situação dos cinco assassinos.
Durante o ato, também será lembrado outro irmão do índio morto em Brasília. João Cravim foi assassinado em 1988, por conta das disputas territoriais locais. (GG)
Década de vergonha
19 de abril de 1997 (Dia do Índio)
Um dos líderes da tribo Pataxó Hã-Hã-Hãe, Galdino Jesus dos Santos está em Brasília para lutar pela demarcação das terras do seu povo no sul da Bahia. À noite, ao retornar à pensão onde estava hospedado, ele se perde no início da Asa Sul. Decide dormir no ponto de ônibus da 703 Sul. Max Rogério Alves,Antônio Novély Vilanova, Tomás Oliveira de Almeida, Eron Chaves Oliveira e um adolescente, irmão de Tomás, compram álcool num posto de gasolina e ateiam fogo no pataxó por volta das 5h30. O chaveiro Nairo Euclides Santos e a amiga Tatiana Basso perseguem o carro dos rapazes e anotam a placa do veículo.
20 de abril de 1997
Apenas uma hora após o crime, a PM localiza o motorista do Monza usado pelo grupo.É Max Rogério Alves, enteado de um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele revela a participação dos colegas, que acabam presos no mesmo dia. Os acusados são encaminhados à 1ª DP (Asa Sul), onde confessam o crime. De lá,o grupo segue para o Núcleo de Custódia de Brasília, onde permanece quatro anos e sete meses preso até o início do julgamento. O irmão de Tomás, então com 17 anos, é encaminhado à Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA).
21 de abril de 1997
Às 2h, Galdino morre no Hospital Regional da Asa Norte com 95% do corpo queimado. Laudo do Instituto de Medicina Legal aponta insuficiência respiratória e falência múltipla dos órgãos. Restaram-lhe intactos apenas o couro cabeludo e a sola dos pés. O corpo de Galdino segue poucos dias depois para a reserva indígena da família, onde é enterrado. A polícia classifica o crime: homicídio triplamente qualificado.
12 de agosto de 1997
A presidente do Tribunal do Júri de Brasília, Sandra de Santis Mello, desqualifica o crime para lesão corporal seguida de morte, livrando os réus do júri popular.O Ministério Público do DF recorre.
12 de setembro de 1997
O irmão de Tomás é libertado por decisão do Tribunal de Justiça do DF. Em sessão secreta,
juízes trocam a internação de três anos por liberdade assistida.
5 de março de 1998
O TJDF confirma a sentença da juíza. O MPDF recorre ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
9 de fevereiro de 1999
O STJ decide que os réus devem ser julgados no júri popular por homicídio triplamente qualificado.
20 de março de 1999
O Supremo Tribunal Federal (STF) mantém o julgamento por júri popular.
27 de março de 2001
Superior Tribunal de Justiça (STJ) nega todos os recursos e marca a data do júri popular. Sandra de Santis é confirmada como juíza do caso.
6 de novembro de 2001
Começa o julgamento dos quatro acusados.
11 de novembro de 2001
Por cinco votos a dois, o júri popular considera que os quatro réus cometeram homicídio triplamente qualificado (crime hediondo), por motivo torpe (diversão), de forma cruel (uso de fogo) e covarde, sem chance de defesa à vítima. A juíza fixa a pena em 14 anos,em regime fechado.
Junho de 2002
Menos de um ano após a condenação,Eron,Tomás e Antônio Novély conseguem autorização judicial para estudar e trabalhar fora do presídio,sem escolta policial ou vigilância.
Novembro de 2002
Max Rogério recebe o mesmo benefício.
Outubro de 2003
O Correio publica série de reportagens em que flagra Antônio Novély, Max Rogério e Eron Chaves desrespeitando as autorizações judiciais concedidas para trabalho e estudo fora da prisão. Os três são filmados bebendo, namorando e encontrando amigos em bares do Plano Piloto. Tómas de Oliveira não teve a rotina acompanhada pelo jornal.Ainda assim, a Vara de Execuções Criminais (VEC) suspende provisoriamente as regalias concedidas pela Justiça a todos eles.
Dezembro de 2003
A VEC proíbe em definitivo os quatro condenados de saírem da prisão para estudar e
trabalhar.
Novembro de 2004
Tomás e Eron conquistam a liberdade condicional.
Dezembro de 2004
Max e Antônio Novély saem da prisão pelo mesmo benefício.
Fim de 2006
O pai de Galdino, Juvenal Rodrigues dos Santos, morre no sul da Bahia.
17 de abril de 2007
Os 10 anos da morte de Galdino são lembrados por índios de 102 etnias em Brasília. Cerca de 400 deles pintam com tinta preta o Monumento a Galdino, na 703 Sul, obra do artista plástico goiano Siron Franco.
CB, 20/04/2007, Cidades, p. 24-25
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