De Povos Indígenas no Brasil
Notícias
Caso Mariana: a ambiguidade colonial
25/02/2025
Autor: BERCOVICI, Gilberto
Fonte: FSP - https://www1.folha.uol.com.br/
Caso Mariana: a ambiguidade colonial
Qualquer neófito em direito, ao ler os contratos firmados entre escritório londrino e municípios brasileiros, percebe que algo está fora de lugar
Gilberto Bercovici
Advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP
25/02/2025
Reportagem recentemente publicada na Folha ("Mariana: Quem desistir de ação em Londres terá de indenizar escritório", 13/2) dá-nos conta de que o escritório de advocacia Pogust Goodhead -que representa vítimas e municípios atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), perante os tribunais de Londres- endereçou uma carta aos clientes brasileiros para recordá-los de que, em caso de desistência do litígio na corte britânica, terão de indenizá-los.
A ambiguidade do discurso colonial é realmente extraordinária. Publicamente, intervenções grandiloquentes de que as ações na Inglaterra buscam ensinar as empresas a priorizar a segurança em detrimento do lucro. Na esfera privada, porém, notificações duras aos clientes destinadas a evitar a adesão ao acordo alcançado pelas autoridades brasileiras em prol, obviamente, dos lucros do escritório.
Qualquer neófito em direito, ao ler os contratos firmados entre o Pogust Goodhead e os municípios brasileiros, percebe que algo está fora de lugar. Para além da impossibilidade desses entes subnacionais litigarem no exterior, há um evidente descompasso dos contratos de honorários com a legislação brasileira. Em rigor, renuncia-se solenemente às normas que regem as contratações públicas no Brasil em favor das normas da metrópole.
Aliás, não é à toa que o eminente ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 1.178, determinou liminarmente que os municípios se abstenham de efetuar qualquer pagamento de honorários relativos às ações judiciais perante tribunais estrangeiros "sem antes haver exame da legalidade por parte das instâncias soberanas do Estado brasileiro, sobretudo este STF".
Em um ambiente marcado pelo medo de responsabilização, inclusive de ordem criminal, nas diversas esferas de controle que atuam sobre a administração pública municipal, é difícil imaginar um prefeito disposto a prosseguir na ação coletiva nos tribunais ingleses, sobretudo os que acabaram de se eleger e que, portanto, não assinaram os contratos de honorários. Renunciar a uma quantia certa e líquida prevista no acordo brasileiro em troca da aventura judicial inglesa, cuja chance de sucesso é altamente improvável e cuja validade é seriamente questionável? Trata-se de uma "bet" usando dinheiro público.
Por isso, somos levados a cogitar a hipotética situação de um município aderir ao acordo homologado pelo Supremo e depois receber uma cobrança de honorários do escritório inglês. Nas palavras do ministro Flávio Dino, "as instâncias soberanas do Estado brasileiro", notadamente o STF, jamais permitiriam que um escritório estrangeiro, baseado em um contrato ilegal, cobrasse de um município brasileiro por um acordo celebrado em território nacional e para cuja consecução ele não trabalhou, e jamais poderia trabalhar, por expressa vedação do Estatuto da Advocacia.
É por essas e outras que concluímos que o "colonizador de boa vontade", de que nos falava Albert Memmi, é simplesmente uma contradição em termos. O colonizador é incapaz de vencer o seu desejo de usurpação.
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/02/caso-mariana-a-ambiguidade-colonial.shtml
Qualquer neófito em direito, ao ler os contratos firmados entre escritório londrino e municípios brasileiros, percebe que algo está fora de lugar
Gilberto Bercovici
Advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da USP
25/02/2025
Reportagem recentemente publicada na Folha ("Mariana: Quem desistir de ação em Londres terá de indenizar escritório", 13/2) dá-nos conta de que o escritório de advocacia Pogust Goodhead -que representa vítimas e municípios atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), perante os tribunais de Londres- endereçou uma carta aos clientes brasileiros para recordá-los de que, em caso de desistência do litígio na corte britânica, terão de indenizá-los.
A ambiguidade do discurso colonial é realmente extraordinária. Publicamente, intervenções grandiloquentes de que as ações na Inglaterra buscam ensinar as empresas a priorizar a segurança em detrimento do lucro. Na esfera privada, porém, notificações duras aos clientes destinadas a evitar a adesão ao acordo alcançado pelas autoridades brasileiras em prol, obviamente, dos lucros do escritório.
Qualquer neófito em direito, ao ler os contratos firmados entre o Pogust Goodhead e os municípios brasileiros, percebe que algo está fora de lugar. Para além da impossibilidade desses entes subnacionais litigarem no exterior, há um evidente descompasso dos contratos de honorários com a legislação brasileira. Em rigor, renuncia-se solenemente às normas que regem as contratações públicas no Brasil em favor das normas da metrópole.
Aliás, não é à toa que o eminente ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 1.178, determinou liminarmente que os municípios se abstenham de efetuar qualquer pagamento de honorários relativos às ações judiciais perante tribunais estrangeiros "sem antes haver exame da legalidade por parte das instâncias soberanas do Estado brasileiro, sobretudo este STF".
Em um ambiente marcado pelo medo de responsabilização, inclusive de ordem criminal, nas diversas esferas de controle que atuam sobre a administração pública municipal, é difícil imaginar um prefeito disposto a prosseguir na ação coletiva nos tribunais ingleses, sobretudo os que acabaram de se eleger e que, portanto, não assinaram os contratos de honorários. Renunciar a uma quantia certa e líquida prevista no acordo brasileiro em troca da aventura judicial inglesa, cuja chance de sucesso é altamente improvável e cuja validade é seriamente questionável? Trata-se de uma "bet" usando dinheiro público.
Por isso, somos levados a cogitar a hipotética situação de um município aderir ao acordo homologado pelo Supremo e depois receber uma cobrança de honorários do escritório inglês. Nas palavras do ministro Flávio Dino, "as instâncias soberanas do Estado brasileiro", notadamente o STF, jamais permitiriam que um escritório estrangeiro, baseado em um contrato ilegal, cobrasse de um município brasileiro por um acordo celebrado em território nacional e para cuja consecução ele não trabalhou, e jamais poderia trabalhar, por expressa vedação do Estatuto da Advocacia.
É por essas e outras que concluímos que o "colonizador de boa vontade", de que nos falava Albert Memmi, é simplesmente uma contradição em termos. O colonizador é incapaz de vencer o seu desejo de usurpação.
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/02/caso-mariana-a-ambiguidade-colonial.shtml
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