De Povos Indígenas no Brasil
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"Povo do céu": a fusão de crenças dos indígenas da etnia Ingarikó
28/02/2025
Autor: Diego Oliveira
Fonte: Portal Amazonia - https://portalamazonia.com
Os Ingarikó são um dos grupos indígenas que habitam a região de Roraima, adjacente ao Monte Roraima, uma das paisagens mais icônicas da Amazônia. Se autodenominam Kakpon (aportuguesado como Kapon), termo que significa "povo das alturas" ou "povo do céu". Essa mesma designação é utilizada por outros dois povos que vivem na Guiana: os Akawaio e os Patamona.
A história dos Ingarikó está ligada às serras e florestas do alto Cotingo, onde preservam suas tradições culturais e sociais. Como outros povos de língua karib, os Ingarikó compartilham semelhanças com os Pemon, outro grupo indígena presente na região. A relação entre esses povos envolve trocas comerciais, casamentos e históricos conflitos bélicos que deixaram marcas em sua mitologia e organização social.
Embora mantenham antigas práticas xamânicas e se considerem descendentes dos irmãos mitológicos Makunaimë e Siikë, os Ingarikó são adeptos da religião Areruya, que incorpora elementos cristãos em sua espiritualidade. Essa fusão de crenças reflete o processo histórico de interação entre os povos indígenas e os missionários que atuaram na região.
A identidade dos Ingarikó também se manifesta nas denominações que atribuem a si mesmos. Historicamente, sua classificação se dava pelo local de residência, como panarîkok (povo do rio Panari), sekkuwekok (povo do igarapé Sekkuwe) ou kuwatinkok (povo do rio Cotingo). No entanto, com o fortalecimento da identidade política e a relação crescente com o Estado brasileiro, o etnônimo "Ingarikó" passou a ser adotado em contextos institucionais.
A autodenominação "Inkarîkok" tem diferentes interpretações entre seus membros. Alguns traduzem o termo como "moradores da ponta da serra", enquanto outros acreditam que signifique "gente da mata fechada" ou "gente do lugar úmido". De qualquer forma, seu uso crescente reflete o fortalecimento da identidade coletiva dos Ingarikó, especialmente no contexto de interação com os karaiwa (não indígenas) e as políticas indigenistas do Estado.
A trajetória dos Ingarikó evidencia a complexidade da identidade indígena na Amazônia, onde fronteiras culturais são fluidas e historicamente dinâmicas. Sua luta por reconhecimento e autonomia continua, reafirmando sua presença e importância na história dos povos originários do Brasil.
Identidade linguística
A linguista Maria Odileiz Sousa Cruz, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), destaca que os Ingarikó utilizam uma única denominação tanto para sua etnia quanto para sua língua.
Integrantes da família linguística Karib, eles pertencem ao grupo Kapon, ao lado dos Akawaio e Patamona. Além de sua língua materna, os Ingarikó compreendem facilmente outros idiomas indígenas, como Taurepan, Arekuna, Kamarakoto e Makuxi, sendo este último aprendido principalmente por meio do contato interétnico e da escolarização.
Segundo ela: "a língua Ingarikó se manifesta tanto na forma oral quanto escrita, permeando diversos aspectos da vida social, incluindo contextos culturais, rituais, religiosos, políticos e administrativos. Esse uso contínuo faz com que o idioma seja amplamente compartilhado entre diferentes gerações e esteja em constante evolução".
A especialista explica que as línguas naturais não exijam normas impostas, os Ingarikó, assim como outras sociedades, buscaram registrar seu idioma. Esse esforço resultou na organização de uma gramática para fins acadêmicos e didáticos.
A fonologia da língua é composta por sete vogais (a, e, ë, i, î, o, u) - algumas alongadas, como em "tîîse" (mas) e "paasi" (irmã) - e dez consoantes (p, t, k, ' (glotal), m, n, s, r, y, w). A consoante glotal, representada por "´", tem um papel dinâmico e pode variar dentro da palavra, como em "wa´ka~waaka" (machado). Além disso, há duplicação de consoantes em algumas palavras, como "sekkerente" (tipo de banana) e "tiwinnë" (um só).
Ela destaca ainda que o vocabulário Ingarikó apresenta um rico repertório de termos ligados à fauna e flora. Palavras básicas se combinam para formar novos significados, como "urana" (paca) e "urana yek" (abóbora, espécie); "waikin" (veado) e "waikinimî" (onça, predador do veado). Esses padrões também contribuem para a ciência, com nomes indígenas sendo incorporados a terminologias internacionais, como "pakira" (caititu), que originou o nome científico Pachira aquatica para a árvore monguba. Além disso, a interação com outras línguas tem levado à adoção de novos termos, como "kaware" (cavalo), "merîsîmî" (medicina) e "aroisa" (arroz).
Maria Odileiz conta que gramática Ingarikó combina simplicidade morfológica com sofisticação semântica. Prefixos e sufixos são compartilhados entre substantivos e verbos, como em "ukamatu" (meu fogo) e "upakai" (eu acordei). A estrutura verbal opera em dois sistemas: o Ergativo-Absolutivo, mais produtivo, como em "urë uya kuwata wënëkpî" (eu matei o macaco), e o Nominativo-Acusativo, menos frequente, exemplificado por "nîwënëi" (eu matei ele, o macaco).
Com o avanço da escrita na língua materna, os Ingarikó têm registrado narrativas mitológicas, lúdicas, religiosas e culturais, anteriormente restritas à oralidade. O fortalecimento do ensino da língua tem sido impulsionado por indígenas que se tornaram professores em suas comunidades. No entanto, o predomínio do português no material didático desafia esse processo, exigindo esforços contínuos para traduzir e adaptar os conteúdos entre os dois idiomas. Esse cenário, por outro lado, fomenta o bilinguismo, permitindo que a língua Ingarikó siga viva e em constante transformação.
Religião Areruya
Areruya é a religião praticada pelos Ingarikó e por outras etnias dos povos Kapon e Pemon. Suas cerimônias ocorrem em grandes malocas chamadas soosi (termo derivado do inglês "church") e são realizadas nos finais de semana e em datas comemorativas, como o Natal e a virada do ano.
A primeira descrição dessas cerimônias remonta a 1911, quando o etnólogo alemão Koch-Grünberg as testemunhou entre os Taurepan. Em 1917, o jesuíta Cary-Elwes registrou que os Akawaio já reconheciam o Areruya como uma religião estabelecida. A principal característica que diferencia essa prática de outros ritos cristãos é a dança coletiva circular, que pode durar toda a manhã de sábado ou atravessar a madrugada em ocasiões festivas. No encerramento, o grupo de dançarinos avança em direção à saída da igreja e recua diversas vezes antes de finalmente sair, girando algumas vezes ao redor do pátio externo.
Após a dança, uma refeição é servida no pátio ou dentro da maloca. Antes de comer, todos cantam um tema relacionado à alimentação, seguido de uma oração coletiva chamada esekunkantok, semelhante às ladainhas de outras tradições cristãs.
O alimento principal inclui beiju e damurida (um caldo apimentado feito com tucupi), enquanto o caxiri é distribuído por alguém, geralmente uma mulher, que também lava as cuias logo após o uso. Quando há carne, sua distribuição é feita de maneira igualitária. Em celebrações especiais, as mulheres preparam grandes quantidades de caxiri e beiju, enquanto os homens se organizam para caçar ou produzir bebidas alcoólicas, como sikaru eku (fermentado de cana) e kaiwarak eku (fermentado de abacaxi). A pesca e a caça são planejadas para garantir fartura de carne e peixe.
A prática do Areruya vai além das cerimônias religiosas. Os cantos podem ser entoados no dia a dia, como à noite antes de dormir ou ao amanhecer, especialmente em núcleos familiares. Em momentos coletivos, como mutirões para abrir novas roças ou refeições compartilhadas entre famílias, as orações e os cantos são conduzidos por pessoas mais velhas ou com maior conhecimento religioso.
Nas aldeias que possuem igreja, há um líder religioso chamado soosi epuru (liderança da igreja/ religiosa), auxiliado por lideranças secundárias. Ele é responsável por guiar as cerimônias, puxar os cantos, orientar a dança e fazer os sermões. Outros líderes podem substituí-lo nessas funções e também conduzir a oração final antes da refeição.
As cerimônias do Areruya são apreciadas por todas as idades. Qualquer pessoa, inclusive jovens, pode liderar um ou mais cantos durante as celebrações - um hábito incentivado pelas lideranças. As crianças participam desde bebês, acompanhando pais e avós à igreja, e, assim que aprendem a andar, já integram a dança coletiva.
A origem de Areruya conforme a história não indígena
Relatos de cronistas sugerem que Areruya consiste em uma cristalização de movimentos proféticos kapon e pemon que ocorreram, majoritariamente, no século dezenove. Muitos deles foram liderados por pajés, que, a partir do convívio intermitente ou efêmero com missionários cristãos, sobretudo anglicanos, passaram a profetizar o advento de um cataclismo, associado à promessa de salvação indígena no paraíso cristão e, em alguns casos, à conquista das mercadorias dos colonizadores.
Atualmente, os Ingarikó e outros Kapon e Pemon negam qualquer influência missionária sobre a criação de Areruya. E essa compreensão tem respaldo em mitos de origem da religião que, embora registrem que ela surgiu a partir do encontro de seus profetas fundadores com religiosos não indígenas, retratam estes últimos como inimigos e colocam em dúvida a veracidade de seu conhecimento. Na narrativa dos Akawaio, mais historicizada, os brancos são missionários ingleses que não quiseram mostrar a seu aprendiz indígena o caminho do paraíso cristão; em outra, a dos Ingarikó, as palavras divinas são melhor compreendidas pelo profeta Pîraikoman do que por Noé, seu rival branco. Todas as versões enfatizam que os pioneiros indígenas receberam as palavras de Areruya diretamente de Deus, o qual eles contataram por si próprios. Algumas revelam que esse contato se deu através de viagens espirituais oníricas, um método de conhecimento tipicamente xamânico. A criação de Areruya através de práticas xamânicas é, portanto, um importante fator de explicação do não reconhecimento indígena de influência missionária sobre a religião.
A origem de Areruya conforme a história oral ingarikó
A narrativa seguinte reúne versões contadas por cinco Ingarikó: Marcos, o líder religioso da Serra do Sol; Dilson Ingaricó; Darcília Brasil; o finado Manoel Sales; Samuel Camilo Williams. Três delas foram narradas em Kapon e traduzidas pelo último.
Contam os Ingarikó que Areruya surgiu com Pîraikoman, no tempo de Noé, o criador da Bíblia. Pîraikoman era indígena, não se sabe de qual povo. Vivia dançando e cantando, mas era acompanhado apenas pela sogra e a irmã mais nova de sua esposa. Já Noé, que era branco, tinha dinheiro e muitos seguidores.
Como Pîraikoman era feio, com a pele cheia de feridas, sua mulher não lhe dava atenção e namorava Noé. O marido não se importava, só queria praticar Areruya e ir para a roça. Lá ele trocava de pele. Tirava a que tinha e transformava-se em um homem bonito, sem que ninguém o percebesse. Antes de voltar para casa, colocava novamente a pele com feridas. Um dia, a mulher foi embora com Noé. Eles não tinham roça e roubavam a de Pîraikoman,que deu origem a muitos alimentos que os Kapon conhecem hoje: mandioca, batata doce, abóbora etc. Ele não se incomodava. Sabia que um dia subiria ao paraíso. E foi assim: um dia ele subiu, levando consigo a sogra e a cunhada. Os seguidores de Noé correram para arrancar todos os alimentos de Pîraikoman, mas quando chegaram à sua roça, só encontraram a pele feia que havia ficado pra trás. As feridas eram seus antigos pecados. Ele havia trocado de pele e subiu sem morrer, tornou-se imortal. O lugar havia virado floresta e todas suas plantas subiram com ele.
Pîraikomanencontrou Deus e, lá de cima, fez chover muito, provocando o dilúvio. Deus orientou Noé a construir um barco onde ele colocaria todos os animais. E assim ele fez. Noé, a ex-mulher de Pîraikoman e os animais ficaram dias trancados no barco, esperando a água baixar lentamente. Depois que a água baixou, elesencalharam. Não morreram. Mas também não subiram, à maneira de Pîraikoman. Seu barco está por aí, encalhado.
Dizem que Pîraikomansentia a palavra de Deus dentro de si. Não era necessário que Deus lhe dissesse o que fazer. Ele apenas agia e Deus o aprovava. Noé já precisava da orientação divina. Tinha medo de errar, medo de tudo, então ouvia Deus antes de agir. Em contraste com Pîraikoman, ele não tinha expressão própria. Então fez riscos dizendo que aquelas eram palavras divinas. Foi assim que surgiu a escrita. E também a diferença entre as religiões: as bíblicas e Areruya.
https://portalamazonia.com/cultura/fusao-crencas-indigenas-ingariko/
A história dos Ingarikó está ligada às serras e florestas do alto Cotingo, onde preservam suas tradições culturais e sociais. Como outros povos de língua karib, os Ingarikó compartilham semelhanças com os Pemon, outro grupo indígena presente na região. A relação entre esses povos envolve trocas comerciais, casamentos e históricos conflitos bélicos que deixaram marcas em sua mitologia e organização social.
Embora mantenham antigas práticas xamânicas e se considerem descendentes dos irmãos mitológicos Makunaimë e Siikë, os Ingarikó são adeptos da religião Areruya, que incorpora elementos cristãos em sua espiritualidade. Essa fusão de crenças reflete o processo histórico de interação entre os povos indígenas e os missionários que atuaram na região.
A identidade dos Ingarikó também se manifesta nas denominações que atribuem a si mesmos. Historicamente, sua classificação se dava pelo local de residência, como panarîkok (povo do rio Panari), sekkuwekok (povo do igarapé Sekkuwe) ou kuwatinkok (povo do rio Cotingo). No entanto, com o fortalecimento da identidade política e a relação crescente com o Estado brasileiro, o etnônimo "Ingarikó" passou a ser adotado em contextos institucionais.
A autodenominação "Inkarîkok" tem diferentes interpretações entre seus membros. Alguns traduzem o termo como "moradores da ponta da serra", enquanto outros acreditam que signifique "gente da mata fechada" ou "gente do lugar úmido". De qualquer forma, seu uso crescente reflete o fortalecimento da identidade coletiva dos Ingarikó, especialmente no contexto de interação com os karaiwa (não indígenas) e as políticas indigenistas do Estado.
A trajetória dos Ingarikó evidencia a complexidade da identidade indígena na Amazônia, onde fronteiras culturais são fluidas e historicamente dinâmicas. Sua luta por reconhecimento e autonomia continua, reafirmando sua presença e importância na história dos povos originários do Brasil.
Identidade linguística
A linguista Maria Odileiz Sousa Cruz, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), destaca que os Ingarikó utilizam uma única denominação tanto para sua etnia quanto para sua língua.
Integrantes da família linguística Karib, eles pertencem ao grupo Kapon, ao lado dos Akawaio e Patamona. Além de sua língua materna, os Ingarikó compreendem facilmente outros idiomas indígenas, como Taurepan, Arekuna, Kamarakoto e Makuxi, sendo este último aprendido principalmente por meio do contato interétnico e da escolarização.
Segundo ela: "a língua Ingarikó se manifesta tanto na forma oral quanto escrita, permeando diversos aspectos da vida social, incluindo contextos culturais, rituais, religiosos, políticos e administrativos. Esse uso contínuo faz com que o idioma seja amplamente compartilhado entre diferentes gerações e esteja em constante evolução".
A especialista explica que as línguas naturais não exijam normas impostas, os Ingarikó, assim como outras sociedades, buscaram registrar seu idioma. Esse esforço resultou na organização de uma gramática para fins acadêmicos e didáticos.
A fonologia da língua é composta por sete vogais (a, e, ë, i, î, o, u) - algumas alongadas, como em "tîîse" (mas) e "paasi" (irmã) - e dez consoantes (p, t, k, ' (glotal), m, n, s, r, y, w). A consoante glotal, representada por "´", tem um papel dinâmico e pode variar dentro da palavra, como em "wa´ka~waaka" (machado). Além disso, há duplicação de consoantes em algumas palavras, como "sekkerente" (tipo de banana) e "tiwinnë" (um só).
Ela destaca ainda que o vocabulário Ingarikó apresenta um rico repertório de termos ligados à fauna e flora. Palavras básicas se combinam para formar novos significados, como "urana" (paca) e "urana yek" (abóbora, espécie); "waikin" (veado) e "waikinimî" (onça, predador do veado). Esses padrões também contribuem para a ciência, com nomes indígenas sendo incorporados a terminologias internacionais, como "pakira" (caititu), que originou o nome científico Pachira aquatica para a árvore monguba. Além disso, a interação com outras línguas tem levado à adoção de novos termos, como "kaware" (cavalo), "merîsîmî" (medicina) e "aroisa" (arroz).
Maria Odileiz conta que gramática Ingarikó combina simplicidade morfológica com sofisticação semântica. Prefixos e sufixos são compartilhados entre substantivos e verbos, como em "ukamatu" (meu fogo) e "upakai" (eu acordei). A estrutura verbal opera em dois sistemas: o Ergativo-Absolutivo, mais produtivo, como em "urë uya kuwata wënëkpî" (eu matei o macaco), e o Nominativo-Acusativo, menos frequente, exemplificado por "nîwënëi" (eu matei ele, o macaco).
Com o avanço da escrita na língua materna, os Ingarikó têm registrado narrativas mitológicas, lúdicas, religiosas e culturais, anteriormente restritas à oralidade. O fortalecimento do ensino da língua tem sido impulsionado por indígenas que se tornaram professores em suas comunidades. No entanto, o predomínio do português no material didático desafia esse processo, exigindo esforços contínuos para traduzir e adaptar os conteúdos entre os dois idiomas. Esse cenário, por outro lado, fomenta o bilinguismo, permitindo que a língua Ingarikó siga viva e em constante transformação.
Religião Areruya
Areruya é a religião praticada pelos Ingarikó e por outras etnias dos povos Kapon e Pemon. Suas cerimônias ocorrem em grandes malocas chamadas soosi (termo derivado do inglês "church") e são realizadas nos finais de semana e em datas comemorativas, como o Natal e a virada do ano.
A primeira descrição dessas cerimônias remonta a 1911, quando o etnólogo alemão Koch-Grünberg as testemunhou entre os Taurepan. Em 1917, o jesuíta Cary-Elwes registrou que os Akawaio já reconheciam o Areruya como uma religião estabelecida. A principal característica que diferencia essa prática de outros ritos cristãos é a dança coletiva circular, que pode durar toda a manhã de sábado ou atravessar a madrugada em ocasiões festivas. No encerramento, o grupo de dançarinos avança em direção à saída da igreja e recua diversas vezes antes de finalmente sair, girando algumas vezes ao redor do pátio externo.
Após a dança, uma refeição é servida no pátio ou dentro da maloca. Antes de comer, todos cantam um tema relacionado à alimentação, seguido de uma oração coletiva chamada esekunkantok, semelhante às ladainhas de outras tradições cristãs.
O alimento principal inclui beiju e damurida (um caldo apimentado feito com tucupi), enquanto o caxiri é distribuído por alguém, geralmente uma mulher, que também lava as cuias logo após o uso. Quando há carne, sua distribuição é feita de maneira igualitária. Em celebrações especiais, as mulheres preparam grandes quantidades de caxiri e beiju, enquanto os homens se organizam para caçar ou produzir bebidas alcoólicas, como sikaru eku (fermentado de cana) e kaiwarak eku (fermentado de abacaxi). A pesca e a caça são planejadas para garantir fartura de carne e peixe.
A prática do Areruya vai além das cerimônias religiosas. Os cantos podem ser entoados no dia a dia, como à noite antes de dormir ou ao amanhecer, especialmente em núcleos familiares. Em momentos coletivos, como mutirões para abrir novas roças ou refeições compartilhadas entre famílias, as orações e os cantos são conduzidos por pessoas mais velhas ou com maior conhecimento religioso.
Nas aldeias que possuem igreja, há um líder religioso chamado soosi epuru (liderança da igreja/ religiosa), auxiliado por lideranças secundárias. Ele é responsável por guiar as cerimônias, puxar os cantos, orientar a dança e fazer os sermões. Outros líderes podem substituí-lo nessas funções e também conduzir a oração final antes da refeição.
As cerimônias do Areruya são apreciadas por todas as idades. Qualquer pessoa, inclusive jovens, pode liderar um ou mais cantos durante as celebrações - um hábito incentivado pelas lideranças. As crianças participam desde bebês, acompanhando pais e avós à igreja, e, assim que aprendem a andar, já integram a dança coletiva.
A origem de Areruya conforme a história não indígena
Relatos de cronistas sugerem que Areruya consiste em uma cristalização de movimentos proféticos kapon e pemon que ocorreram, majoritariamente, no século dezenove. Muitos deles foram liderados por pajés, que, a partir do convívio intermitente ou efêmero com missionários cristãos, sobretudo anglicanos, passaram a profetizar o advento de um cataclismo, associado à promessa de salvação indígena no paraíso cristão e, em alguns casos, à conquista das mercadorias dos colonizadores.
Atualmente, os Ingarikó e outros Kapon e Pemon negam qualquer influência missionária sobre a criação de Areruya. E essa compreensão tem respaldo em mitos de origem da religião que, embora registrem que ela surgiu a partir do encontro de seus profetas fundadores com religiosos não indígenas, retratam estes últimos como inimigos e colocam em dúvida a veracidade de seu conhecimento. Na narrativa dos Akawaio, mais historicizada, os brancos são missionários ingleses que não quiseram mostrar a seu aprendiz indígena o caminho do paraíso cristão; em outra, a dos Ingarikó, as palavras divinas são melhor compreendidas pelo profeta Pîraikoman do que por Noé, seu rival branco. Todas as versões enfatizam que os pioneiros indígenas receberam as palavras de Areruya diretamente de Deus, o qual eles contataram por si próprios. Algumas revelam que esse contato se deu através de viagens espirituais oníricas, um método de conhecimento tipicamente xamânico. A criação de Areruya através de práticas xamânicas é, portanto, um importante fator de explicação do não reconhecimento indígena de influência missionária sobre a religião.
A origem de Areruya conforme a história oral ingarikó
A narrativa seguinte reúne versões contadas por cinco Ingarikó: Marcos, o líder religioso da Serra do Sol; Dilson Ingaricó; Darcília Brasil; o finado Manoel Sales; Samuel Camilo Williams. Três delas foram narradas em Kapon e traduzidas pelo último.
Contam os Ingarikó que Areruya surgiu com Pîraikoman, no tempo de Noé, o criador da Bíblia. Pîraikoman era indígena, não se sabe de qual povo. Vivia dançando e cantando, mas era acompanhado apenas pela sogra e a irmã mais nova de sua esposa. Já Noé, que era branco, tinha dinheiro e muitos seguidores.
Como Pîraikoman era feio, com a pele cheia de feridas, sua mulher não lhe dava atenção e namorava Noé. O marido não se importava, só queria praticar Areruya e ir para a roça. Lá ele trocava de pele. Tirava a que tinha e transformava-se em um homem bonito, sem que ninguém o percebesse. Antes de voltar para casa, colocava novamente a pele com feridas. Um dia, a mulher foi embora com Noé. Eles não tinham roça e roubavam a de Pîraikoman,que deu origem a muitos alimentos que os Kapon conhecem hoje: mandioca, batata doce, abóbora etc. Ele não se incomodava. Sabia que um dia subiria ao paraíso. E foi assim: um dia ele subiu, levando consigo a sogra e a cunhada. Os seguidores de Noé correram para arrancar todos os alimentos de Pîraikoman, mas quando chegaram à sua roça, só encontraram a pele feia que havia ficado pra trás. As feridas eram seus antigos pecados. Ele havia trocado de pele e subiu sem morrer, tornou-se imortal. O lugar havia virado floresta e todas suas plantas subiram com ele.
Pîraikomanencontrou Deus e, lá de cima, fez chover muito, provocando o dilúvio. Deus orientou Noé a construir um barco onde ele colocaria todos os animais. E assim ele fez. Noé, a ex-mulher de Pîraikoman e os animais ficaram dias trancados no barco, esperando a água baixar lentamente. Depois que a água baixou, elesencalharam. Não morreram. Mas também não subiram, à maneira de Pîraikoman. Seu barco está por aí, encalhado.
Dizem que Pîraikomansentia a palavra de Deus dentro de si. Não era necessário que Deus lhe dissesse o que fazer. Ele apenas agia e Deus o aprovava. Noé já precisava da orientação divina. Tinha medo de errar, medo de tudo, então ouvia Deus antes de agir. Em contraste com Pîraikoman, ele não tinha expressão própria. Então fez riscos dizendo que aquelas eram palavras divinas. Foi assim que surgiu a escrita. E também a diferença entre as religiões: as bíblicas e Areruya.
https://portalamazonia.com/cultura/fusao-crencas-indigenas-ingariko/
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