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Mundo perde Sebastião Salgado, que retratou as injustiças humanas

23/05/2025

Autor: SERVA, Leão

Fonte: FSP - https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/05/mundo-perde-sebastiao-salgado-que-retratou-as-



Mundo perde Sebastião Salgado, que retratou as injustiças humanas
Mais universal dos fotógrafos brasileiros e um dos maiores do mundo, foi ainda grande escritor, político, economista e pessoa

Leão Serva
23.mai.2025 às 21h46

O mundo perdeu um de seus maiores. Podemos escolher substantivos para esse superlativo. Fotógrafo -Sebastião Salgado certamente foi uma das grandes estrelas dessa arte. Escritor -dizia que não, mas seus livros, entre os mais vendidos do planeta, contêm textos brilhantes que ele escreveu. Político -talvez você não saiba, mas ele pensou e atuou na política não partidária por toda a vida, tanto que se exilou na França para escapar da ditadura militar antes que o pegassem por sua militância. Economista -com ótimos trabalhos antes da fotografia e depois como administrador de empresas, próprias ou cooperativas. Marido, pai, amigo, esteta, ativista, influenciador. Tantas coisas que a fotografia genial até obscurecia.

Tão logo a notícia foi divulgada, líderes indígenas brasileiros me ligaram emocionados ou chorando -Afukaká Kuikuro, do Xingu, Beto Marubo, do Vale do Javari, Francisco Piyanko Ashaninka, Davi Kopenawa, Biraci Brasil Yawanawá. De todos os cantos indígenas, há uma sensação de que perdemos um irmão mais velho.

Quando Sebastião Salgado resolveu abraçar a questão indígena de forma mais intensa, diante da percepção de que o resto do Brasil assiste inerte à destruição das condições de vida dos povos originários, ele mobilizou imprensa, políticos, ministros do Supremo Tribunal Federal e seus amigos do mundo inteiro. A lista de signatários de seu movimento contra o descaso do governo de Jair Bolsonaro durante a pandemia é repleta de gente de imensa influência política e cultural no mundo todo. A mobilização foi tal que inúmeros respiradores, remédios e recursos foram levados a áreas indígenas, contra a vontade do governo federa, com a decisão da Suprema Corte.

Minha brincadeira para Tião era a de que Aimorés -sua cidade natal, em Minas Gerais- e o mundo perderam um cantor e ganharam um fotógrafo. Ele dizia que Aimorés era pequena demais para dois grandes cantores -no caso, Altemar Dutra já tinha ocupado o espaço. Foi uma boa troca. Mesmo assim, Tião cantava o tempo todo -trabalhando, em casa ou caminhando pela rua.

Cascatinha e Inhana faziam a trilha sonora ideal para o momento de fotografar indígenas. Ele imitava a voz, cantando "índia, seus cabelos". A música servia para distrair os retratados no estúdio. No tempo da fotografia em filmes, a troca dos rolos levava uns minutos, e as pessoas tendiam a perder a concentração. Ele cantava para espantar a dispersão. O hábito permaneceu após a digitalização.

Era para ter sido economista. O jovem casal Lélia e Tião, vindo do Espírito Santo, se juntou para morar em São Paulo para ele estudar economia, enquanto ela fazia arquitetura. Em seguida, fez um mestrado e ia bem na secretaria estadual da Fazenda. O casal dedicava parte de seu salário para apoiar militantes de esquerda que lutavam contra a ditadura.

Um companheiro de militância foi preso em 1969, e eles perceberam que o cerco estava chegando. Com a ajuda do empresário José Mindlin e da filha Bety, antropóloga e amiga de longa data, conseguiram uma passagem em um navio do Loyd Brasileiro para a França e se foram para o exílio. O economista ia bem e arrumou um bom emprego na Organização Internacional do Café, em Londres, para onde se mudaram.

A fotografia, como tantas outras coisas que se tornaram fundamentais na vida de Tião, veio de Lélia, que, além da arquitetura, tinha aulas de artes plásticas. Para isso, sua mulher precisava de uma máquina fotográfica e o casal usou suas economias para comprar uma câmera Asahi Pentax.

Tião adorava saber sobre as pinturas renascentistas que Lélia estudava e observava nos museus -perspectiva, claro-escuro, as formas clássicas. Eles aprendiam juntos. Mas um dia ele pegou a câmera dela, passou a viajar com a Pentax e se apaixonou. Voltava das viagens a países da África com mais amor pelas fotos do que pelos relatórios de desenvolvimento de produção de café.

Decidido a mudar, Tião então indicou para o cargo o amigo Henri Philippe Reichstul, e voltou para Paris com Lélia. A troca foi boa -Reichstul provou ser um bom economista, e Sebastião Salgado, de volta a Paris, virou um dos maiores fotógrafos do mundo.

Ele fazia o projeto da Amazônia, fotografando florestas e povos originários desde o fim dos anos 2010, durante a produção do livro "Gênesis". Um dia, teve oportunidade de visitar os korubos, os "índios caceteiros", pela violência com que usavam a borduna -e não arco e flecha- em ataques a inimigos. Tião achava que os ataques de garimpeiros à região do Vale do Javari estavam perigosos para seus povos e quis levar em sua expedição um repórter.

Eu voltava de uma pesquisa de doutorado em Londres e faltava pouco para defender minha tese sobre fotografia de guerra, no final de 2017. O telefone tocou. "Leão, aqui é o Sebastião Salgado." Não sei como você acha que pode comparar, mas se você é religioso, pense no arcanjo Gabriel. Se é comunista, pense que Fidel Castro está na linha. Ou Einstein. Era a terceira vez que o antropólogo Beto Ricardo, nosso amigo em comum, respondia com meu nome quando Tião perguntava quem era o repórter que o deveria acompanhar em uma expedição a terras indígenas. Nas duas vezes anteriores, ele optou por Miriam Leitão e Arnaldo Bloch e juntos fizeram bonitos trabalhos para o jornal O Globo.

Na terceira vez, ele aceitou a sugestão e me ligou. Contei que tinha uma coluna neste jornal e ele fez a sugestão. "Uma foto com uma chamada de capa e dez páginas em um caderno especial." Ele já tinha feito outros projetos desse porte com o jornal, como em "Trabalhadores" e "Êxodos" -e adorava dizer que "trabalhou" na Folha.

Na época, falei com Sergio Dávila, que conversou com Otavio Frias Filho. Os dois toparam e lá fui eu encontrar Tião na terra dos korubos. O jornal gostou, e Tião decuplicou a aposta -dez cadernos especiais sobre povos indígenas na Amazônia. O jornal topou e lá vieram -ashaninkas, marubos, suruwahás, zoés, yanomamis, yawanawás, Xingu, Serra Pelada e paisagens amazônicas. Foram dez cadernos sobre etnias indígenas da floresta Amazônica, publicados de 2017 a 2021, o maior conjunto editorial já publicado sobre indígenas no Brasil em toda a história da imprensa do país, como sempre gostou de ressaltar Beto Ricardo, fundador do Instituto Socioambiental

Tião tinha razão em seus temores sobre o Vale do Javari. Uma das pessoas que nos ajudou a chegar aos korubos foi o chefe da Funai, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, na região, Bruno Pereira. Pouco depois, Pereira pediu demissão diante da transformação da Funai em um órgão contra os indígenas, sob o governo Bolsonaro. Em seguida, foi morto ao lado do repórter Dom Phillips, do jornal The Guardian

Sebastião Salgado morreu um dia antes de um de seus sonhos se realizar -a exposição de seu filho mais novo, Rodrigo, que tem síndrome de Down, em uma catedral dessacralizada da cidade de Reims, no interior da França. "Rodrigo, Une Vie d'Artiste", ou Rodrigo, uma vida de artista.

Doze obras de Digo, seu apelido, foram transformadas em vitrais ao estilo renascentista. A abertura da mostra está mantida para este sábado. Num desses episódios misteriosos da vida, a data se tornará um marco de reconhecimento à arte do filho e homenagem ao pai, na firme presença de seu grande amor, Lélia, e do filho mais velho, Juliano, cineasta indicado ao Oscar com o documentário "O Sal da Terra", que ele dirigiu com Wim Wenders.

Depois de outras homenagens na França, Salgado deve ser cremado e suas cinzas enterradas no Instituto Terra, que Lélia idealizou na fazenda onde Tião foi criado, em Aimorés. Hoje, o cineasta Juliano cuida da ampliação do instituto para que ele recupere nascentes na bacia do rio Doce, para resgatar o perfil do rio como era quando Sebastião Salgado era pequeno. É mais uma das muitas facetas de Tião, o ambientalista que apostava que quem planta florestas colhe água.

Que suas águas abençoem o Vale do Rio Doce. Como suas imagens emocionam o mundo.


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