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Resistência Xetá: mais de 70 anos após genocídio, povo indígena paranaense segue sem reparação

14/04/2025

Fonte: Plural - https://www.plural.jor.br



O que você vai ler a partir de agora na série "Resistência Xetá" é a união de dois pilares que julgamos serem fundamentais para a construção de uma sociedade justa, igualitária e democrática: jornalismo e ciência. Ambos tecem processos de investigação, cada um com seus métodos de apuração, análise e escrita. Mas são capazes, especialmente quando unidos, de reconstruir a história muitas vezes negada oficialmente, a exemplo do povo Xetá.

E é exatamente em um momento de reconstrução da história do nosso país sob várias vertentes, com a instalação de Comissões da Verdade e a elaboração de dossiês que nos provocam a pensar um outro viés daquilo que insistentemente nos foi apresentado, é que nos pautamos para oportunizar a você, cidadão, acesso à história de um povo indígena inserido dentro de uma evidente marginalidade e que luta para sair da sub-representação.

Dessa maneira, propomos uma socialização do conhecimento sobre as razões e as circunstâncias que levaram às violações de direitos e que, em várias situações, subtraíram a memória, a verdade e até mesmo a vida.

Fazemos isso por meio da Agência Escola UFPR, um projeto cujo foco é a formação de alunos de diferentes cursos para a reflexão crítica e a prática profissional da Divulgação Científica e a Comunicação Pública da Ciência em diferentes linguagens e formatos. Um dos resultados é a série que aqui está. O nascedouro das cinco reportagens que emolduram esse trabalho é uma dissertação de mestrado, o que nos mostra como o conhecimento científico nos guia e o jornalismo, ciente da sua responsabilidade, nos conduz à reflexão ao transformar o conhecimento gerado pela ciência em um formato palatável. Boa leitura.

Serra dos Dourados é um distrito do município de Umuarama, no noroeste do Paraná. Lá, onde a PR-580 cruza com a BR-487 - a "estrada boiadeira" -, não há serra, apesar do nome. Quem passa pelo povoado de 3 mil habitantes encontra, na verdade, plantações de cana-de-açúcar, quilômetros de pasto e os poucos capões de Mata Atlântica que sobrevivem na região.

Por trás do cenário típico do Paraná, se esconde uma história de assassinatos em série, separação forçada de famílias, chacinas e envenenamentos, sequestros de crianças e o quase extermínio de toda uma população: o genocídio do povo Xetá.

Todas essas violências foram compiladas, em 2017, no relatório da Comissão Estadual da Verdade - Teresa Urban (CEV/PR), que reconheceu que os Xetá "sucumbiram diante do avanço desenfreado da frente cafeeira sobre suas terras no noroeste paranaense, em meados do século passado. Avanço que custou suas vidas."

O documento reúne as denúncias e apelos que há mais de 70 anos são negligenciados pelo Brasil: os governos estadual e federal, ao lado de empresas de colonização e de algumas das famílias mais poderosas do Paraná, formam o elenco de responsáveis ainda impunes pelo extermínio quase total dos Xetá.

O café
O ponto de partida para o avanço predatório contra o noroeste foi a grande aposta da época, início dos anos 1950: ainda mais terras para o cultivo do "ouro verde", como o café era conhecido. A monocultura fracassou em pouco tempo e ao custo de muito sangue. Hoje, quem impera na agricultura da região é a indústria sucroalcooleira, com cultivo em larga escala da cana-de-açúcar.

O "norte novíssimo", como passou a se chamar essa parte do estado, era o único trecho até então inexplorado pela colonização paranaense. Ali também estava o refúgio do último povo originário no Paraná sem contato com a sociedade não indígena. Com a chegada das frentes de colonização, os Xetá passam a ser massacrados pela ação de empresas e do governo. Em pouco mais de dez anos, foram quase apagados do território que ocuparam por séculos.

Os primeiros raptos
A primeira companhia de colonização na região foi a japonesa Suemitsu Miyamura & Cia Ltda., durante o primeiro governo de Moysés Lupion (1947-1951). Em 1949, um dos funcionários da empresa envia um comunicado ao Serviço de Proteção aos Índios (SPI), antecessor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), alertando sobre o contato.

"Estamos dividindo as terras do território da Serra dos Dourados para o japonês Miyamura, de Apucarana, o qual está revendendo os lotes a colonos procedentes de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul", relata Agostinho Veronesi, trabalhador da companhia. O movimento fez parte da "marcha para o oeste", política implementada a partir de 1938 pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. O objetivo era expandir as fronteiras agrícolas para o interior do Brasil.

Foi esse o contexto em que os indígenas foram alcançados pela colonização. "Certo dia, quando eu e três dos meus homens regressamos ao nosso acampamento, depois de terminar o trabalho e carregando nossas ferramentas, deparamos seis índios nus na picada que levava ao acampamento", descreve a mensagem de Veronesi.

Em julho de 1952, um inspetor do SPI viaja até a região para conferir a "prova" do comunicado: Kaiuá, uma criança Xetá separada da família e capturada pelos funcionários da Suemitsu. Sem conseguir alcançar o grupo do qual ela fazia parte, o agente tira o menino da Serra dos Dourados para criá-lo na própria pensão, em Curitiba.

Entre os parentes, o rapaz chamava-se Tikuein Ueió. Os não indígenas, no entanto, o registraram como Antônio Guairá Paraná. O nome "Kaiuá" é referência ao povo Guarani Kaiowá, ao qual Ueió foi inicialmente associado pelos brancos. No momento do rapto, ele estava com outros dois indígenas. Um deles, adulto, também foi preso. Esse homem era amigo do pai de Kaiuá e nunca mais foi visto.

O terceiro era outra criança, que conseguiu escapar: Anambu Guaka, nomeado pelos não indígenas como Tucanambá José Paraná. Em novembro do mesmo ano, Tuca, como ficou conhecido, também é raptado pelos agrimensores da Suemitsu. Como Kaiuá, ele é enviado a Curitiba e passa a viver na mesma pensão do inspetor do SPI.

Os kikãtxu
Entre os Xetá, havia a crença de que os kikãtxu caçavam, assassinavam e comiam crianças indígenas. A palavra pertence à língua da etnia e era usada para se referir aos brancos. Raptos como os de Tuca e Kaiuá ajudaram a reforçar a imagem maligna dos não indígenas entre os habitantes originários do noroeste paranaense.

"Lá no mato, eles falavam que os brancos matavam e comiam crianças, que eles eram ruins, mas ruins mesmo", conta Tuca, em entrevista para a antropóloga Carmen Lúcia da Silva. O depoimento faz parte da pesquisa que ela realizou em 1998 junto aos sobreviventes do genocídio. O trabalho integrou o programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

"O roubo de crianças foi muito grande", ressalta a pesquisadora. A partir de 1950, época dos primeiros sequestros documentados, o avanço das frentes de colonização se intensifica. A terra onde viviam os Xetá começa a ser cercada pelos povoados que hoje formam cidades como Douradina, Ivaté, Campo Mourão, Umuarama e Cruzeiro do Oeste, todas no noroeste do Paraná. O território indígena, aos poucos, é tomado pela monocultura e pelo gado.

Para João Pedro Minto Russo, mestre em Antropologia e Arqueologia pela Universidade Federal do Paraná, a origem do movimento de "ocupação" é clara. "A população que vai ocupar ali é toda guiada pela expansão agrícola, desde sempre", afirma. O loteamento da região é acelerado por incentivo do governo paranaense, sob a promessa de riqueza oferecida pelo cultivo cafeeiro. "Ao longo dos primeiros dez anos, tem um pico na produção de café. Depois, o solo se empobrece e acaba", afirma.

Fazenda Santa Rosa
Em 16 de julho de 1952, chegam à região das atuais Douradina e Ivaté vinte e três peões e um caminhão com quatro toneladas de carga. Eles são liderados por Antônio Lustosa de Freitas, que instala ali a Fazenda Santa Rosa. Em breve, aquele seria um dos únicos pontos para o contato efetivo com os indígenas da Serra dos Dourados.

A propriedade pertencia ao tio de Freitas, o deputado estadual Antônio Lustosa de Oliveira (PSD). Os 3,4 mil hectares de lote foram cedidos pelo governador paranaense Moysés Lupion em troca de terras em Guarapuava, a 300 km dali.

Quem observou de longe a chegada dos estranhos foi Kuein Manhaai Nhaguakã (manhaai é uma espécie de pássaro e nhaguacã, gato do mato), um dos Xetá sobreviventes. "Ele [Antônio de Freitas] media tudo, até o mato, e tomou conta da nossa terra. Todos os brancos faziam isso", relata, em entrevista de 1996, para a antropóloga Carmen da Silva.

Aquela era a região onde Kuein e seus parentes caçavam. "Eu fui cedinho espiar, nós tínhamos ouvido e visto tudo de noite, aí nós começamos a arrumar nossas tralhas pra sair de novo", narra. De acordo com o Xetá, seu grupo passou cerca de dois anos monitorando os não indígenas à distância, até o dia do contato. "Todas as vezes nós os víamos e corríamos deles. Aos poucos, começamos a não correr mais", conta.

"Não dava mais pra fugir, não podíamos mais continuar correndo, o nosso lugar de caçar ali já estava quase todo tomado", explica Nhaguakã. Quando decidiram se aproximar, seis homens Xetá - entre eles, Kuein - foram até a fazenda, todos desarmados. Mulheres e crianças ficaram escondidas na mata. O ano era 1954.

"Não dava mais pra fugir, não podíamos mais continuar correndo. O nosso lugar de caçar ali já estava quase todo tomado". - Kuein Manhaai Nhaguakã

A aproximação aconteceu quando os caseiros ofereceram alimento aos indígenas. A partir do contato, o grupo de Kuein passa a frequentar a fazenda e a interagir com os brancos, na expectativa de se proteger da dizimação colonizadora.

As consequências do encontro, no entanto, foram outras, como o trabalho de Carmen da Silva registra. "Para aqueles que buscaram o contato com o branco, diminuem as necessidades das fugas constantes, mas tem início uma outra saga: resistir às consequências nefastas do contato", aponta a antropóloga.

Através do grupo de Kuein, Antônio de Freitas, que havia conquistado a confiança daqueles primeiros indígenas, chega a outro núcleo Xetá até então sem contato estabelecido. Desse grupo, faziam parte Tikuein (Nhaguarai, que significa "mão-pelada") e à (Moko, que quer dizer "tamanduá"), irmã mais nova de Kauiá. Os dois estão entre os sobreviventes do genocídio e também foram entrevistados pela pesquisadora.

"Muitos morreram, não se acostumaram com o sal [...] Aquele pedaço onde estávamos, cada vez ficava mais cheio de branco, café e boi. Não tínhamos mais para onde correr e buscar comida", relata Kuein. Nesse cenário, o apoio do administrador da fazenda se torna uma das únicas saídas diante da destruição das fontes de subsistência da etnia.

"Para aqueles que buscaram o contato com os brancos, tem início uma outra saga: resistir às consequências nefastas do contato". - Carmen Lúcia da Silva, antropóloga
Serviço de Proteção aos Índios
Passam-se três anos após o primeiro contato do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) com os indígenas até que o órgão decida agir na Serra dos Dourados. Nesse intervalo, a destruição havia ganhado ainda mais força. Nenhuma das medidas de apoio sugeridas pelo inspetor que contatou a etnia tempos antes foi tomada pelo comando do SPI.

Em 1955, a entidade envia suas primeiras expedições organizadas à região, ocasião em que Tuca e Kaiuá, os dois meninos capturados pelos trabalhadores da Suemitsu Miyamura, retornam à Serra dos Dourados. Não para ficar. Eles são levados pelo chefe da 7ª Inspetoria Regional do SPI (7ªIR/SPI), Dival de Souza, como intérpretes, guias de contato e trabalhadores da comitiva.

O destino da equipe é a fazenda Santa Rosa, que havia comunicado os agentes sobre o contato com indígenas da região. Além dos dois meninos e do SPI, participaram das viagens o professor José Loureiro Fernandes, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o dono da fazenda e deputado estadual Antônio Lustosa de Oliveira (PSD), e o cinetécnico e fotógrafo tcheco Vladimir Kozák.

"Chegamos lá, estavam meu tio e muitos dos meus parentes. O Kuein estava lá também", relata Tuca. Foi a primeira vez, desde a separação, que os irmãos se reencontram. "Nesse dia, a à [Moko] encontrou o Kaiuá, eles se abraçaram e choraram muito porque se encontraram, era o nosso jeito", conta.

Embora já estivesse comprovada a existência de mais um povo indígena no Paraná, o SPI não havia, até o momento, tomado qualquer medida para conter o avanço das frentes de colonização contra o território da etnia. "Nada havia sido feito até então para garantir a sobrevivência física e cultural dos Xetá no noroeste do estado", destaca a pesquisa de Carmen da Silva.

Em vez disso, o órgão fez contato apenas com os grupos que já frequentavam a Fazenda Santa Rosa, apesar dos relatos sobre aqueles que ainda fugiam do avanço dos colonizadores floresta adentro. Segundo Tuca, a negligência impediu que outros núcleos familiares fossem sequer encontrados. "Muitas vezes, eu sentia que estávamos próximos, mas tínhamos que voltar e eu não entendia por quê", relembra.

"Nada havia sido feito até então para garantir a sobrevivência física e cultural dos Xetá no noroeste do estado". - Carmen Lúcia da Silva, antropóloga

No relatório das expedições, o chefe da 7ª Inspetoria do SPI ordena a criação de um posto de atração e vigilância para os indígenas na fazenda Santa Rosa, mas nada é dito sobre a demarcação do território Xetá. "Nem mesmo as terras onde foram localizados os acampamentos Xetá foram objeto de delimitação e demarcação", registra Carmen da Silva.

Outra expedição aconteceu em fevereiro de 1956, organizada pela UFPR, da qual o professor Loureiro Fernandes e o cinetécnico Kozák também participaram. Essa foi a última vez em que agentes do governo encontraram outros núcleos Xetá, e também a última vez em que Tuca viu o próprio pai.

Extermínio
Enquanto o governo permanecia omisso, continuaram os relatos de mateiros e trabalhadores das companhias sobre indígenas fugindo pela região da Serra dos Dourados. Eles são confirmados pelos Xetá que mantinham contato com a Fazenda Santa Rosa. Os núcleos familiares sem vínculo com os brancos não deixaram em nenhum momento de ser alvo de toda forma de violência colonial.

O caso de Nhengo, que fazia parte de um dos últimos grupos avistados, é emblemático. Esse núcleo não seguiu até a fazenda dos Freitas, onde estavam os demais. "Este grupo familiar foi barbaramente exterminado, no interior da floresta, por um grupo de homens brancos armados que invadiram a aldeia, atirando em todas as pessoas que ali estavam", registra Carmen da Silva, com base no relato dos sobreviventes.

Para Tuca, presente na expedição que viu o grupo de Nhengo pela última vez, o ocorrido foi falha dos responsáveis pela proteção dos indígenas. "Não houve outras aproximações para levá-los a confiar no branco. Eu tinha certeza que, se tivéssemos continuado, teríamos chegado em outros grupos", relata. Sobre a chacina, Nhengo relatou o mesmo a Kuein e ao pesquisador e linguista Aryon Rodrigues, da Universidade de Brasília (UnB), que esteve na região na época do contato.

Quando Nhengo foi localizado, a imprensa afirmou que ele tinha se perdido na mata. Nada foi publicado a respeito do massacre. "Nhengo nunca se perderia na mata, pois sabia muito bem andar nela. O que procurava era os seus parentes, aqueles que conseguiram fugir, os que tinham sobrado de sua gente", afirma Tucanambá.

Lei do genocídio
Para o antropólogo João Minto Russo, o processo genocida empreendido na Serra dos Dourados contra os Xetá é mais uma página da formação violenta do Estado brasileiro. "Todo o processo colonial do Brasil é um grande genocídio indígena. Cada caso, com cada povo, é uma manifestação local desse processo", afirma.

A lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, define e pune o crime de genocídio: é a "intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso". Os termos são previstos pela Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, realizada em Paris, no ano de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.

O texto elenca as práticas genocidas: matar membros do grupo; causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

"Todo o processo colonial do Brasil é um grande genocídio indígena. Cada caso, com cada povo, é uma manifestação local desse processo". - João Minto Russo, antropólogo
O povo Xetá foi alvo dessas e outras formas de violência, conforme aponta a investigação da antropóloga Carmen Lúcia da Silva, assim como a Comissão Estadual da Verdade e, acima de tudo, os depoimentos daqueles que testemunharam e sobreviveram ao extermínio da própria população.

Mais tarde, já na década de 1990, mesmo na contramão dos esforços de quem detém o poder no Brasil - em especial, empresas, governadores e grandes proprietários de terra -, os sobreviventes do genocídio resgataram forças para, reunidos novamente, lutarem por justiça. A memória dos antigos, a cultura e tradição e a busca por reparação seguem vivas entre os indígenas do noroeste do Paraná. Os Xetá continuam resistindo.

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