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Oito histórias sobre Belo Monte que a Norte Energia não contou na viagem patrocinada a Altamira

02/06/2025

Autor: Claudia Antunes , Fernanda da Escóssia , Mata Atlântica, Rio de Janeiro , Malu Delgado ,

Fonte: Sumaúma - https://sumauma.com



Com a renovação de sua licença pendente de uma análise ambiental e em meio a conflitos com as comunidades e os órgãos federais sobre a quantidade de água do Rio Xingu que pode ser represada ou liberada, a Usina Hidrelétrica Belo Monte entrou em uma ofensiva midiática para tentar mostrar sua relevância ao grande público. A Norte Energia, concessionária que controla Belo Monte, convidou jornalistas para visitar as instalações da usina, na Amazônia paraense. Mas isso não incluiu a escuta das vidas mais afetadas pela hidrelétrica.

Uma das reportagens, publicada na Folha de S.Paulo no início de maio, afirma que mesmo após ter contabilizado "8 bilhões de reais para cumprir mitigações socioambientais, o dobro do previsto inicialmente, bancando até obras de caráter público", Belo Monte "segue sendo criticada entre ambientalistas". Lista dados e números estrategicamente favoráveis à usina, que começou a operar há cerca de uma década. Mas fala pouco sobre problemas gerados ou acordos descumpridos. Um relatório do Ibama de 2024, por exemplo, mostra que a Norte Energia cumpriu pouco mais da metade das medidas compensatórias assumidas em 2021 para mitigar danos na Volta Grande do Xingu, uma das regiões mais biodiversas do planeta e uma das mais afetadas pela usina.

SUMAÚMA, cuja sede é em Altamira, centro vital de Belo Monte, acompanha desde antes de seu lançamento, em setembro de 2022, os efeitos que a hidrelétrica teve na vida das pessoas humanas e mais-que-humanas da região. Além das dezenas de matérias sobre o tema que publicamos nesse período, separamos nesta reportagem informações técnicas, documentos e relatos de pessoas que todos os dias dormem e acordam com a falta do rio, a morte dos peixes, o aumento da violência e várias outras consequências da obra em suas vidas. Pessoas que não são "ambientalistas", mas que tinham a vida conectada com o ritmo do Xingu e viram suas casas serem inundadas, os animais com os quais conviviam morrerem afogados, os peixes que conheciam se deformarem e berçários de novas vidas mais-que-humanas se transformarem em cemitérios.

Conheça a seguir oito fatos sobre Belo Monte que a ofensiva midiática da Norte Energia não mostrou a seus jornalistas convidados.

Tiraram a água do rio, tiraram a água das casas

Desde a década de 1970, quando a intenção de se construir uma hidrelétrica no Rio Xingu foi anunciada publicamente, Gracinda Lima Magalhães, a dona Gracinda, já lutava contra a licença para o empreendimento. Servidora pública há 35 anos e hoje conselheira municipal de saúde, ela entendeu, quando a licença virou realidade, em 2011, que a única saída possível seria se lançar numa luta diária para que os programas de mitigação do impacto da usina fossem cumpridos.

"Nossa luta sempre foi para minimizar os impactos de Belo Monte. Trabalhei com afinco na briga pelas condicionantes da saúde." A conselheira também é atingida pelo projeto e teve que se mudar para um dos cinco Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), projeto previsto no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte. Os RUCs são bairros construídos pela Norte Energia na periferia da cidade para realocar famílias que estavam na área diretamente afetada pela usina: muitas tiveram suas casas, na Floresta, incendiadas e alagadas e nesses novos bairros não conseguem sequer plantar o que comem, como faziam antes. Pescadores ficaram com suas canoas no seco, a quilômetros do rio.

O saneamento básico nos RUCs nunca foi concluído e há 15 anos algumas casas seguem sendo abastecidas por carros-pipa. O fornecimento é irregular, conta dona Gracinda.

A história sobre os impactos de Belo Monte é longuíssima, alerta ela. Um capítulo fundamental é sobre a vida de muitas famílias realocadas nos RUCs. Há pessoas não indenizadas porque a Norte Energia não reconhece impactos, aponta. Alguns desses locais de reassentamento estão lotados e "muita gente está sem casa até hoje", afirma. O município, explica dona Gracinda, não tem como arcar com as condicionantes não cumpridas. "São imensas as áreas onde não há nenhum serviço de atenção pública, nem uma escola", lamenta.

Entre as políticas de compensação da Norte Energia, havia condicionantes sobre abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos (coleta de lixo e construção de um aterro sanitário). O aterro, uma das ações divulgadas para a imprensa convidada, cujas obras começaram em 2013, já estaria em seu limite operacional entre os anos de 2021 e 2022, de acordo com o Ministério Público Federal. Segundo o órgão, haveria ainda despejo irregular de resíduos e indícios de contaminação do solo por chorume.

Laudos indicam erro de planejamento e de operação. Recentemente, em 2022, a Norte Energia transferiu à administração municipal a responsabilidade pela operação do aterro. A Prefeitura de Altamira assinou um termo assumindo a gestão, manutenção e operação do sistema de saneamento. O documento deixa claro que essa responsabilidade abrange todos os custos relacionados - incluindo a manutenção e operação do aterro. O resultado: uma bomba-relógio que a prefeitura não consegue gerenciar, por falta de recursos.

A universalização do sistema de abastecimento de Altamira, uma obrigação da Norte Energia, só será concluída em 2035, segundo estimativa da prefeitura. Dados do Painel Saneamento Brasil, do Instituto Trata Brasil, mostram que em 2022, últimos dados públicos disponíveis, 52,3% da população altamirense não tinha rede de esgoto e 50,6% não tinha abastecimento de água tratada. Contudo, após visitar Belo Monte a convite da Norte Energia, a Folha de S.Paulo reproduziu informação de que 92% do município é atendido por rede de esgoto. A informação consta de um "Relatório de Sustentabilidade" publicado em 2022 pela Norte Energia, que não cita qual a fonte dele ou a metodologia que embasou o número.

Impactos na saúde sobrecarregam unidades do SUS

Nas informações divulgadas à imprensa convidada e em seu site, a Norte Energia afirma que fez investimentos na área de saúde, uma das compensações exigidas da hidrelétrica. Afirma também que finalizou três hospitais e 62 Unidades Básicas de Saúde (UBS) na área de influência de Belo Monte - os municípios de Altamira, Anapu, Senador José Porfírio, Vitória do Xingu e Brasil Novo - para beneficiar comunidades Indígenas e não Indígenas.

Mas os danos à saúde e sociais causados por Belo Monte às populações do Médio Xingu são comprovados em pesquisas científicas e visíveis no corpo de quem ali mora. "Estamos com medo de perder nosso futuro, de nossos filhos e netos", lamenta Bel Juruna, liderança Indígena do povo Yudjá. Hoje ela vive na Aldeia Mïratu, na Terra Indígena Paquiçamba. Por cinco anos foi agente de saúde na região; há seis é técnica de enfermagem. O medo de não saber se haverá amanhã, diz Bel, se reflete nos corpos e mentes dos Indígenas. "Uma das coisas que mais me chocam e entristecem nas consultas, nesse cenário que vivemos hoje, é como a hipertensão tem atingido um grande número de pessoas. Acredito que tem muito a ver com estresse, insegurança, nervosismo, essa mudança que tiveram na vida, e também alimentação, com produtos industrializados", explica a técnica de enfermagem.

Os alertas sobre os impactos de Belo Monte já tinham sido feitos antes da construção da barragem, iniciada em 2011. Um Painel de Especialistas formado por 38 cientistas, de diferentes instituições brasileiras e internacionais e diversas áreas de conhecimento, publicou, em 2009, uma análise crítica do Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte, com 230 páginas. Eles previram um cenário de devastação. Os pesquisadores alertavam que a propagação de doenças e a degradação estavam gravemente subestimadas no estudo e relatório de impacto ambiental (EIA-RIMA) e nos programas de saúde e de incentivo à estruturação da atenção básica à saúde elaborados pela Norte Energia para a concessão da licença ambiental apresentada ao Ibama.

A projeção dos impactos negativos de Belo Monte para os sistemas públicos de saúde foi feita de maneira restrita, inadequada e incompleta, minimizando os efeitos da explosão demográfica nos municípios da área de influência e a propagação de enfermidades em escala ainda imprevisível. Entre 2010, um ano antes de a hidrelétrica começar a ser construída, e 2022, ano do último Censo, a taxa de crescimento geométrico da população na cidade foi de 2,04% - maior que a do Brasil (0,52%) e de Belém, capital paraense (onde houve uma queda de 0,55%). A população de Altamira passou de 99.075 habitantes para 126.279. Especialistas em saúde pública, Rosa Carmina de Sena Couto e José Marcos da Silva afirmaram, no relatório do painel, que a Norte Energia deveria ter apresentado um programa de mitigação com fontes diretas de financiamento, sem contar com as contrapartidas do poder público.

Em artigo publicado com base em sua dissertação de mestrado, de 2021, Antonio Carlos Lima, professor de medicina da Universidade Federal do Pará (UFPA), avaliou as medidas compensatórias da hidrelétrica em Altamira. Um dos compromissos da Norte Energia era colaborar com a universalização do acesso à saúde na cidade. No estudo, o professor concluiu que, "mesmo com os investimentos realizados na atenção primária em saúde, foram mantidos vazios assistenciais no território". Segundo a pesquisa, o plano não previu uma ampliação condizente da capacidade da rede de saúde, que já estava sobrecarregada, para que pudesse cobrir urgência e emergência, leitos e especialidades médicas, como psiquiatria, cardiologia, neurologia e outras. A SUMAÚMA, o professor, que foi secretário de Saúde do município de Senador José Porfírio, afirmou que o cenário persiste e que "muito do que foi proposto não foi realmente efetivado ou cumprido". Ele aponta o déficit de leitos como um dos problemas mais graves - faltam cerca de 40 leitos de UTI e cerca de 100 leitos clínicos e cirúrgicos na região do Xingu. Segundo dados do Ministério da Saúde levantados em um estudo do governo do Pará, Altamira tinha 3,69 leitos por mil habitantes, em 2011, ano de início das obras de Belo Monte; em 2023, último dado disponível, a média caiu para 2,58 leitos por mil habitantes.

Outro dado divulgado pela Norte Energia como exemplo de um trabalho bem-sucedido é o Programa de Ação para Controle da Malária (PACM), implementado pela empresa de 2011 a 2024. Entre 2021 e 2023, a empresa assinou um termo de compromisso com o Ibama para manter investimentos no programa. De fato, o programa atingiu excelentes resultados. Porém, há alguns aspectos que a empresa não aborda.

O professor Osvaldo Correia Damasceno, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Altamira, explica que o combate à malária é uma intervenção pontual em que há certo controle dos fatores envolvidos, desde que o trabalho seja estruturado e haja supervisão. Já as demais doenças, como no caso de crônicas e mentais, estão associadas a um conjunto de fatores difíceis de serem mensurados e cujo controle é muito mais dispendioso.

"O impacto de doenças crônicas não transmissíveis para a população Indígena foi grande. Só que vários desses impactos não estão medidos, porque é difícil fazer pesquisa com populações Indígenas e temos poucos dados publicados. Daí é mais fácil acessar dados de doenças infecciosas, de notificação compulsória, como a malária", corrobora a médica psiquiatra Érika Fernandes Costa Pellegrino, professora da Universidade Federal do Pará. Desde 2017 vivendo na cidade, a médica integra a Rede Bem Viver Altamira, que oferta atenção psicossocial aos Indígenas da região, em especial na TI Cachoeira Seca.

Segundo Pellegrino, cuja tese foi sobre o "Sofrimento Psíquico e Belo Monte", no caso de doenças crônicas, saúde mental, violência contra a mulher, por exemplo, a notificação não é compulsória, o diagnóstico demora e os tratamentos são mais complexos e demandam maiores investimentos. E é difícil apresentar uma meta alcançada com sucesso num curto espaço de tempo.

Atualmente coordenador de vigilância em saúde de Altamira, Damasceno afirma que houve uma "redução significativa" de investimentos da Norte Energia no programa de malária, sobretudo após 2020, com ações direcionadas apenas ao Trecho de Vazão Reduzida (TVR). Assim, a doença voltou a subir. Em 2022, por exemplo, o município teve uma quantidade de casos próxima à registrada em 2011, apontam dados levantados por SUMAÚMA no DataSUS, o banco de dados do Sistema Único de Saúde. Foram 1.483 casos. Depois, no ano seguinte, houve um novo recuo. A política de mitigação no caso de hidrelétricas, diz ele, precisa ser contínua, sem interrupções.

"O processo de urbanização também gerou aumento de agravos externos (violência, acidentes). A legislação [licença] de construção de hidrelétricas prevê de forma mais organizada o plano para o enfrentamento à malária. Para as outras doenças, isso não é tão efetivo. Até porque fatores sociais mais impactantes tendem a ser de mais difícil mitigação."

Nos cinco municípios de área de influência da usina, os casos de sífilis congênita (transmitida da mãe para o bebê na gestação) aumentaram de 12 casos em média por ano, entre 2007 e 2009, para 24 casos anuais, entre 2010 e 2023, último ano completo disponível no Sistema de Informação de Agravos de Notificação do DataSUS. Altamira, a cidade mais afetada, viu um pico em 2011 (28 casos), ano de início da construção, e 2018 (39 casos), ano em que as obras da última turbina se aproximavam do final.

Bel Juruna confirma que o atendimento médico na região é precário: "Para conseguir atendimento no hospital ou consulta é muito complicado. O alcoolismo aumentou nas aldeias, os casos de sífilis nas comunidades cresceram. Aumentaram as doenças e não aumentou a assistência". Bel, que atua na saúde Indígena, conta que testemunha em algumas aldeias o aumento de casos de saúde mental, diabetes e hipertensão, potencializados por uma mudança radical e compulsória de alimentação provocada pelo Plano Emergencial feito pela Norte Energia, que levou alimentos industrializados a aldeias afetadas, como a dos Arara de Cachoeira Seca, povo de recente contato. O Plano Distrital do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI-Altamira) 2024-2027 relata a expansão de doenças infecciosas, sexualmente transmissíveis, crônicas, do abuso de uso de álcool e entorpecentes, entre outras, em 12 Terras Indígenas e entre os Indígenas de Altamira e da Volta Grande do Xingu.

Menos água, menos peixes, menos vida

Se na viagem patrocinada pela Norte Energia os jornalistas tivessem percorrido o trecho da Volta Grande do Rio Xingu, uma das regiões mais biodiversas da Amazônia e uma das mais afetadas pela barragem, poderiam ter visitado a Terra Indígena Paquiçamba e conhecido Josiel Juruna. Liderança de seu povo, ele contaria que a quantidade de peixes que vê e pesca todo dia caiu drasticamente depois de Belo Monte. "Antes a gente consumia muito Trairão, Surubim e Pirarara, e tinha muito. Hoje essas espécies ficaram muito escassas, é muito difícil de tu pegar", disse Josiel a SUMAÚMA.

A redução de peixes também apareceu em 100% das reclamações feitas por pescadores da região de Altamira durante uma pesquisa publicada na revista de geografia da Universidade Federal do Pará. Em seu último parecer sobre estudos de impacto ambiental feitos pela Norte Energia, o Ibama concordou com a avaliação de Indígenas e pescadores. Identificou "reduções significativas na riqueza e abundância de peixes" entre o período pré-enchimento do reservatório (2012-2015) e o pós-enchimento (2016-2023).

Um dos locais mais afetados foi justamente a Volta Grande, onde fica a terra dos Juruna. A hidrelétrica acabou com habitats essenciais de algumas espécies e interrompeu mais de 80% do fluxo de água para a região. E a situação corre o risco de piorar.

No documento divulgado em 18 de março de 2025, mas que analisa dados até 2023, o Ibama destacou a diminuição de ovos e larvas. "Esses fatores indicam que a capacidade de recrutamento populacional pode estar comprometida, o que, a longo prazo, pode afetar a sustentabilidade das populações [de peixes]", diz o parecer.

Em 2023, SUMAÚMA mostrou que berçários de peixes, conhecidos como piracemas, foram transformados em cemitérios com milhões de ovas de peixes mortas nos barrancos sem água. "As ovas no seco mostram a quantidade de peixes que poderiam se tornar adultos, mas que não vão poder", resume Josiel Juruna.

Josiel é um dos pesquisadores do projeto Monitoramento Ambiental Territorial Independente, o Mati, que, com pesquisadores de universidades, Ribeirinhos e Indígenas, faz um acompanhamento paralelo das condições do Rio Xingu. Uma pesquisa do Mati mostrou que houve redução na média de peso que os pescadores capturam em cada viagem. Antes da barragem, eles conseguiam pegar 68 quilos de Curimatá. Depois da construção, a média caiu para 5,4 quilos. A captura da Pescada caiu de 99 quilos para 1,7 quilo, e a de Surubim passou de 41 quilos para 1,8 quilo.

O 25o relatório da Norte Energia, ainda não analisado pelo Ibama, admite que, na pesca comercial, a captura de peixes caiu até 20% depois do enchimento dos reservatórios; na pesca ornamental, até 65%. Outra pesquisa sobre segurança alimentar de comunidades Ribeirinhas mostrou diminuição de 58,5% no consumo de peixes na região de Belo Monte.

O relatório da própria Norte Energia apresenta dados ainda mais chocantes: nas regiões afetadas pela usina, o consumo de peixe diminuiu entre 41% e 52%. O de alimentos enlatados subiu até 163%, e o de leite de vaca cresceu pelo menos 168%. A barragem não só acabou com os peixes, mas também alterou todo o modo de vida da população local.

Os compromissos não cumpridos na Volta Grande do Xingu

Em fevereiro de 2021, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, firmou um acordo com a Norte Energia e autorizou Belo Monte a operar temporariamente segundo um dos hidrogramas desejados pela empresa. O hidrograma define quanta água vai para as turbinas e quanta sobra para manter a vida do Xingu. Em troca, a Norte Energia se comprometeu a investir 157 milhões de reais em medidas de "monitoramento, controle e mitigação dos impactos" na Volta Grande do Xingu. As medidas não eram, em si, novidade - a maioria constava da lista de obrigações da empresa desde a emissão das licenças de instalação e operação da hidrelétrica.

O acordo, oficialmente chamado de Termo de Compromisso Ambiental, previa 141 ações de mitigação, distribuídas em 14 projetos que incluíam 20 ações de saúde para a população humana, distribuição de alimentos a peixes e quelônios e recomposição florestal de Áreas de Preservação Permanente. Num documento de outubro de 2024, em que analisa o desempenho da Norte Energia, o Ibama é taxativo: "As ações não concluídas representam aproximadamente 45%" do total.

Não se pode dizer nem mesmo que o que foi concluído teve resultados satisfatórios. Um exemplo: um projeto de suplementação alimentar a mais-que-humanos cujo habitat é ameaçado por Belo Monte "demonstrou que não houve relação direta entre os alimentos ofertados e aqueles efetivamente consumidos pelos peixes e tracajás", afirmam os técnicos do Ibama. "Não há evidências de que a suplementação alimentar melhore a condição corpórea de peixes e quelônios, nem a atividade reprodutiva das espécies analisadas", concluem.

Apesar de "vender" a ideia de que realiza atividades que caberiam ao Estado, a Norte Energia não concluiu nem mesmo o que propôs fazer num acordo que lhe era vantajoso. "A gente tem peixe com má-formação, com ovas endurecidas na barriga, que não conseguem desovar. E magros, muito magros", lamenta Raimundo da Cruz e Silva, Ribeirinho que vive em Anapu, região da Volta Grande do Xingu muito castigada pela barragem imposta por Belo Monte.

Num documento de outubro de 2024, endereçado a procuradores do Ministério Público Federal, Indígenas Yudjá-Juruna da Terra Indígena Paquiçamba, na Volta Grande do Xingu, expõem outro problema. "Antes da construção da usina, nossa renda [vinha da] pesca de peixes de consumo e ornamental. Tivemos que nos tornar agricultores e piscicultores, sem apoio efetivo, [e] perdemos nossa soberania alimentar. São anos de luta com o plantio de cacau e criação do peixe no tanque-rede."

Sem a assistência adequada, o cacau pouco produz. Um laudo feito por técnicos da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, a Ceplac, instituição de pesquisa subordinada ao Ministério da Agricultura e Pecuária, investigou o plantio de cacau numa das aldeias da TI Paquiçamba, a Mïratu, e constatou problemas. Na carta, os Indígenas reclamaram de que "não tinham a assistência técnica correta, [além de haver] falta de apoio no preparo da área, desmatamento da vegetação nativa e uso de mudas sem controle da instituição".

A impressão foi corroborada pela Ceplac. Um trecho do laudo, incluído na carta enviada pelo Yudjá-Juruna ao MPF, diz: "No momento da escolha das áreas para o plantio, não realizaram a análise do solo e nem a verificação dos aspectos físicos da área, como, por exemplo, a profundidade do solo que é um aspecto de fundamental importância para o cacaueiro, que é uma planta que requer profundidade mínima de 1,5 metro. O cultivo em solos rasos ou que tenham algum impedimento rochoso é inviável".

O Ibama também identificou problemas em programas de incentivo ao plantio de cacau. E afirma que a própria Norte Energia "informou a inviabilidade de implantar os projetos de cacau". Acrescenta o Ibama: "...não é aceitável a informação de inviabilidade. A empresa necessita encontrar solução que viabilize os projetos que planejou, e primeiramente para aqueles para o qual elaborou laudos de viabilidade".

Até mesmo água própria para consumo se tornou escassa na Volta Grande, às margens do Xingu, um dos rios mais caudalosos da Amazônia. O Ibama constata resultados "insuficientes" na instalação e melhorias de poços. Aos técnicos, a Norte Energia justificou-se alegando que "a dificuldade de conclusão deriva de insucessos nas perfurações de poços". Como "medida emergencial", entregou filtros de cerâmica e água potável aos moradores. Já em 2023, o Ibama alertava que "a distribuição de filtros não pode ser suficiente para a garantia de disponibilidade de água de consumo".

A conclusão do órgão ambiental é categórica: "O insucesso das medidas mitigadoras nos leva a novamente informar as autoridades competentes que este empreendimento gera impactos sociais inaceitáveis relacionados à perda do modo de vida ribeirinho na Volta Grande do Xingu".

SUMAÚMA questionou a diretoria do Ibama a respeito. A resposta, enviada por escrito pela assessoria do órgão ambiental, diz que o parecer técnico finalizado em outubro de 2024 "encontra-se em análise interna, para os devidos encaminhamentos".

A explosão de homicídios em Altamira

Todos os números disponíveis - do Sistema Único de Saúde, da Secretaria de Segurança do Pará, de estudos acadêmicos ou de publicações especializadas produzidas por organizações como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública - são unânimes ao apontar que, em Altamira, a violência aumentou exponencialmente depois da construção da usina de Belo Monte.

Não que Altamira fosse um lugar pacífico. Em 2010, beirava os 100 mil habitantes, e a taxa de homicídios, em ascensão desde 2000, chegou a 63 por 100 mil habitantes, acima da verificada no Pará (46,4) e muito acima da brasileira (27,8 por 100 mil habitantes). Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que, a partir de 2012, a Amazônia passou a apresentar índices de violência letal mais elevados que os da média nacional, num contexto associado a crimes ambientais, aos conflitos agrários e à disputa das facções pelas rotas de tráfico de drogas.

Em Altamira, as disputas do narcotráfico se somaram à explosão populacional motivada pelas obras da usina, sem a correspondente oferta de infraestrutura urbana. Em 2012, a cidade recebeu 9 mil operários, relatou a imprensa na época. No ano seguinte, 20 mil. Comunidades foram expulsas de seus territórios e alojadas nos RUCs, os conjuntos habitacionais distantes do centro da cidade. Famílias tiveram que se mudar, negócios antigos fecharam e outros novos abriram, e os preços de tudo, principalmente dos aluguéis, dispararam. Em 2022, o Censo contou 126.279 moradores em Altamira - um aumento de 27,4% em 13 anos, num momento em que o país viu o crescimento populacional desacelerar.

Os 64 assassinatos registrados em 2010 subiram para 114 em 2015 - ano em que Altamira se tornou, proporcionalmente, o município com mais de 100 mil habitantes mais violento do país, com taxa de 105 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2017, a cidade viu o recorde de assassinatos: 149, taxa de 133 por 100 mil habitantes. No meio da década, os conflitos entre os grupos criminosos se intensificaram. Em 2019, uma rebelião de presos de facções rivais no Centro de Recuperação Regional em Altamira terminou com 62 mortes, o segundo maior massacre carcerário da história do Brasil. O número de vidas perdidas foi menor apenas que o do Carandiru, em São Paulo, no ano de 1992, quando 111 presos foram mortos.

Em sua dissertação de mestrado, defendida em 2022 na Universidade Federal do Pará, o geógrafo Igor Renan Araújo Oliveira esquadrinha os indicadores de violência no município, apontando a relação deles com a obra de Belo Monte, o aumento populacional e o contexto do narcotráfico.

De 2000 a 2010, a cidade somou 371 homicídios; de 2010 a 2019, 984.

"A cidade sempre teve carência de serviços públicos e já vivia a questão do narcotráfico. Belo Monte potencializou tudo isso", analisa Igor. "Altamira virou uma mina de ouro para o tráfico. Ficou impossível frequentar a orla da cidade, à beira do Rio Xingu." Quando as obras de Belo Monte terminaram, milhares de pessoas desempregadas permaneceram na cidade, em condições de vulnerabilidade social.

A pesquisa de Igor, embora tenha foco nos homicídios, mostra que as demais ocorrências, como roubos e apreensões de drogas, também aumentaram. Os registros de estupro, que eram 43 em 2010, chegaram a 92 em 2018, pelos dados da Secretaria de Segurança Pública do Pará. "Para uma mulher, sair na rua ficou muito perigoso", conta o geógrafo de 33 anos, técnico do Ministério Público do Pará em Altamira.

Sua pesquisa também mostra que a face mais letal da criminalidade, a dos homicídios, teve os jovens como alvo: no acumulado de mortes de 2010 a 2020, a idade média das vítimas foi de 29 anos. A dissertação de Igor é dedicada a dois desses mortos: seus amigos Magid Mauad, estudante de geografia, e Ruan Silva, engenheiro ambiental, assassinados pelo tráfico em Altamira em 2017 e 2020, respectivamente. Do desespero das famílias de tantos mortos surgiu o coletivo Mães do Xingu, criado pela mãe de Magid, Málaque Mauad, para cobrar a investigação dos crimes. "A cidade não tinha estrutura para receber tanta gente. As nossas filhas não podiam nem sair na rua. Depois que mataram meu filho, resolvi não ficar calada. As mães nunca falavam, mas eu resolvi falar", resume.

A iniciativa de Málaque atraiu outras mulheres que perderam seus filhos para a violência na cidade. Em 2020, quando Altamira sofreu com uma onda de suicídios de jovens, as Mães do Xingu abraçaram a luta para acolher os sobreviventes - tanto as famílias dos mortos como os jovens que tinham tentado se matar. Hoje o grupo tem cerca de 25 mulheres e, em Altamira, participa dos Conselhos da Mulher e da Criança e do Adolescente.

"Todos os problemas decorrentes da obra de Belo Monte, o intenso fluxo populacional, o aumento do consumo de drogas, o aumento da violência, o aumento dos homicídios, a estagnação econômica pós-Belo Monte, o aumento do desemprego, as novas estruturas urbanas, e a chegada de conflitos entre facções criminosas no contexto urbano de Altamira são fatores que, combinados, tal qual uma bola de neve rolando e crescendo, contribuíram para a escalada da violência no decorrer dos anos", conclui o pesquisador.

Nos últimos anos, a criminalidade em Altamira caiu, mas se manteve em patamares ainda muito elevados. Segundo o Atlas da Violência, divulgado este mês, a taxa de homicídios na cidade foi de 62,6 por 100 mil habitantes em 2023. A do Brasil foi de 21,2. Em todas as bases de dados, Altamira é, depois de Belo Monte, um lugar mais perigoso para se viver.

Em Terras Indígenas perto da barragem, o desmatamento aumentou

A construção de Belo Monte coincide com um aumento no desmatamento das quatro Terras Indígenas que estão na zona de influência da barragem da hidrelétrica: Cachoeira Seca, Ituna/Itatá, Trincheira Bacajá e Apyterewa. É o que demonstra uma análise produzida em 2022 pela Rede Xingu+, já reportada por SUMAÚMA em 2023.

"Em 2019 e 2020, o desmatamento nas 4 Terras Indígenas paraenses [sob influência de Belo Monte] supera o desmatamento das demais 311 Áreas Indígenas [da Amazônia Legal]. Os anos de 2018 e 2019 sobressaem pelo enorme crescimento de suas taxas: aumento de 175% e 194%, nesta ordem, em relação aos anos imediatamente anteriores". Apenas em 2019, mais de 30 mil hectares de florestas se perderam nas quatro Terras Indígenas próximas a Belo Monte. É o equivalente a "61% de todo o desmatamento das Áreas Indígenas da Amazônia Legal", afirma o estudo.

Proteger as Terras Indígenas em sua zona de influência é mais uma das condicionantes para a instalação de Belo Monte que a Norte Energia não cumpriu adequadamente, avalia um relatório da Defensoria Pública da União de 2022. Distante 45 quilômetros da barragem de Belo Monte, a Terra Indígena Ituna/Itatá tem 142 mil hectares - quase o tamanho da cidade de São Paulo - e é lar de um grupo de Indígenas que evitam o contato e são conhecidos como "isolados do Igarapé Ipiaçava". Desprotegida, ela se tornou alvo da cobiça de grileiros, que passaram a criar gado na área. Entre 2018 e 2021, Ituna/Itatá esteve entre as três Terras Indígenas mais desmatadas do Brasil. Em 2019, primeiro ano do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, foi a mais destruída, com 12 mil hectares de floresta perdidos, um aumento assombroso de 656% em relação a 2018.

Em agosto de 2023, SUMAÚMA passou três dias em Ituna/Itatá, acompanhando agentes do Ibama e de outras agências do Estado que iniciavam um longo processo - encerrado apenas em 2025 - de retirada de 5 mil Bois e Vacas criados ilegalmente na Terra Indígena. As cenas eram de guerra. Criminosos destruíram pontes já precárias e incendiaram a mata na tentativa de evitar a retirada do gado ilegal. Nem a presença de agentes armados da Força Nacional, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal os intimidava.

"A análise sugere que o aumento do desmatamento nas Terras Indígenas e na área do entorno de Belo Monte esteja associado à desmobilização de mão de obra [que construiu a usina], à inadimplência das condicionantes Indígenas relacionadas à proteção territorial e regularização fundiária e à insuficiência da condicionante relacionada ao apoio para ações de contenção do desmatamento", aponta o levantamento da Xingu+. Não foi um imprevisto: o Estudo de Impacto Ambiental produzido antes da instalação de Belo Monte já previa que tudo isso iria acontecer.

Para o Ibama, contudo, no "processo de licenciamento ambiental de Belo Monte não há informações que possibilitem a análise da relação causa e efeito de forma direta do empreendimento com o desmatamento na região". Na resposta enviada pela assessoria, o órgão ambiental afirma que "no período de 2016 a 2022 foram registrados aumentos de desmatamento em toda a região amazônica, o que torna complexa a definição de uma única causa".

Ribeirinhos esperam reparação adiada pela Norte Energia

Faz dez anos que Raimundo Berro Grosso teve que abandonar sua casa na beira do Xingu e se mudar para a periferia de Altamira, onde vive num Reassentamento Urbano Coletivo. Sua família está entre as cerca de 300 que foram expulsas das ilhas e das margens do rio em 2015, no enchimento do reservatório de Belo Monte. Ele ainda espera que a Norte Energia cumpra uma das condicionantes para a renovação da licença da usina: a compra de terras para a formação do Território Ribeirinho, a reparação prevista para essa comunidade tradicional. Com a passagem do tempo, porém, se instala o desalento: "Eu não queria ficar aqui, eu queria ir para a minha terra. Mas, pela demora do Território e a situação da minha saúde, eu estou sendo quase que obrigado a ficar aqui", diz Raimundo, que já teve um AVC e foi diagnosticado com doença de Parkinson.

A situação particular dos Ribeirinhos - que tradicionalmente moravam nos beiradões do Xingu e mantinham uma casa na cidade como ponto de apoio - não havia sido levada em conta no licenciamento para a construção de Belo Monte. Em 2015, quando se encheu o reservatório, eles pediram ajuda à procuradora federal Thais Santi, que em Altamira zela pelos direitos de Indígenas e comunidades tradicionais. Santi procurou a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, que pôs pesquisadores renomados - entre eles, as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Sônia Magalhães - para escutar os Ribeirinhos e estudar seu modo de vida. O trabalho resultou no livro-relatório "A expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte", apresentado em 2016.

A mobilização levou à formação do Conselho Ribeirinho, formado por Beiradeiros expulsos pela hidrelétrica, do qual Raimundo Berro Grosso participa, e à proposta do Território Ribeirinho. Em 2018, a proposta foi aprovada como condicionante a ser cumprida pela concessionária da usina. O projeto técnico ficou pronto no ano seguinte, mas desde então nada andou.

No dia 7 de abril deste ano, em um comunicado divulgado em seu site, o Ibama, mais uma vez, cobrou da Norte Energia a compra das terras. No dia seguinte, 8 de abril, a concessionária contestou o comunicado com uma carta. Este ofício tinha uma peculiaridade: além da diretora de licenciamento ambiental do Ibama, Claudia Jeanne da Silva Barros, ela tinha como destinatários o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o chefe da Casa Civil da Presidência, Rui Costa - dois ministros que com frequência entram em choque com a área ambiental do governo.

O comunicado do Ibama e a contestação da Norte Energia giram em torno do mais recente embate entre os dois lados. A concessionária vem transferindo Ribeirinhos para o Reassentamento Urbano Coletivo Tavaquara. A empresa alega que está sendo pressionada por famílias que desistiram do Território Ribeirinho e estão em situação de "vulnerabilidade social" a lhes oferecer uma moradia alternativa. Na maior parte dos casos, são famílias que haviam recebido "pontos de ocupação" dentro da Área de Preservação Permanente (APP) do reservatório da hidrelétrica. O Ibama entende que a troca desses pontos por casas no Tavaquara "não recompõe o modo de vida Ribeirinho".

Ao todo, a Norte Energia distribuiu, desde 2016, 157 pontos de ocupação na APP do reservatório de Belo Monte. O problema é que essa situação provisória não atende à necessidade dos Ribeirinhos, já que na Área de Preservação Permanente há limitações para cultivar alimentos e criar animais. "É uma área de 25 metros para fazer a casa e mais uma areazinha para fazer um pomar. Isso realmente é uma humilhação", conta Raimundo Berro Grosso.

Por isso, como lembrou no comunicado de 7 de abril, o Ibama vetou a transferência de mais famílias para as margens do reservatório, indicando que essa solução provisória acaba contribuindo para atrasar a implementação do Território Ribeirinho. "A permissão para novas moradias nos pontos de ocupação [...] depende fundamentalmente da aquisição das terras lindeiras" [ou seja, contíguas à Área de Preservação Permanente do reservatório], reforça o órgão ambiental.

A ideia é que nessas terras contíguas à APP cada família tenha garantido seu espaço de roça e criação de bichos, com a possibilidade de vender parte da produção, como faziam antes de Belo Monte. São três diferentes blocos de terrenos a serem desapropriados, num total de 8,4 mil hectares, nas duas margens do Xingu, nos arredores de Altamira.

Desde 2019, a compra das terras tem sido adiada pela Norte Energia, com diferentes argumentos. Nos primeiros anos, a concessionária alegou que a maioria dos proprietários resistia a vender seus terrenos. Segundo a companhia, seria preciso esperar a emissão, pela Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel, de uma Declaração de Utilidade Pública (DUP) para esses imóveis, de modo a facilitar a desapropriação.

Depois que a Aneel concluiu a emissão da DUP, em meados de 2024, a Norte Energia chegou a apresentar um cronograma para a compra das terras. No entanto, estabeleceu condições para dar início ao processo, entre elas a realização de um novo levantamento para saber quantas famílias continuavam interessadas no Território Ribeirinho. Ocorre que a companhia já havia feito essa consulta, entre o fim de 2022 e o início de 2023. Na época, foram ouvidas 267 famílias, das quais apenas 42, ou 16%, disseram não ter mais interesse no projeto.

A concessionária também passou a pedir que seja definida desde já a estrutura jurídica do Território, pensado para ser uma terra de propriedade coletiva. A Norte Energia argumenta ainda que espera uma decisão do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sobre a disponibilidade de uma área incluída no Território Ribeirinho onde existe um projeto de assentamento. O Incra disse que está a par da situação e que programa uma visita ao local "nas próximas semanas" para identificar os ocupantes da área e definir como encaminhar a questão.

De toda forma, o Ibama nunca exigiu que todos os terrenos fossem comprados ao mesmo tempo - ou seja, as famílias poderiam assumir suas áreas no Território Ribeirinho paulatinamente. Em fevereiro de 2023, por exemplo, o órgão ambiental encaminhou à concessionária uma carta de cinco proprietários interessados em vender seus imóveis - e até agora nada foi adquirido. A "proposta ribeirinha estabelece três grandes territórios conforme forem sendo adquiridas as terras lindeiras [à APP do reservatório da usina]", deixa claro o Ibama num parecer técnico de abril deste ano. "Os órgãos que têm poder, o Ibama, o Ministério Público, deixaram as coisas correrem muito soltas. E a empresa está levando devagarzinho até as pessoas se cansarem", constata Raimundo Berro Grosso.

Questionado se já havia multado a Norte Energia no caso do Território Ribeirinho, o Ibama respondeu que "verifica-se atraso na execução do projeto", mas "por ora não foi possível caracterizar como descumprimento da condicionante". Perguntado se concordava com as condições impostas pela concessionária para iniciar a compra das terras, o órgão ambiental disse que "no momento essa questão está em discussão com os entes envolvidos no projeto Ribeirinho (MPF, Ibama, Norte Energia, Conselho Ribeirinho e apoiadores)".

Uma armadilha anunciada e o balão de ensaio da nova barragem

Aos repórteres dos principais jornais do Brasil que convidou para visitar Belo Monte, a direção da Norte Energia antecipou a intenção de construir um novo reservatório para a usina, que alagaria uma área de mil quilômetros quadrados. Usando a Lei de Acesso à Informação, SUMAÚMA apurou que o plano é conhecido do governo Lula pelo menos desde 27 de novembro de 2024. Naquele dia, servidores dos ministérios de Minas e Energia e da Casa Civil receberam executivos da concessionária, que apresentaram "estudo inicial sobre a construção de reservatório próximo à UHE Belo Monte, no Rio Xingu". Segundo a memória da reunião, que pode ser lida aqui, "os participantes entenderam a importância da análise e solicitaram maiores detalhamentos à Norte Energia, de forma que o tema pudesse ser apresentado ao Ibama e demais órgãos interessados".

A proposta do novo reservatório, a pretexto de aumentar a produção da usina, não surpreende quem leu o relatório divulgado em outubro de 2009, antes da emissão da licença de instalação de Belo Monte, por um Painel de Especialistas formado por 38 cientistas. O documento afirmava que a usina seria antieconômica, isto é, o que ela entregaria em energia para o sistema elétrico não compensaria seus custos. Por causa da variação na vazão do Rio Xingu ao longo do ano, o estudo previa que, na média, a usina ficaria longe de entregar uma carga de energia correspondente ao potencial de geração de suas turbinas, que é de 11,2 mil megawatts - só menor do que os 14 mil megawatts de Itaipu, construída na ditadura empresarial-militar (1964-1985), quando nem sequer havia licenciamento ambiental.

O prognóstico se cumpriu, com um agravante: o relatório de 2009 ainda não contabilizava o impacto da mudança do clima nos rios da Amazônia. Desde então, pesquisas confirmaram que o aumento da temperatura da Terra tende a aumentar o período de seca e a reduzir as chuvas na região. O efeito disso para as hidrelétricas no bioma foi projetado no estudo "Brasil 2040", encomendado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos no governo de Dilma Rousseff (PT) e que acabou engavetado depois de sua divulgação, em 2015. O estudo estimava que a vazão do Rio Xingu em Belo Monte poderia cair entre 25% e 55%.

O rendimento de uma fonte de eletricidade é dado pelo seu "fator de capacidade", que é a relação entre a energia que ela de fato gera e a que ela em tese pode gerar. Na média das hidrelétricas brasileiras, o fator de capacidade é de 55%, segundo a Empresa de Pesquisa Energética, a EPE, vinculada ao Ministério de Minas e Energia. No caso de Belo Monte, era esperado um fator de capacidade próximo de 40%. Porém, quando se considera o desempenho anual da usina, incluindo o período de chuvas e o de estiagem, esse percentual jamais foi alcançado desde que todas as turbinas acabaram de ser instaladas, em 2019. Segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o mais perto que a usina chegou disso foi em 2022, quando registrou um fator de capacidade de 37,8%. Em 2024, ano de seca extrema na Amazônia, o fator de capacidade de Belo Monte caiu para 23% - menos da metade da média das hidrelétricas e 17 pontos abaixo de seu desempenho esperado.

Ricardo Baitelo, doutor em planejamento energético e gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente, o Iema, compara esse rendimento com o das usinas eólicas, que também é inconstante porque elas dependem da variação dos ventos, mas que em média chega hoje a 40% no Sul e Sudeste e a 47% no Nordeste. "Na época do debate sobre Belo Monte, o que eu e muitos outros defendemos é que energia eólica e de biomassa seriam melhores para o sistema naquele momento", diz Baitelo. "Sempre se avisou que Belo Monte era inviável", reforça o engenheiro agrônomo Danicley Saraiva de Aguiar, especialista em Planejamento e Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Pará e campaigner sênior de florestas do Greenpeace Brasil. "Foram 40 bilhões de reais numa usina que agora precisa de um outro reservatório."

Planos do início dos anos 1980, herdados da ditadura e anteriores à Constituição de 1988, previam a construção de até seis barragens no Xingu. Em 2008, o Conselho Nacional de Política Energética aprovou uma resolução afirmando que só uma delas seria construída, no que foi visto como uma estratégia para a aprovação de Belo Monte. Para supostamente minimizar os danos sociais e ambientais e não alagar Terras Indígenas, o projeto de Belo Monte optou por uma hidrelétrica "a fio d'água", sem uma grande represa de acumulação. Não é uma opção excepcional: Itaipu, no Rio Paraná, também é considerada uma usina a fio d'água, embora tenha um reservatório de 1.350 quilômetros quadrados, cuja função é aumentar a força da queda d'água. Em Belo Monte, a geração varia segundo a vazão do rio e de dois reservatórios que, embora "pequenos" para uma hidrelétrica, são imensos como tragédia ambiental - totalizam quase 500 quilômetros quadrados. É deles que a água desviada da Volta Grande do Xingu é direcionada às turbinas.

O problema é que, apesar de o projeto prever uma usina a fio d'água, ele manteve um potencial de geração de energia de mais de 11 mil megawatts para Belo Monte - capacidades menores, de 5,5 mil a 7,5 mil megawatts, chegaram a ser consideradas. Por isso é que o relatório do Painel de Especialistas previu que, se construída, a usina rumaria para uma "crise planejada": quando ela começasse a operar, se "descobriria subitamente" a defasagem entre o potencial das turbinas instaladas e o que ela de fato produz de eletricidade.

Decorridos 166 dias da reunião em que a Norte Energia levantou a proposta do novo reservatório em Brasília, nada foi apresentado ao Ibama. Também via Lei de Acesso à Informação, a autarquia respondeu a SUMAÚMA que "não há documentos sobre o projeto [...] ou sobre a intenção de construí-lo no processo administrativo de licenciamento ambiental da UHE Belo Monte". A reportagem apurou que a ideia de se construir um novo reservatório foi recebida com surpresa no Ibama - ela jamais fora mencionada nas dezenas de reuniões entre a concessionária de Belo Monte e o órgão ambiental. A assessoria de imprensa do Ministério de Minas e Energia disse a SUMAÚMA que "não houve qualquer comunicação formal sobre o tema depois da realização da reunião citada". A mesma coisa foi dita em resposta a pedido via Lei de Acesso à Informação.

Fontes com quem SUMAÚMA conversou em Brasília não descartam que a ideia de um novo reservatório seja um "bode na sala", a ser retirado em troca do que a Norte Energia sempre buscou: a aplicação de um regime de uso da água do Xingu considerado mortal para o ecossistema da Volta Grande por tirar muito mais água do rio, porém mais vantajoso para a produção de eletricidade. A empresa o chama de "hidrograma de consenso", que seria uma alternância entre os hidrogramas conhecidos como "A" e "B". Porém, esse revezamento jamais foi autorizado, porque, como explica um parecer técnico do Ibama de outubro de 2024, ele provocaria "impactos de magnitude superiores às previstas no Estudo de Impacto Ambiental" da usina e não seria "seguro para a manutenção da biodiversidade e do modo de vida dos povos da Volta Grande do Xingu". Em vez disso, apenas o hidrograma B foi implementado. Ainda assim, como seus efeitos não foram mitigados a contento, os técnicos do órgão ambiental afirmam, no parecer de outubro, que é "imprescindível e urgente a realização de estudos que permitam definir um hidrograma (ou associações de hidrogramas) menos severo e sustentável para a Volta Grande do Xingu".

SUMAÚMA questionou a diretoria do Ibama a respeito do hidrograma - e se ela endossa a conclusão dos técnicos ambientais. "Essa é uma questão de suma importância que demanda inúmeras discussões envolvendo outros entes para além do Ibama e no momento encontra-se em análise", afirmou o órgão.

Apesar de produzir menos energia do que era previsto na época de sua construção, Belo Monte ganhou importância dentro do Sistema Interligado Nacional, o chamado SIN, formado por milhares de usinas de diferentes tipos. Sua participação é irregular, porém. Entre 2019 e 2024, a geração média da usina no Xingu representou, como proporção da geração média do SIN, entre o mínimo de 3,22%, no ano passado, e o máximo de 6,04%, em 2022 - ano em que a contribuição de Itaipu foi de 8,5%.

Desde a construção de Belo Monte, porém, as características do sistema elétrico brasileiro mudaram. No início deste século, as usinas solares, eólicas e movidas a bagaço de cana representavam apenas 2% da oferta de energia no Sistema Interligado Nacional. Agora, usinas a vento, sol e biomassa respondem por 28% da capacidade instalada do SIN. Por isso, o grande desafio atual não é construir um novo reservatório em Belo Monte, com todo o impacto ambiental e social que isso provocaria, mas aproveitar melhor e de maneira mais eficiente a geração dessas novas fontes.

O QUE DIZ A NORTE ENERGIA

Todos os relatos, informações e achados sobre os impactos de Belo Monte foram enviados à Norte Energia para comentários. A empresa recebeu a lista de perguntas às 13 horas de sexta-feira, 9 de maio, com 48 horas úteis de prazo para respondê-las. Pediu mais tempo para preparar as respostas, com o que SUMAÚMA concordou. Perguntas adicionais foram enviadas na quarta-feira, 14, e no dia seguinte. No início da noite de 15 de maio, a chefa da assessoria de imprensa da Norte Energia, Isabele Rangel, telefonou a SUMAÚMA para informar que nenhuma pergunta seria respondida. Dias antes, a empresa havia enviado nota em que afirmava que as perguntas "trazem consigo juízos de valor e fazem inferências com as quais a Norte Energia não concorda", e que "não podem servir de ponto de partida para o que se entende como um diálogo equilibrado e aberto entre a companhia e SUMAÚMA". As perguntas enviadas por SUMAÚMA podem ser lidas aqui.

SUMAÚMA também perguntou à Folha de S.Paulo por que as vozes dos afetados por Belo Monte, do Ibama ou do Ministério Público Federal não tiveram espaço na reportagem resultante do convite da Norte Energia. O secretário de redação do jornal, Vinicius Mota, respondeu que "condições para a aceitação de convites de viagem de terceiros estão expressas no Manual da Redação, na seção 'Conduta', e foram observadas no caso em questão". No texto, disponível na internet, lê-se o seguinte: "Ao produzir conteúdo resultante de convite, o profissional deve manter a independência e o espírito crítico".

Em resposta por escrito enviada a SUMAÚMA, o Ibama diz que "a análise da licença operacional do empreendimento encontra-se em andamento" e que um parecer técnico de 2024 "identificou que ainda há pendências a serem atendidas previamente à renovação".

Questionada por email nos dias 12 e 13 de maio sobre as condicionantes de Belo Monte que afetam questões sociais e de saúde de Altamira, a prefeitura não respondeu.

https://sumauma.com/oito-historias-sobre-belo-monte-que-a-norte-energia-nao-contou-na-viagem-patrocinada-a-altamira/
 

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