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Impunidade a crimes da ditadura pavimentou Lei do Marco Temporal, aponta relator da ONU

11/09/2025

Autor: Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação - Cimi

Fonte: Cimi - https://cimi.org.br



O relator da ONU sobre Memória, Verdade e Justiça, Bernard Duhaime, afirmou nesta quarta-feira (10), em Genebra, durante a 60.ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que a tese do marco temporal resulta da histórica negação de direitos aos povos indígenas no Brasil.

De acordo com o relator, a ausência de responsabilização jurídica pelo genocídio perpetrado contra esses povos durante a Ditadura Militar (1964-1985) consolidou uma cultura de impunidade e criou as condições para que o Congresso Nacional aprovasse a Lei no 14.701/2023 - a Lei do Marco Temporal -, em desafio ao Supremo Tribunal Federal (STF), que já havia declarado a tese inconstitucional.

Duhaime apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU o relatório produzido após sua visita ao Brasil entre março e abril deste ano. No documento, ele recomenda a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade. De modo mais amplo, defende que o Brasil revise sua Lei de Anistia, processe e julgue responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura e promova uma reforma nas Forças Armadas.

Leia o relatório na íntegra aqui.
O relatório destaca: "o regime cometeu graves violações de direitos humanos, incluindo execuções extrajudiciais, tortura, desaparecimentos forçados, violência sexual e detenções arbitrárias de opositores políticos, jornalistas, trabalhadores, estudantes, camponeses, membros de comunidades indígenas, pessoas de ascendência africana e integrantes da comunidade LGBTQI+".

Crítica contundente e sem anistia

Para o coordenador da Equipe Internacional do Cimi, Flávio V. Machado, trata-se de uma das críticas mais contundentes ao marco temporal feitas por um relator da ONU - entre os sete que já se manifestaram contra a medida inconstitucional -, alertando o Estado brasileiro para os diversos riscos que a tese representa aos povos indígenas.

"O relator aponta um caminho que engloba a verdade histórica, a justiça no presente e a reparação futura. Ele compreende que o marco temporal não é um ato isolado, mas a consequência de um processo histórico de negação de direitos, diretamente vinculado a crimes perpetuados ao longo do tempo e em diferentes territórios", afirmou Machado.

Aproximadamente 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar, conforme a CNV

De acordo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), aproximadamente 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar. O relator Bernard Duhaime destaca, porém, que há indícios de que o número real seja maior, uma vez que as estimativas da CNV basearam-se em apenas uma parcela dos casos. Grande parte dessas mortes ocorreu na Amazônia, principal alvo do ideário desenvolvimentista dos governos militares.

"A CNV estimou que o número de vítimas era muito maior do que o número fornecido. Em seu relatório, identificou 377 agentes do Estado como tendo responsabilidade individual por graves violações dos direitos humanos. Caracterizou as violações cometidas por agentes do Estado como generalizadas (espalhadas por toda a população afetada), sistemáticas (planejadas e organizadas) e constitutivas de crimes contra a humanidade, portanto, não sujeitos a limitações estatutárias (prazo prescricional) ou anistia", declarou o relator.

Lei de Anistia

Para o relator, "violações de direitos econômicos, sociais e culturais - incluindo a obstrução do acesso à terra e a recursos naturais - foram cometidas por agentes estatais, em muitos casos com apoio político, material e/ou cumplicidade de atores econômicos". Duhaime identifica instrumentos legais que perpetuam a impunidade desses crimes.

A Lei de Anistia (Lei no 6.683/1979) é um desses mecanismos criticados detalhadamente em seu relatório. Promulgada pelo regime militar, a lei permitiu o perdão a crimes contra a ordem estabelecida e o retorno de exilados políticos, mas também garantiu impunidade a agentes do Estado responsáveis por tortura, desaparecimento forçado e execuções extrajudiciais - daí a demanda recorrente por sua revisão.

Duhaime ressalta a exclusão de categorias inteiras de vítimas cujas violências sofridas não foram reconhecidas como politicamente motivadas

O documento denuncia que "uma interpretação extensiva desse dispositivo logo passou a abranger graves violações de direitos humanos cometidas por agentes estatais, tratadas como crimes conexos a políticos". Como resultado, prevaleceu a impunidade para autores de atrocidades contra a população civil.

Duhaime ressalta ainda a exclusão de categorias inteiras de vítimas, como indígenas, camponeses, trabalhadores e pessoas de ascendência africana, cujas mortes ou desaparecimentos não foram reconhecidos como "politicamente motivados" - o que as deixou à margem de qualquer forma de reparação.

O perfil dos crimes cometidos

O relatório da CNV documenta milhares de casos de crimes da ditadura contra povos indígenas. Entre eles, citam-se os 3.500 Cinta Larga assassinados brutalmente por homens contratados por uma empresa de extração de borracha, que utilizavam açúcar envenenado com arsênico, dinamites lançadas de aviões e ataques com metralhadoras e facões.

Um dos casos mais emblemáticos é o dos Waimiri Atroari, vítimas de ataques aéreos, chacinas e profanação de locais sagrados. Essas violências integraram o Programa de Integração Nacional (PIN), instituído pelo Decreto-Lei no 1.106/1970, assinado pelo general-ditador Emílio Garrastazu Médici.

Entre 1970 e 1973, durante a tramitação do Estatuto do Índio no Congresso, senadores da Arena (partido do governo) e do MDB (oposição consentida) rejeitaram diversas vezes as acusações de extermínio de povos originários

O PIN visava à "integração" de regiões menos desenvolvidas à economia nacional por meio de financiamento de obras de infraestrutura e atuação de superintendências regionais (SUDAM e SUDENE). Na Amazônia, os militares promoveram a abertura de estradas - como a BR-230 (Transamazônica) -, além de incentivar a colonização, garimpo e urbanização.

Documentos históricos do Arquivo do Senado mostram que a ditadura empenhou-se na criação do Estatuto do Índio em resposta a acusações internacionais de genocídio. Para os militares, a lei serviria para neutralizar denúncias reiteradas de jornais, políticos e organismos estrangeiros.

Recomendações do relator

Além da criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade - já recomendada pela CNV -, o Relator Especial propõe que o Estado brasileiro amplie os mandatos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e da Comissão de Anistia, ou crie um novo programa, se necessário, para "garantir que todas as vítimas de violações de direitos humanos por agentes estatais recebam reconhecimento e reparação, independentemente de as violações terem sido motivadas por atividades políticas".

Duhaime sustenta que o Brasil deve implementar com urgência o conjunto de medidas de Justiça Transicional propostas pela CNV

Também recomenda a "implementação urgente de ações criminais e judiciais para enfrentar a violência de Estado cometida contra povos indígenas, camponeses e pessoas negras". Para Duhaime, a violência policial relatada por lideranças indígenas é herança direta de estruturas repressivas não reformadas após a ditadura.

Conforme alerta o relatório, "a falta de um processo abrangente de Justiça de Transição para lidar com as consequências da ditadura levou, lamentavelmente, a ataques recorrentes à democracia, aos direitos humanos e ao Estado de Direito". Para reverter esse cenário, Duhaime sustenta que o Brasil deve implementar com urgência o conjunto de medidas de Justiça Transicional propostas pela CNV.

https://cimi.org.br/2025/09/impunidade-a-crimes-da-ditadura-pavimentou-lei-do-marco-temporal-aponta-relator-da-onu/
 

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