De Povos Indígenas no Brasil
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Corrupção na floresta: quem escuta os guardiões da Amazônia?
03/09/2025
Autor: MARCELO, Ruy
Fonte: OESP - https://www.estadao.com.br/
Corrupção na floresta: quem escuta os guardiões da Amazônia?
Grandes projetos avançam sobre a floresta sem consultar quem nela vive - e o Brasil repete erros históricos
03/09/2025
Ruy Marcelo
Procurador do MP de Contas no Amazonas. Mestre em Direito Ambiental pela UEA.
No Brasil, grandes projetos de infraestrutura são anunciados como fonte de progresso, de geração de empregos e de renda. Ultimamente, na Amazônia e em outros biomas, são divulgados como meio de transição justa. Mas quem vive nos territórios afetados, muitas vezes, vivencia outra realidade, bem adversa. Primeiro, a falta de informação, o desprezo, o assédio, as migalhas, a cooptação. Depois, prevalecem os danos socioambientais, não evitados nem mitigados. Então, se descortina uma forma perversa e muito lesiva de corrupção contra direitos humanos.
Esse resultado lesivo pode ser evitado hoje por meio do cumprimento do dever jurídico de realizar - antes mesmo da aprovação do projeto e de seu licenciamento - a denominada consulta prévia, livre, informada e de boa-fé, prevista na Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2003. Essa consulta prévia é o que distingue projetos sustentáveis de instrumentos levianos de lucratividade espoliativa sobre os territórios ocupados por comunidades tradicionais e povos indígenas.
A falta de consulta prévia não apenas silencia e marginaliza coletividades, pois tendem a favorecer graves danos socioambientais. É emblemático o caso da Usina de Belo Monte, no Pará. Anunciada como solução energética, a obra deslocou mais de 20 mil moradores, causou danos irreversíveis a todo o Xingu. Presididas por contratos superfaturados segundo o TCU, as obras deixaram milhares prejudicados e sem voz. Lideranças indígenas afirmam que nunca foram ouvidas de forma adequada. Não houve reuniões estruturadas, nem acesso claro às informações técnicas sobre os impactos da obra, dizem. O processo seguiu sem que as comunidades tivessem a chance efetiva de opinar ou negociar medidas de mitigação dos impactos sobre seus territórios e seus modos de vida. Hoje, os efeitos da usina sobre os rios, a pesca, o extrativismo das comunidades são visíveis e catastróficos.
Nos anos 1980, o caso Balbina é um monumento à irresponsabilidade, à revelia dos povos indígenas da região. A hidrelétrica alagou 2.360 km² da Floresta Amazônica (porção maior que a cidade de São Paulo) para gerar míseros 250 MW, um fiasco histórico de ineficiência energética. O impacto socioambiental foi devastador e as comunidades não participaram e ainda sofrem seus efeitos negativos na região da bacia do Uatumã, município amazonense de Presidente Figueiredo.
Não obstante, ainda, na atualidade, levantam-se suspeitas de descasos com a consulta prévia. No Amazonas, em 2024, o MPF recomendou a suspensão de todos os projetos de crédito de carbono por evidências de menosprezo à obrigatoriedade de consulta prévia às populações tradicionais dos territórios transacionados, muitas vezes invisibilizados em seus próprios territórios por questões cartoriais e fundiárias. Particularmente, contra um projeto de REDD+ da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, o MPF ajuizou ação civil pública porque o plano foi aprovado e iniciado sem ouvir os povos indígenas, ribeirinhos e extrativistas, que vivem nas unidades de conservação objeto dos atos negociais.
Ainda no Amazonas, ações civis públicas apuram a falta de consulta prévia adequada em projetos privados de exploração minerária. Empreendimentos de potássio em Autazes e gás natural em Silves e Itapiranga são acusados de causar potenciais violações a direitos humanos. Aliada à falta de consulta prévia, gravita suspeita de irregularidade no licenciamento e possíveis danos ambientais. Se procedentes essas arguições, a promessa de empregos e desenvolvimento esconde um modelo de mineração que pode comprometer a dignidade de povos tradicionais, a fauna, a flora, os processos ecológicos, o ciclo hidrológico e o microclima regional.
Até mesmo a chamada "energia limpa" também é alvo de denúncias de violação de direitos humanos no Nordeste, onde a expansão acelerada dos parques eólicos tem gerado tensão em comunidades tradicionais. O que começou como promessa de desenvolvimento sustentável virou fonte de descontentamento e opressão. Moradores relatam falta de consulta, danos às casas, perda de áreas de lazer, falta de acesso à água e à agricultura de subsistência. Em lugares como o sertão potiguar e o litoral cearense, turbinas gigantes foram instaladas sem diálogo real, alterando paisagens, rotinas e modos de vida.
Em resposta, diversos povos têm criado seus próprios protocolos de consulta, como os Acuí e Sítio Conceição, no Pará. São documentos que definem o método para abordar as comunidades, respeitando seus hábitos e costumes. Esses protocolos são instrumentos legítimos de autodeterminação e devem ser reconhecidos como referência obrigatória.
É assustadora a denúncia de lideranças indígenas em audiência pública ocorrida em abril na Câmara dos Deputados: mais de 230 territórios estão sob risco direto ou indireto de projetos energéticos, incluindo exploração de petróleo na Foz do Amazonas, sem qualquer consulta prévia. A pressão sobre a chamada "margem equatorial" é um exemplo claro de como o modelo de desenvolvimento ignora os direitos constitucionais e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
A consulta prévia é dever do Estado e direito das comunidades, instrumento contra a corrupção, a imperícia e o autoritarismo. Quando feita de maneira hábil, expõe os impactos reais, sem maquiagem; impede barganhas indecentes; dá voz a quem sempre foi silenciado; obriga o Estado a respeitar quem constrói o país longe dos holofotes. O verdadeiro progresso começa quando quem vive no território tem o poder de dizer: "aqui, não."
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica.
https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/corrupcao-na-floresta-quem-escuta-os-guardioes-da-amazonia/
Grandes projetos avançam sobre a floresta sem consultar quem nela vive - e o Brasil repete erros históricos
03/09/2025
Ruy Marcelo
Procurador do MP de Contas no Amazonas. Mestre em Direito Ambiental pela UEA.
No Brasil, grandes projetos de infraestrutura são anunciados como fonte de progresso, de geração de empregos e de renda. Ultimamente, na Amazônia e em outros biomas, são divulgados como meio de transição justa. Mas quem vive nos territórios afetados, muitas vezes, vivencia outra realidade, bem adversa. Primeiro, a falta de informação, o desprezo, o assédio, as migalhas, a cooptação. Depois, prevalecem os danos socioambientais, não evitados nem mitigados. Então, se descortina uma forma perversa e muito lesiva de corrupção contra direitos humanos.
Esse resultado lesivo pode ser evitado hoje por meio do cumprimento do dever jurídico de realizar - antes mesmo da aprovação do projeto e de seu licenciamento - a denominada consulta prévia, livre, informada e de boa-fé, prevista na Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2003. Essa consulta prévia é o que distingue projetos sustentáveis de instrumentos levianos de lucratividade espoliativa sobre os territórios ocupados por comunidades tradicionais e povos indígenas.
A falta de consulta prévia não apenas silencia e marginaliza coletividades, pois tendem a favorecer graves danos socioambientais. É emblemático o caso da Usina de Belo Monte, no Pará. Anunciada como solução energética, a obra deslocou mais de 20 mil moradores, causou danos irreversíveis a todo o Xingu. Presididas por contratos superfaturados segundo o TCU, as obras deixaram milhares prejudicados e sem voz. Lideranças indígenas afirmam que nunca foram ouvidas de forma adequada. Não houve reuniões estruturadas, nem acesso claro às informações técnicas sobre os impactos da obra, dizem. O processo seguiu sem que as comunidades tivessem a chance efetiva de opinar ou negociar medidas de mitigação dos impactos sobre seus territórios e seus modos de vida. Hoje, os efeitos da usina sobre os rios, a pesca, o extrativismo das comunidades são visíveis e catastróficos.
Nos anos 1980, o caso Balbina é um monumento à irresponsabilidade, à revelia dos povos indígenas da região. A hidrelétrica alagou 2.360 km² da Floresta Amazônica (porção maior que a cidade de São Paulo) para gerar míseros 250 MW, um fiasco histórico de ineficiência energética. O impacto socioambiental foi devastador e as comunidades não participaram e ainda sofrem seus efeitos negativos na região da bacia do Uatumã, município amazonense de Presidente Figueiredo.
Não obstante, ainda, na atualidade, levantam-se suspeitas de descasos com a consulta prévia. No Amazonas, em 2024, o MPF recomendou a suspensão de todos os projetos de crédito de carbono por evidências de menosprezo à obrigatoriedade de consulta prévia às populações tradicionais dos territórios transacionados, muitas vezes invisibilizados em seus próprios territórios por questões cartoriais e fundiárias. Particularmente, contra um projeto de REDD+ da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, o MPF ajuizou ação civil pública porque o plano foi aprovado e iniciado sem ouvir os povos indígenas, ribeirinhos e extrativistas, que vivem nas unidades de conservação objeto dos atos negociais.
Ainda no Amazonas, ações civis públicas apuram a falta de consulta prévia adequada em projetos privados de exploração minerária. Empreendimentos de potássio em Autazes e gás natural em Silves e Itapiranga são acusados de causar potenciais violações a direitos humanos. Aliada à falta de consulta prévia, gravita suspeita de irregularidade no licenciamento e possíveis danos ambientais. Se procedentes essas arguições, a promessa de empregos e desenvolvimento esconde um modelo de mineração que pode comprometer a dignidade de povos tradicionais, a fauna, a flora, os processos ecológicos, o ciclo hidrológico e o microclima regional.
Até mesmo a chamada "energia limpa" também é alvo de denúncias de violação de direitos humanos no Nordeste, onde a expansão acelerada dos parques eólicos tem gerado tensão em comunidades tradicionais. O que começou como promessa de desenvolvimento sustentável virou fonte de descontentamento e opressão. Moradores relatam falta de consulta, danos às casas, perda de áreas de lazer, falta de acesso à água e à agricultura de subsistência. Em lugares como o sertão potiguar e o litoral cearense, turbinas gigantes foram instaladas sem diálogo real, alterando paisagens, rotinas e modos de vida.
Em resposta, diversos povos têm criado seus próprios protocolos de consulta, como os Acuí e Sítio Conceição, no Pará. São documentos que definem o método para abordar as comunidades, respeitando seus hábitos e costumes. Esses protocolos são instrumentos legítimos de autodeterminação e devem ser reconhecidos como referência obrigatória.
É assustadora a denúncia de lideranças indígenas em audiência pública ocorrida em abril na Câmara dos Deputados: mais de 230 territórios estão sob risco direto ou indireto de projetos energéticos, incluindo exploração de petróleo na Foz do Amazonas, sem qualquer consulta prévia. A pressão sobre a chamada "margem equatorial" é um exemplo claro de como o modelo de desenvolvimento ignora os direitos constitucionais e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
A consulta prévia é dever do Estado e direito das comunidades, instrumento contra a corrupção, a imperícia e o autoritarismo. Quando feita de maneira hábil, expõe os impactos reais, sem maquiagem; impede barganhas indecentes; dá voz a quem sempre foi silenciado; obriga o Estado a respeitar quem constrói o país longe dos holofotes. O verdadeiro progresso começa quando quem vive no território tem o poder de dizer: "aqui, não."
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica.
https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/corrupcao-na-floresta-quem-escuta-os-guardioes-da-amazonia/
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