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COP30: alimentos indígenas e tradicionais na alimentação escolar melhoram saúde e renda das comunidades

14/10/2025

Fonte: MPF - https://www.mpf.mp.br



Garantir que alimentos como pirarucu, farinha de mandioca e beiju, polpa de açaí, cupuaçu e peixe fresco, produzidos por indígenas, ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e outros povos tradicionais, cheguem à mesa dos estudantes dessas comunidades em todo o Brasil. Esse é o objetivo da Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil. Coordenada pelo Ministério Público Federal (MPF), a iniciativa busca fomentar a compra pelo Poder Público (prefeituras, estados, órgãos federais) de alimentos produzidos pelas próprias comunidades para fornecer às escolas alimentação culturalmente adequada. Como resultado do trabalho, de 2019 a 2024, mais de R$ 11 milhões já foram destinados à compra desses alimentos para a alimentação escolar, em diferentes estados e municípios brasileiros.

O projeto teve início em 2016, com a instalação da Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas (Catrapoa), após uma visita do MPF à Terra Indígena Yanomami constatar que a alimentação escolar oferecida era inadequada. Havia muitos itens industrializados, sem qualquer relação com a produção local e com a cultura da comunidade.

"Como muitas aldeias e comunidades na Amazônia não têm energia elétrica contínua para conservar os alimentos, o Poder Público acaba enviando enlatados e embutidos para essas escolas. Além de serem prejudiciais à saúde e cancerígenos, tais alimentos não têm conexão com a cultura local", explica o procurador da República Fernando Merloto Soave, coordenador do projeto.

Desde então, a comissão - que é composta por instituições públicas, representantes da sociedade civil e lideranças tradicionais - trabalha na conscientização e na capacitação de gestores para elaborar editais de chamada pública que possibilitem a compra da produção de comunidades indígenas e tradicionais para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Como resultado, só no Amazonas já foram lançados mais de 30 editais de chamadas públicas para a aquisição desses alimentos direto do produtor familiar indígena, quilombola, ribeirinho e extrativista. Mais de 200 escolas já foram atendidas no estado, beneficiando cerca de 20 mil estudantes e gerando renda a mais de mil famílias de agricultores e produtores indígenas e tradicionais.

No ano passado, a Secretaria de Educação do Amazonas realizou uma chamada para abastecer escolas indígenas e tradicionais de 60% dos municípios do estado com peixe, galinha caipira, polpas de frutas, farinha de mandioca, beiju e outros produtos. Segundo a representante da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) no Centro Colaborador de Alimentação Escolar e Nutrição (Cecane), Celsa da Silva Moura Souza, o impacto positivo na saúde das crianças é evidente.

Uma avaliação feita por pesquisadores da universidade em três escolas indígenas atendidas pelo projeto mostra uma queda significativa no déficit nutricional das crianças, quando comparado a dez anos atrás. "Isso é efeito direto do consumo de alimentos naturais e ligados à realidade cultural dos estudantes", avalia a professora. Além de fonte nutritiva, o alimento serve como veículo de transmissão cultural para as crianças e os jovens dessas comunidades.

Alcance nacional
Em 2020 o projeto da Catrapoa obteve reconhecimento pelo Prêmio Innovare na categoria Ministério Público. Em 2021 o projeto foi ampliado para o restante do país, com a criação da Mesa de Diálogo Permanente Catrapovos Brasil pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR). Hoje, além do Amazonas, outros 18 estados já contam com comissões da Catrapovos.

"Além de garantir alimentação saudável para as crianças, o programa gera renda para as famílias locais e uma perspectiva para que os jovens queiram permanecer em seus territórios, contribuindo para que não sejam cooptados pela criminalidade organizada - como o garimpo, o desmatamento e o tráfico de drogas, comuns nessas regiões"

Fernando Merloto Soave, coordenador do Catrapovos Brasil
No Pará, 57 escolas já estão sendo atendidas pela Catrapovos, garantindo alimentos tradicionais a 4,4 mil estudantes. Só na cidade paraense de Oriximiná - onde vivem pelo menos dez etnias indígenas e 35 comunidades quilombolas - cerca de R$ 1 milhão foi destinado, desde 2022, para a compra de 100 toneladas de alimentos produzidos pelas populações para a alimentação escolar.

De 2019 a 2024, também foram realizadas chamadas públicas específicas para compra dos produtos da agricultura familiar de povos indígenas, quilombolas e tradicionais em Roraima, Acre, Goiás e São Paulo, como resultado das articulações feitas pelo projeto. No ano passado, o município de Iporanga, no Vale do Ribeira (SP), comprou alimentos produzidos pelos quilombolas para atender todas as escolas rurais e parte das localizadas em área urbana.

Benefícios ambientais e economia de recursos públicos
Segundo o coordenador do projeto, comprar diretamente dos produtores também gera economia para o Poder Público, que gasta menos com logística e armazenagem de alimentos, facilitando o controle dos gastos. Isso porque muitas aldeias e comunidades estão em locais de difícil acesso e longe dos grandes centros urbanos, fazendo com que o custo logístico para transportar um produto da cidade para o território tradicional possa ficar cinco vezes maior do que o próprio valor do alimento.

"Há também resultados ambientais e climáticos significativos, como menos lixo gerado nas aldeias e redução de uso de combustível para transporte de alimentos. Sem contar a valorização de um modelo de produção que, em geral, não depende de energia fóssil, de adubos químicos e de agrotóxicos, nem do uso de maquinário pesado prejudicial ao solo", completa o procurador Fernando Merloto Soave.

Além disso, a medida contribui para o cumprimento da Lei 11.947/2009. Ela obriga estados e municípios a utilizarem pelo menos 30% dos recursos recebidos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para a alimentação escolar na compra de alimentos produzidos por agricultores familiares, com prioridade aos povos tradicionais indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária.

Desafios para a compra de alimentos tradicionais
Um dos principais desafios enfrentados pela Catrapovos foram os entraves previstos na legislação e na burocracia pública, para a compra direta dos produtores indígenas e tradicionais. "Para atender às exigências dos órgãos sanitários nas compras públicas antes do início da Catrapoa, os alimentos processados na Terra Yanomami - como polpas, farinhas ou peixes - precisavam percorrer mais de 800km até a cidade de Manaus por rio e estrada, para só depois retornar à aldeia. Isso tornava a logística inviável", explica o procurador.


Para contornar esse problema, de 2017 para cá, foram emitidas diversas notas técnicas pelo MPF e por outros órgãos públicos. Elas estabelecem que os alimentos produzidos pelas 28 populações tradicionais reconhecidas oficialmente pelo Poder Público não precisam atender às exigências sanitárias e aos padrões de comercialização externos, quando são adquiridos para atender as escolas dessas próprias comunidades.
Esse tipo de compra pública deve se enquadrar nas regras de consumo familiar ou autoconsumo, que é quando alguém processa alimentos derivados da mandioca, por exemplo, ou cria animais no quintal e os utiliza para as suas próprias refeições. É o que ocorre na prática nas escolas dos territórios indígenas e tradicionais: são os parentes e familiares que trabalham nas lavouras e seus filhos, netos ou sobrinhos que estudam nas escolas.

Segundo a professora da UFAM Celsa Souza, outra dificuldade enfrentada foi a inclusão dos produtos e dos produtores nas bases de compra do governo, dada a dificuldade em se obter documentos exigidos.

"Fizemos uma chamada pública para a compra de formigas, que é um alimento comum para algumas populações indígenas. Mas esse item não estava cadastrado no sistema usado pela Secretaria de Fazenda do Estado (Sefaz/AM), o que inviabilizou o pagamento do produtor", relembra a professora.

Após a comissão mapear a produção tradicional, diversos alimentos foram incluídos na plataforma da Sefaz/AM, como formiga, óleo da castanha, tapioca e tipos de banana.

Também como fruto das articulações da Catrapovos, o FNDE facilitou, em 2023, o cadastro de povos tradicionais no programa de alimentação escolar, abrindo mão de alguns documentos antes exigidos. No ano passado, o FNDE reduziu de 20% para 15% o percentual de gêneros alimentícios processados e ultraprocessados adquiridos no Pnae. No próximo ano, esse percentual vai cair para 10%, o que deve aumentar a demanda por alimentos da agricultura familiar e tradicional. Em quase uma década de programa, diversas recomendações foram emitidas pelo MPF a órgãos públicos para fomentar essas compras.

No Amazonas, mais de mil produtores indígenas e de comunidades tradicionais já são beneficiadas pelo projeto, o que tem contribuído para incrementar a renda e mudar a vida das famílias da região. Um grupo de mulheres ribeirinhas da zona rural de Manaus, que antes produzia pitaya - fruta altamente nutritiva - apenas para consumo próprio, aumentou a produção para atender a demanda por alimentação escolar. Hoje, cada agricultora pode vender até R$40 mil, ao longo do ano, para cada programa ou órgão público. O negócio tem dado tão certo que elas planejam diversificar a produção: começaram a produzir cocadas com o coco que plantam para fornecer às escolas.

Próximos passos do projeto
Segundo o coordenador da Catrapovos Brasil, o projeto vem sendo ampliado para além da educação, fomentando a compra de produtos culturalmente adequados pelo Poder Público para compor cestas básicas voltadas a essas populações ou atender unidades de saúde dos territórios. Como fruto de recomendação feita pela Catrapovos, em 2023, o Grupo Gestor do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) emitiu uma resolução para adotar diretrizes semelhantes à da alimentação escolar e simplificar a participação de produtores indígenas e tradicionais nas compras feitas pelo programa.

No ano passado, um projeto-piloto feito no Amazonas com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e órgãos estaduais possibilitou a destinação de R$ 10 milhões do PAA para a compra de produtos como farinha, peixe seco, feijão, milho, jerimum e goma de tapioca. O objetivo é que as aldeias e comunidades possam estocar os alimentos em seus próprios territórios, para serem usados durante o período de seca ou em emergências climáticas. "É uma atuação preventiva que evita gastos logísticos para o envio de alimento a essas comunidades em eventos climáticos extremos", explica o procurador.

Paralelamente, a UFAM está desenvolvendo um aplicativo para que as comunidades do Amazonas cadastrem os alimentos que produzem, bem como os períodos de safra. A medida, segundo Celsa Souza, vai possibilitar o mapeamento agrícola nos territórios das calhas dos rios amazônicos, para que o Poder Público possa lançar editais de compras públicas mais direcionados, respeitando os costumes locais de cada área e os alimentos disponíveis nas épocas de cheia e de seca dos rios.

Na época das chuvas, são mais comuns alimentos como melancia, laranja, abóbora e pupunha, por exemplo, enquanto na seca há macaxeira, mamão, banana, entre outros. "Não adianta abrir uma chamada pública para comprar pupunha na época da seca, que os produtores não vão aderir, pois não conseguirão entregar", explica a professora.

Além disso, a Catrapoa/AM percebeu que o tipo de alimento consumido pelas populações que vivem próximas a cada um dos rios pode variar substancialmente. "Não adianta comprar um certo peixe do alto Rio Negro, por exemplo, para escolas que atendem comunidades próximas a outros rios, que há risco das crianças não comerem, pois o alimento não faz parte da sua cultura", explica a professora.

No ano passado, a Catrapovos Brasil e a Catrapoa/AM foram reconhecidas pela Organização Pan-Americana da Saúde, vinculada à Organização Mundial da Saúde (Opas/OMS), como uma das 10 iniciativas mais inovadoras de fortalecimento da nutrição e da atenção básica na saúde dos municípios brasileiros. O projeto também serviu de inspiração para outros países, como a Colômbia, que aprovou recentemente uma lei com mecanismos de promoção à participação de pequenos produtores agrícolas locais nos mercados públicos de compra de alimentos.

https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr2/2025/cop30-alimentos-indigenas-e-tradicionais-na-alimentacao-escolar-melhoram-saude-e-renda-das-comunidades
 

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