De Povos Indígenas no Brasil

Notícias

IBGE reconhece mais 86 povos e 21 línguas indígenas no Brasil

24/10/2025

Autor: Eduardo Nunomura

Fonte: Amazonia Real - https://amazoniareal.com.br



O Censo de 2022 registra que o número de etnias saltou de 305 para 391 no novo levantamento, em comparação com o estudo de 2010, e de 274 para 295 línguas indígenas

O Brasil indígena nunca esteve tão numeroso, linguisticamente diverso e precisando lutar por sua sobrevivência. O Censo Demográfico 2022, do IBGE, identificou 391 etnias, um salto em relação às 305 do estudo de 2010, e 295 línguas faladas, superando as 274 do levantamento anterior. Mas o que deveria ser uma celebração da diversidade não resiste se os dados forem contrapostos com os de infraestrutura básica. Há um abismo histórico de cidadania e direitos, uma falha crônica do Estado brasileiro que penaliza os maiores grupos populacionais da Amazônia e do País.

Os Tikuna são um símbolo dessa desigualdade. Originários da região do Alto Solimões, no Amazonas, os Tikuna (autodenominados Magüta) formam a população indígena mais numerosa, com 74.061 pessoas, e, entre eles, escuta-se a língua Tikuna sendo falada o tempo todo. Os Tikuna são um povo transfronteiriço, ou seja, vivem tanto do lado do território brasileiro quanto na Colômbia e, em número menor, no Peru.

No Brasil, estão presentes no Amazonas (73.564), mas também há pessoas Tikuna vivendo no Rio de Janeiro (73) e São Paulo (70), para onde se deslocaram. Desse total, 71,13% vivem dentro de Terras Indígenas (TIs) e o restante fora delas (21,23% em situação de contexto urbano e 7,64% nas áreas rurais). Pelo Censo 2022, descobre-se que 74,21% dos seus moradores não têm água encanada dentro de casa; 92,82% dependem de fossa rudimentar, buraco, vala ou rios e 76,59% vivem sem coleta de lixo.

A precariedade material vivenciada pelos Tikuna não é um caso isolado. O povo Guarani Kaiowá, com territórios originários no Mato Grosso do Sul, enfrenta a mesma realidade de vulnerabilidade: 82,05% dos domicílios não contam com esgotamento sanitário. Os Guarani Kaiowá sofrem frequentes ataques de fazendeiros em processos de retomada de seus territórios e são alvos constantes de violência. Já em Roraima, sete de cada dez casas dos indígenas Makuxi, terceira etnia mais numerosa populacionalmente, vivem sem saneamento.

Ao apresentar os dados de condições básicas de vida dos povos indígenas, o IBGE joga luz sobre um fenômeno que ameaça as etnias e as línguas. Quase todo o território nacional registrou, de um censo a outro, aumento da diversidade étnica porque os indígenas estão em deslocamento de suas terras para adensar os centros urbanos. É o que faz, assim, São Paulo ser o Estado não-indígena do País com o maior número de etnias declaradas: 271. Vem à frente do Amazonas (259) e da Bahia (233).

A falta que faz a língua própria

Se a riqueza étnica aumenta, a educação e a cidadania tropeçam. O Censo 2022 aponta que a taxa de alfabetização entre os falantes de línguas indígenas (78,55%) é inferior à da população indígena geral (84,95%). O problema é ainda mais grave para aqueles que falam apenas línguas indígenas, onde o analfabetismo salta para 31,86%.

O dilema da cidadania se acentua na falta do documento mais básico: o registro de nascimento. Embora a maioria das crianças (94,09%) de até 5 anos tenha registro no Brasil, o déficit é quase total em povos de contato recente, como os Suruwaha e Pirahã, como esperado. Os territórios desses dois povos estão localizados no sul do Amazonas, vivendo sob forte pressão de desmatamento e ameaças de invasões. O território dos Pirahã fica à margem da BR-230 (Transamazônica) e até hoje eles resistem a contatos, desejo que indigenistas e educadores sempre respeitaram.

O povo Yanomami, cujo território ocupa os Estados de Roraima e Amazonas, lidera em números absolutos: são 3.288 crianças (65,54% do total) sem um documento oficial. Esse déficit de registro civil perpetua a invisibilidade jurídica e o impedimento de acesso a serviços básicos. Sem uma certidão de nascimento, que leva a um RG ou um CPF, a pessoa não pode ser atendida pelo serviço público.

Em outras palavras, o que os dados do Censo 2022 indicam é que não é possível celebrar a diversidade sem garantir a dignidade. Em abril de 2023, em entrevista à Amazônia Real, a linguista Altaci Rubim, do povo Kokama, primeira professora indígena da Universidade de Brasília (UnB), cargo que ocupa desde 2019, já alertava sobre as ameaças às línguas originárias: "Eram mais de mil línguas nativas na época da chegada dos invasores europeus".

Em nova entrevista à agência, a docente reforça que a pauta linguística precisa ser vista como a espinha dorsal de todo o direito. "Língua indígena é um tema transversal. Não tem como ficar somente dentro da educação, da justiça, da saúde. É a partir das línguas que temos as culturas, não o contrário. Quem te dá a cosmovisão é a língua. Não é a cultura", explica ela.

Segundo o Censo 2022, a taxa de analfabetismo é mais elevada entre as pessoas indígenas que falam apenas línguas indígenas no domicílio (31,85%), ante a taxa mais alta de alfabetização (87,21%) entre aqueles que falam somente português.

Línguas ameaçadas pelo risco de assimilação

Mais da metade (53,97%) da população indígena já reside em áreas urbanas, uma grande mudança em relação a 2010, quando 63,78% viviam em zonas rurais. Esse deslocamento territorial massivo fez com que a maior concentração de etnias fosse encontrada em capitais como São Paulo (194 etnias) e Manaus (186). Em termos linguísticos, o Amazonas ainda se destaca com o maior número de línguas faladas (168), com Manaus à frente dos municípios (99), seguida por São Paulo (78).

Essa virada demográfica envolve a questão da sobrevivência, a busca por saúde e educação que não chegam aos territórios indígenas como deveriam. Embora o número de falantes de línguas indígenas fora das TIs tenha mais que dobrado (passando de 44.590 em 2010 para 96.685 em 2022), a proporção percentual de falantes fora das TIs caiu de 12,67% para 9,78% para a população de 5 anos ou mais.

O dado sugere que, à medida que os indígenas se mudam para outras localidades, a pressão pela assimilação cultural e linguística pode estar se intensificando. Em contraste, dentro das TIs, o peso dos falantes de línguas indígenas se ampliou de 57,35% para 63,22%, o que confirma o papel dos territórios como bastiões de preservação linguística. Mas Altaci Rubim defende que as comunidades têm encontrado formas de resistência:

"Todos os povos indígenas que têm a sua conexão ancestral estão conectados ao território. Essa dicotomia rural e urbano criada pelas políticas públicas não é uma ameaça [a ida para a cidade], porque você está o tempo todo com outros grupos e com os seus grupos", adianta a professora da UnB. "A gente ressignificou a educação, ressignificamos muitas das nossas pautas e nos apropriamos de forma que ficasse em nosso favor."

E segue Altaci: "Quem mora na cidade está encontrando as suas estratégias para fortalecer a sua língua, a sua cultura, a sua conexão ancestral. Nem que seja pelas redes sociais, pelas tecnologias, porque hoje tem aula na internet de língua indígena. Muda a estratégia, mas a luta é a mesma".

A vulnerabilidade linguística, aponta o relatório do IBGE, é particularmente notável entre etnias que se deslocaram para as cidades, expondo-as à forte pressão da língua dominante. Os Kokama, a segunda etnia mais numerosa (64.327 pessoas), tem a maioria de seu povo (67,65%) residindo fora das TIs e em situação urbana; grande parte em cidades do Amazonas ou na capital Manaus. O mesmo ocorre com os povos Baré (71,96% urbanos fora de TIs), no Amazonas, e Pataxó (62,87% urbanos fora de TIs), na Bahia. Fora das TIs e em situação urbana, o português é falado por 98,01% dos indígenas.

Altaci, que é Kokama, vive hoje em Brasília, onde atua na Coordenação de Promoção de Política Linguística do Ministério dos Povos Indígenas. Defensora das línguas indígenas, e de um olhar mais complexo e elaborado das suas transformações - para além do que a academia não-indígena costuma rotular -, a professora tem atuado em Grupos de Trabalho para fazer com que a Década Internacional das Línguas Indígenas da Unesco seja implementada no Brasil. Com o diálogo que se criou entre e com os povos indígenas, já se aumentou o número de cooficialização de línguas indígenas. "Temos mais de 50 línguas cooficializadas, entre município e Estado, e entre elas vai ter também línguas indígenas de sinais. Ninguém ouvia falar. Mas nessa década já foram documentadas 37 línguas indígenas de sinais."

A linguista Altaci Rubim critica a forma como a academia e o Estado lidam com a variação linguística dos povos indígenas. Nas universidades, ela exemplifica, o índice de reprovação de alunos que falam o "brasileiro tikuna" é grande, por falta de acolhimento do português que eles expressam, uma dinâmica imposta pelo idioma padrão. Nos debates dos GTs e entre acadêmicos originários, já se está trabalhando com o conceito de braslind, a língua indígena do Brasil ou, melhor definido, o "português com a cosmovisão indígena". Diz ela: "O braslind é o caminho para chegar às línguas ancestrais. Estamos batizando como braslind porque não tem como falar com o estigmatizador 'português indígena'. Os povos indígenas tomaram a decisão de tomar frente no fortalecimento das suas línguas".

Nova metodologia do IBGE

O aumento na diversidade étnica e linguística não é reflexo apenas de um crescimento demográfico, mas sobretudo de um aprimoramento na metodologia de captação de dados do IBGE, que consultou acadêmicos e lideranças, Funai e Ministério dos Povos Indígenas para definir novos critérios para os recenseadores.

Uma das inovações foi a ampliação da capacidade de autodeclaração dos indígenas. Enquanto em 2010 o recenseador só podia registrar uma etnia, no Censo 2022, o indígena podia declarar até duas. Essa mudança atendeu, por exemplo, a diferentes tipos de uniões entre povos diferentes (em casamentos, por exemplo). No caso das línguas indígenas faladas ou utilizadas, cada pessoa podia declarar, de forma espontânea, até três línguas indígenas. Essa dupla permissão foi fundamental para refletir a complexidade da identidade e a realidade plurilíngue de muitas comunidades.

O salto de 305 para 391 etnias no total nacional e de 250 para 336 dentro de Terras Indígenas se deu por um novo processo sobre as listas de nomes. O IBGE decidiu desagregar 25 etnias que antes estavam agrupadas e apresentou de forma individualizada 8 etnias que em 2010 figuravam na categoria genérica de "outras etnias das Américas". O melhor exemplo são os povos migrantes Warao, originário da Venezuela, e Aimara, muito presentes em Roraima e no Amazonas.

Quando um recenseador foi a campo, muitas vezes ele se deparou com o surgimento de novos nomes de etnias e línguas. Isso não significa que não existissem, mas que agora o IBGE trataria de fazer o dever de casa: ele anotava o que foi dito pelo indígena, e identificava como "entrada textual" para, posteriormente, validar a informação junto a especialistas e órgãos indigenistas, como a Funai.

A maior cobertura censitária, desta vez, também ajudou. Em 2010, a pergunta "Você se considera indígena?" se restringia às Terras Indígenas. No Censo 2022, ela foi estendida às localidades indígenas (incluindo agrupamentos e áreas de ocupação dispersa). Essa mudança, mais inclusiva e abrangente, permitiu capturar 41,52% da população indígena residente fora de Terras Indígenas.

O retrato apresentado pelo IBGE permitirá agora que estudiosos como Altaci Rubim tenham um instrumento a mais para um caminho de resistência cultural: "O conceito de língua para os povos indígenas é o espírito. Então, o espírito da língua te chama para ocupar o espaço em você. Não dá para ficar sem falar a língua sem cantar ou fazer um ritual. Porque aquele que diz que não fala está conectado de alguma forma. E a espiritualidade é a própria língua, é a própria cosmovisão", ensina.

https://amazoniareal.com.br/etnias-indigenas-brasil/
 

As notícias publicadas no site Povos Indígenas no Brasil são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos .Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.