De Povos Indígenas no Brasil
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Mais visibilidade: novo estudo revela 632 territórios quilombolas na Amazônia Legal, 280% acima da base de dados federal
30/10/2025
Autor: Jullie Pereira
Fonte: InfoAmazonia - https://infoamazonia.org/2025/10/30/entre-a-floresta-e-o-garimpo-quilombolas-de-mato-
 
 Mais visibilidade: novo estudo revela 632 territórios quilombolas na Amazônia Legal, 280% acima da base de dados federal
InfoAmazonia teve acesso exclusivo a levantamento sobre territórios quilombolas e quilombos feito por ISA e Conaq. Um novo mapa, mais preciso, consolida onde estão as populações tradicionais negras na Amazônia Legal e seu papel na proteção das florestas e contribuição climática.
 
Por Jullie Pereira
30 outubro 2025 at 8:00
 
"É uma afirmação da nossa existência, da nossa resistência, do nosso direito à terra". É assim que Laura Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), define o que representa, finalmente, dar visibilidade a centenas de territórios e milhares de comunidades quilombolas no mapa da Amazônia Legal.
 
Ela completa: "uma ferramenta muito importante para garantir políticas públicas". Silva, além de coordenadora da Conaq, é líder do território Mutuca, no Mato Grosso.
 
É uma afirmação da nossa existência, da nossa resistência, do nosso direito à terra.
Laura Silva, coordenadora da Conaq e líder do território Mutuca
 
O ânimo tem fundamento. Um levantamento inédito reúne diferentes bases de dados sobre os territórios em uma só plataforma. Liderado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Conaq, e obtido com exclusividade pela InfoAmazonia, o estudo traz, pela primeira vez, uma estimativa mais precisa da presença quilombola na Amazônia Legal: são 632 territórios delimitados, contra os 166 da base de dados espacial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão federal responsável pela titulação desses territórios - um aumento de 280%. O mapeamento também identificou 2.494 quilombos, comunidades quilombolas representadas por pontos no mapa- ante os 2.179 registrados no Censo de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
 
Foram meses de pesquisa em fontes como o Instituto de Terra do Pará (Interpa), o Instituto de Terra do Maranhão (Interma) e o próprio Incra, entre diversos outros. Quando um território está dentro de florestas estaduais, o processo vai para o órgão estadual, quando está em área federal, vai para o Incra. Além dessa divisão, a Fundação Cultural Palmares (FCP) também é uma fonte, porque entrega a certificação de identidade quilombola; o IBGE também foi consultado, porque realiza um censo com informações detalhadas por setor censitário, e as organizações da sociedade civil, como as regionais Conaq e a Malungu, Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará, também tiveram dados incluídos no mapeamento.
 
Antonio Oviedo, pesquisador que coordenou o estudo pelo ISA, explica que a busca pela consolidação dos dados começou após anos de uso de uma base defasada, que comprometia análises sobre políticas de acesso à saúde, invasões territoriais, desmatamento e estoque de carbono. Foi necessário reunir todas as fontes disponíveis e integrá-las em uma única base de dados.
 
"O problema era essa falta de transparência e de integração de dados, porque você tem informações sobre territórios quilombolas em diversas agências governamentais, e não há um lugar onde todas essas informações sejam organizadas. Isso dificultava muito ter uma visão mais integral sobre a dimensão quilombola", explica Oviedo.
 
Os dados foram validados por quilombolas em oficinas e assembleias, nas quais eles mesmos construíram seus mapas, corroborando as informações e indicando onde as comunidades estão localizadas no território: "você precisava ver a felicidade das pessoas quando elas localizam as comunidades. Quando precisavam de uma informação, mandavam WhatsApp para alguém, a pessoa tirava o ponto de coordenada e mandava na hora para quem estava na oficina. Foi uma mobilização muito poderosa", completa Oviedo.
 
O problema era essa falta de transparência e de integração de dados, porque você tem informações sobre territórios quilombolas em diversas agências governamentais, e não há um lugar onde todas essas informações sejam organizadas. Isso dificultava muito ter uma visão mais integral sobre a dimensão quilombola.
Antonio Oviedo, pesquisador do ISA
 
Quilombolas validaram mapeamento das comunidades na Amazônia, com apoio da Conaq e do ISA. Foto: Instituto Socioambiental
 
Esta é a primeira reportagem da série Amazônia Quilombola, que mostra como os territórios e comunidades revelados pelo levantamento do ISA e da Conaq são fundamentais para a manutenção das florestas, mas seguem vulneráveis diante de conflitos e da lentidão na titulação. É uma produção da InfoAmazonia em parceria com os veículos da Rede Cidadã InfoAmazonia A Lente (MT), Agência Urutau (AP), Agência Carta Amazônia (PA), Agência Tambor (MA).
Territórios protegem a floresta
 
Dados de cobertura e uso do solo da rede MapBiomas mostram que os territórios quilombolas atuam como barreiras eficazes contra a degradação ambiental e o desmatamento. Nessas áreas, 3.391.339 hectares de vegetação nativa permanecem protegidos - o equivalente a 92,3% da área total mapeada. O mesmo vale para os corpos d'água: são 80.014 hectares protegidos, o que aumenta a taxa de proteção para 94,4% nos territórios quilombolas já mapeados.
 
A titulação é um fator decisivo: a perda de cobertura florestal é 60% menor onde o título já foi concedido - territórios já titulados mantêm 91% de suas florestas, enquanto os não titulados preservam 76%.
 
A proteção de suas florestas está diretamente relacionada à contribuição quilombola na crise climática. Segundo outro estudo recente da Conaq, essas florestas altamente protegidas têm densidade de carbono 48,7% maior do que o entorno dos seus territórios. E quando titulados, o aumento da densidade de carbono é de 12,4% (veja mais abaixo em NDC Quilombola).
 
"Existe, sim, uma resiliência, uma capacidade de preservação e de proteção dos laços entre as comunidades negras rurais e quilombolas. Quando a gente olha para o bioma amazônico, pensa que só tem indígena. No entanto, 64% da população que vive na Amazônia é negra", afirma Denildo Rodrigues de Moraes, conhecido como Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq.
 
Quando a gente olha para o bioma amazônico, pensa que só tem indígena. No entanto, 64% da população que vive na Amazônia é negra.
Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq
 
Sete dos nove estados da Amazônia Legal têm territórios quilombolas identificados no novo levantamento. As exceções são Acre e Roraima - embora a Conaq já registre a presença de quilombos no Acre.
 
O estudo destaca que a base de dados não deve ser vista como um produto final, mas como uma plataforma em constante atualização. Entre as próximas etapas previstas estão a investigação de lacunas geográficas e o mapeamento de comunidades em estados como Acre e Roraima, onde as bases oficiais ainda não trazem territórios quilombolas nas bases oficiais.
 
Os estados com mais territórios quilombolas são Maranhão, com 405, Pará, com 103, e Amapá, com 31. No Maranhão, eles ocupam 16,4% da extensão do estado; no Pará, 39,8%; e no Amapá, 4,1%. Esses três estados também se destacam pelo número de quilombos identificados: 1.553 no Maranhão, 538 no Pará e 179 no Amapá.
 
Amazônia Quilombola
 
A Amazônia Legal abriga 632 territórios quilombolas, áreas tradicionalmente ocupadas por quilombos, cujo perímetro foi definido a partir de procedimentos oficiais de identificação e delimitação territorial ou por processos de mapeamento autônomo realizados pelas próprias comunidades. Além disso, há mais 2.494 quilombos, representados por pontos no mapa, que são comunidades quilombolas que desenvolvem modos próprios de vida e organização, mantendo vínculos territoriais, culturais e identitários.
 
O levantamento é resultado de um estudo realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que pela primeira vez reúne diferentes bases de dados em uma única plataforma. Assim, passa a ser possível visualizar, em um só mapa, a presença quilombola na Amazônia.
 
Mais visibilidade: aumento de 280% no número de territórios quilombolas
 
Até então, havia 166 territórios quilombolas, segundo dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão federal responsável pela titulação.
 
Com o novo levantamento, foram identificados outros 466 territórios em diversas bases de dados, oficiais e não oficiais, ampliando o retrato da presença quilombola na Amazônia Legal.
 
Ao todo, são 632 territórios quilombolas delimitados - um aumento de 280% em relação ao dado do Incra.
 
Quilombos estão dentro e fora dos territórios
 
As 2.494 comunidades quilombolas podem estar dentro ou fora dos territórios delimitados e reconhecidos. Mais da metade (52,3%) dos quilombos está dentro dos territórios - delimitados por fontes oficiais ou por autodeclaração, enquanto os 47,7% restantes (1.190 quilombos) estão fora dessas áreas já delimitadas.
 
Mas mesmo os quilombos que estão localizados dentro dos territórios quilombolas não estão totalmente protegidos pela Constituição. Isso porque nem todos os territórios delimitados já terminaram seu processo de titulação - a realidade está bem longe disso.
 
Gargalo da titulação
 
Dos 632 territórios quilombolas já mapeados na Amazônia Legal, apenas 160 (25%) foram titulados.
 
O Maranhão é o estado que mais tem territórios quilombolas em toda a Amazônia Legal, mas também com maior entrave: dos 405 territórios quilombolas existentes, apenas 51 (12,6%) tiveram a titulação concluída, enquanto os outros 354 ainda se encontram em alguma etapa do processo de titulação. Ou seja, 87% dos territórios delimitados no Maranhão ainda não estão titulados.
 
A certificação
 
O Maranhão também é o estado com o maior número de quilombos da Amazônia Legal: são 1.553. Dentre eles, 772 comunidades quilombolas não têm certificação pela Fundação Cultural Palmares - requisito para iniciar o processo de titulação. Os outros 781 quilombos estão certificados.
 
Na Amazônia como um todo, o cenário é similar ao Maranhão.
Enquanto há 1.224 quilombos sem certificação, 1279 quilombos têm a certificação da Fundação Cultural Palmares.
 
Já em relação às áreas delimitadas, dos 632 territórios quilombolas já mapeados na Amazônia Legal, apenas 25% são territórios titulados. Os outros 75% são territórios em alguma outra fase do processo de titulação.
 
Segundo o estudo Amazônia Quilombola, a taxa de perda de florestas nesses territórios é maior em comparação com os territórios titulados, o que evidencia a importância do reconhecimento e proteção oficial para a preservação das florestas.
 
O processo de titulação dos territórios quilombolas envolve diferentes fases. A primeira etapa é a certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao
 
Ministério da Cultura, que atesta a autoatribuição quilombola por parte das comunidades. Ela é um documento administrativo, geralmente solicitado pela própria comunidade, que confirma a identidade dos territórios quilombolas e quilombos. Isso ocorre após um estudo da FCP que apresenta elementos culturais, históricos e sociais para comprovar que as famílias são remanescentes de grupos escravizados no Brasil.
 
Dentre os 632 territórios quilombolas, 344 são autodeclarados. Desses, 100 não têm certificação, e 244 são autodeclarados com certificação da FCP. Já entre os quilombos da Amazônia Legal: 49,1% - 1.224 de 1.270 - não possuem a certificação.
 
Com a certificação, o processo de titulação pode ser aberto no Incra - órgão que é responsável pelo processo em terras públicas federais ou que incidem em áreas de
 
particulares. A titulação é o que garante o direito à terra pelos quilombolas, com estabelecimento dos limites territoriais. O órgão tem a responsabilidade de iniciar um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), documento formado por um relatório antropológico, levantamento fundiário, delimitação da área e cadastro das famílias.
 
O RTID passa pelas mãos de ao menos nove órgãos, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Superintendência do Patrimônio da União (SPU), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O objetivo é entender se há sobreposição da área com outro patrimônio, terra indígena ou unidade de conservação.
 
Após o relatório ser analisado e não sofrer contestações de outros órgãos, o presidente do Incra pode publicar uma portaria de identificação do território quilombola no Diário Oficial da União e do estado. Com os limites definidos, o Incra realiza a demarcação física e emite o documento final que determina que a terra não pode ser dividida, vendida, loteada, arrendada ou penhorada. O território quilombola está, então, titulado. É o equivalente à demarcação de uma terra indígena - agora, é uma área da União, mas com usufruto dos quilombolas.
 
Dos 632 territórios quilombolas já mapeados, apenas 160 (25%) foram titulados. O Amazonas e o Mato Grosso são os únicos estados da Amazônia Legal que não possuem nenhum território titulado.
 
Dos 2.494 quilombos existentes, 52,3% estão localizados dentro de territórios quilombolas delimitados, seja por fontes oficiais ou por autodeclaração. Os outros 47,7% (1.190 quilombos) estão fora e não têm delimitação de seu território. Desses, 60,2% (717 quilombos) não possuem a certificação da FCP, requisito para iniciar o processo de titulação.
 
O levantamento mostra que essa ausência de reconhecimento formal tem impactos ambientais diretos. Territórios autodeclarados que ainda aguardam a certificação da FCP registraram uma taxa de perda florestal 400% maior que a dos territórios titulados, evidenciando a vulnerabilidade dessas áreas e a urgência em acelerar o processo de regularização.
 
O avanço da agropecuária é outro fator: houve um aumento de 1.248% na área ocupada pela agropecuária em territórios autodeclarados sem certificação. O estudo reforça, assim, a necessidade de avançar na titulação e de aprofundar as investigações sobre a ocupação dessas áreas por pessoas não quilombolas.
Demora no processo
 
Diferentemente das terras indígenas, que têm um prazo previsto de até cinco anos para a conclusão da demarcação, a Constituição Federal não estabelece um limite de tempo para a titulação dos territórios quilombolas.
 
A demora e os conflitos territoriais levam algumas comunidades a desistir do processo. Jamilly Silva, líder quilombola, conta que a certificação do quilombo urbano de São Benedito, no bairro Praça 14 de Janeiro, em Manaus, foi concluída rapidamente graças ao apoio de um procurador do Ministério Público Federal (MPF). Já a titulação, por outro lado, não avançou.
 
Em 2014, o local se tornou o primeiro quilombo urbano da região Norte e o segundo do Brasil, mas a comunidade decidiu não seguir no processo de titulação. Em assembleia, discutiram e tiveram receio justamente da fase da desapropriação. O local já estava tomado por uma ocupação mercantil, com lojas de carros, gráficas e supermercados. Alguns estabelecimentos eram dos próprios comunitários e vizinhos que não queriam perder o negócio.
 
Como isso já estava acontecendo, a comunidade considerou que seria prejudicial para as pessoas e abriu mão da delimitação do território na cidade. A desapropriação é um dos momentos mais difíceis no processo de titulação, porque pode envolver conflitos, disputas judiciais e ataques de ódio.
 
Além do quilombo de São Benedito, existem outros 58 quilombos no Amazonas, onde há a presença de quilombolas, mas em localidades que não foram reconhecidas como territórios ainda. Os oficialmente delimitados são: Território Quilombola Rio Andirá, localizado na área do município de Barreirinhas; o Território Quilombola do Tambor, no município de Novo Airão; e o Território Quilombola Sagrado Coração de Jesus de Lago de Serpa, em Itacoatiara. Nenhum dos territórios no Amazonas está titulado.
 
"As situações dos quilombos do Amazonas são levadas em reuniões com o Incra, mas a gente não vê avanço de jeito nenhum. Por isso, a maioria aqui nem quis a titulação. Tem horas que muda a chefia, é difícil, tem que explicar tudo de novo. Eles falam que não têm gente suficiente, porque precisa ter um antropólogo, outro técnico, não tem dinheiro, sempre as mesmas coisas", conta Jamilly.
 
Apesar dos pesares, Jamilly diz que o dia em que a comunidade começou a resgatar suas histórias para solicitar a certificação foi um dos mais importantes. Em uma reunião à sombra de uma mangueira, ouviram os anciãos contar como seus pais chegaram a Manaus e trouxeram, do Maranhão, a imagem de São Benedito - que antes pertencia a outros ancestrais escravizados vindos de Portugal. Esse processo migratório ajudou a transformar a Praça 14 no bairro negro de Manaus.
 
"Eu sempre me reconheci como negra. Minha avó e meus tios nunca deixavam a gente abaixar a cabeça. Tinha gente que tinha medo de passar aqui porque diziam que era o 'barranco da negada', o 'povo da confusão'. A gente nunca teve medo ou vergonha", conta.
Jamilly Silva, líder quilombola, arruma a imagem de São Benedito, que concede nome ao quilombo onde vive. Foto: Bruno Kelly/InfoAmazonia
 
Eu sempre me reconheci como negra. Minha avó e meus tios nunca deixavam a gente abaixar a cabeça. Tinha gente que tinha medo de passar aqui porque diziam que era o 'barranco da negada', o 'povo da confusão'. A gente nunca teve medo ou vergonha.
Jamilly Silva, líder quilombola
 
Em setembro do ano passado, pela primeira vez, o governo federal criou a Diretoria de Territórios Quilombolas no Incra, responsável por coordenar as atividades de identificação, reconhecimento, delimitação e titulação dos territórios. Mônica Borges, quilombola do território Itamatatiua, em Alcântara, no Maranhão, assumiu o cargo.
 
Em entrevista à InfoAmazonia, ela informou que os maiores problemas enfrentados dentro do órgão são orçamentários e jurídicos. O primeiro fator envolve, de acordo com ela, o bloqueio de R$ 15 bilhões na execução orçamentária do órgão. Para 2026, o Incra pede ao governo uma suplementação de R$ 150 milhões.
 
Além do orçamento, Mônica aponta outros dois entraves: o operacional e o estrutural. "O quantitativo de técnicos disponíveis para a política ainda hoje está aquém da demanda. Digo aquém porque, para que a resposta que o Incra entregue anualmente seja compatível com essa demanda histórica, seria preciso muito mais estrutura", diz a diretora.
 
Ela afirma que, desde que assumiu o cargo, o maior desafio da titulação tem sido a judicialização dos casos de desapropriação em territórios reconhecidos. Na última fase do processo, os técnicos precisam retirar pessoas que não sejam quilombolas das áreas, o que costuma gerar disputas judiciais.
 
Esses processos surgem quando invasores que ocupam o local de forma irregular contestam a titulação. O momento também pode provocar conflitos diretos contra os quilombolas e implicar custos elevados para o governo, que precisa indenizar famílias quando há comprovação de aquisição legal dos terrenos. "Este ano, a gente já conseguiu executar mais de R$ 70 milhões em ordens de indenização", disse.
NDC quilombola
 
Com o novo mapa em mãos, a Conaq pretende apresentar os dados ao governo federal e ao Incra durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30). Além do levantamento realizado em parceria com o ISA, a organização também levará o documento "NDC dos Quilombos do Brasil".
 
Um dos objetivos é defender que a titulação de territórios quilombolas seja incluída na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil - a meta oficial para reduzir as emissões de gases de efeito estufa - e também no Plano Clima Nacional
 
É a política que orienta as ações do Brasil para enfrentar a crise climática. Ele define metas e estratégias para reduzir emissões de gases de efeito estufa e adaptar o país aos impactos do clima. Também serve como base para implementar a NDC brasileira e cumprir o Acordo de Paris.
, como política de conservação da floresta. O país já enviou sua NDC, mas ainda pode acrescentar anexos metodológicos a qualquer momento, detalhando as medidas para alcançar a redução de 59% a 67% até 2035. É nessa brecha que as organizações quilombolas pretendem atuar.
 
A Conaq sugere 43 propostas que poderiam estar na NDC brasileira e no Plano Clima. Entre elas: acelerar o ordenamento territorial e fundiário; acelerar o processo de transição energética justa, com investimento em descarbonização da matriz energética e incentivos para o sistema agrícola quilombola e tradicional; elaborar e revisar planos de adaptação às mudanças climáticas.
 
A organização também reivindica espaços nos debates oficiais da COP e lembra que a Carta da Presidência Brasileira da COP30 não fala sobre racismo ambiental nem sobre a participação dos afrodescendentes nas discussões climáticas. Por isso, exige que, assim como a Constituição aplicou uma data-limite para a demarcação das terras indígenas, o Plano Clima estabeleça a titulação de todos os territórios delimitados no prazo de até cinco anos.
 
A Conaq explica que, uma das principais apostas do Brasil para a conferência, o Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), também não menciona diretamente os povos quilombolas. A proposta é de que 20% dos recursos sejam destinados diretamente aos povos indígenas. Na NDC, eles pedem a inclusão no texto e que o valor aumente em 40%.
O que os quilombolas propõem na COP30
 
- Inclusão da titulação dos territórios quilombolas na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil e no Plano Clima Nacional, como política de conservação da floresta.
 
- Aceleração do ordenamento territorial e fundiário, garantindo segurança jurídica aos territórios quilombolas.
 
- Promoção de uma transição energética justa, com investimentos na descarbonização da matriz energética e incentivos ao sistema agrícola quilombola e tradicional.
 
- Elaboração e revisão dos planos de adaptação às mudanças climáticas, considerando as especificidades dos territórios quilombolas.
 
- Participação dos quilombolas nos debates oficiais da COP, com reconhecimento do racismo ambiental e da contribuição dos povos afrodescendentes nas discussões climáticas.
 
- Estabelecimento de um prazo máximo de cinco anos para a titulação de todos os territórios quilombolas já delimitados, assim como a Constituição já prevê para povos indígenas.
 
- Inclusão explícita dos povos quilombolas no Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), com aumento de 20% para 40% no valor destinado originalmente apenas a povos tradicionais.
 
"Essa COP, que está acontecendo no Brasil, deveria estar discutindo sobre o eixo central, que é o racismo ambiental, sendo o Brasil um país em que mais de 60% da população é negra, e são essas as pessoas que mais sofrem com a crise climática e ambiental", diz Biko Rodrigues.
 
A luta quilombola nas discussões sobre clima no mundo já trouxe resultados. Durante a 16o Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP16), realizada em Cali (Colômbia) em 2024, eles conquistaram um feito inédito: o documento final passou a citar explicitamente os afrodescendentes. Foram incluídos no texto, ao lado de povos indígenas e comunidades locais, como um grupo fundamental para a conservação da natureza.
 
Oviedo sugere que a inclusão da titulação na NDC e no Plano Clima seja a primeira medida emergencial para resolver a questão quilombola no Brasil. Depois, propõe que o governo promova seminários para que os dados sejam debatidos em conjunto com a Conaq. "Para pensar em como eles podem utilizar essa base de dados para a implementação das suas políticas, ou seja, como é que a gente pode a partir dessas evidências incentivar o governo a ter uma base de dados única sobre territórios quilombolas, como a Funai tem", afirma.
 
O pesquisador do ISA explicou à InfoAmazonia que esta é apenas uma etapa do projeto. O objetivo inicial é dar visibilidade a territórios que ainda não estão mapeados e reconhecidos na base federal, contribuindo para que as políticas públicas alcancem comunidades que hoje não aparecem nos mapas do país. O processo de refinamento dos dados deve continuar.
 
Esta reportagem faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia.
 
Texto: Jullie Pereira
Ilustrações: Utópika Estúdio
Fotografia: Bruno Kelly
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Direção editorial: Juliana Mori
 
 
https://infoamazonia.org/2025/10/30/entre-a-floresta-e-o-garimpo-quilombolas-de-mato-grosso-resistem-sem-terras-tituladas/    
InfoAmazonia teve acesso exclusivo a levantamento sobre territórios quilombolas e quilombos feito por ISA e Conaq. Um novo mapa, mais preciso, consolida onde estão as populações tradicionais negras na Amazônia Legal e seu papel na proteção das florestas e contribuição climática.
Por Jullie Pereira
30 outubro 2025 at 8:00
"É uma afirmação da nossa existência, da nossa resistência, do nosso direito à terra". É assim que Laura Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), define o que representa, finalmente, dar visibilidade a centenas de territórios e milhares de comunidades quilombolas no mapa da Amazônia Legal.
Ela completa: "uma ferramenta muito importante para garantir políticas públicas". Silva, além de coordenadora da Conaq, é líder do território Mutuca, no Mato Grosso.
É uma afirmação da nossa existência, da nossa resistência, do nosso direito à terra.
Laura Silva, coordenadora da Conaq e líder do território Mutuca
O ânimo tem fundamento. Um levantamento inédito reúne diferentes bases de dados sobre os territórios em uma só plataforma. Liderado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Conaq, e obtido com exclusividade pela InfoAmazonia, o estudo traz, pela primeira vez, uma estimativa mais precisa da presença quilombola na Amazônia Legal: são 632 territórios delimitados, contra os 166 da base de dados espacial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão federal responsável pela titulação desses territórios - um aumento de 280%. O mapeamento também identificou 2.494 quilombos, comunidades quilombolas representadas por pontos no mapa- ante os 2.179 registrados no Censo de 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Foram meses de pesquisa em fontes como o Instituto de Terra do Pará (Interpa), o Instituto de Terra do Maranhão (Interma) e o próprio Incra, entre diversos outros. Quando um território está dentro de florestas estaduais, o processo vai para o órgão estadual, quando está em área federal, vai para o Incra. Além dessa divisão, a Fundação Cultural Palmares (FCP) também é uma fonte, porque entrega a certificação de identidade quilombola; o IBGE também foi consultado, porque realiza um censo com informações detalhadas por setor censitário, e as organizações da sociedade civil, como as regionais Conaq e a Malungu, Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará, também tiveram dados incluídos no mapeamento.
Antonio Oviedo, pesquisador que coordenou o estudo pelo ISA, explica que a busca pela consolidação dos dados começou após anos de uso de uma base defasada, que comprometia análises sobre políticas de acesso à saúde, invasões territoriais, desmatamento e estoque de carbono. Foi necessário reunir todas as fontes disponíveis e integrá-las em uma única base de dados.
"O problema era essa falta de transparência e de integração de dados, porque você tem informações sobre territórios quilombolas em diversas agências governamentais, e não há um lugar onde todas essas informações sejam organizadas. Isso dificultava muito ter uma visão mais integral sobre a dimensão quilombola", explica Oviedo.
Os dados foram validados por quilombolas em oficinas e assembleias, nas quais eles mesmos construíram seus mapas, corroborando as informações e indicando onde as comunidades estão localizadas no território: "você precisava ver a felicidade das pessoas quando elas localizam as comunidades. Quando precisavam de uma informação, mandavam WhatsApp para alguém, a pessoa tirava o ponto de coordenada e mandava na hora para quem estava na oficina. Foi uma mobilização muito poderosa", completa Oviedo.
O problema era essa falta de transparência e de integração de dados, porque você tem informações sobre territórios quilombolas em diversas agências governamentais, e não há um lugar onde todas essas informações sejam organizadas. Isso dificultava muito ter uma visão mais integral sobre a dimensão quilombola.
Antonio Oviedo, pesquisador do ISA
Quilombolas validaram mapeamento das comunidades na Amazônia, com apoio da Conaq e do ISA. Foto: Instituto Socioambiental
Esta é a primeira reportagem da série Amazônia Quilombola, que mostra como os territórios e comunidades revelados pelo levantamento do ISA e da Conaq são fundamentais para a manutenção das florestas, mas seguem vulneráveis diante de conflitos e da lentidão na titulação. É uma produção da InfoAmazonia em parceria com os veículos da Rede Cidadã InfoAmazonia A Lente (MT), Agência Urutau (AP), Agência Carta Amazônia (PA), Agência Tambor (MA).
Territórios protegem a floresta
Dados de cobertura e uso do solo da rede MapBiomas mostram que os territórios quilombolas atuam como barreiras eficazes contra a degradação ambiental e o desmatamento. Nessas áreas, 3.391.339 hectares de vegetação nativa permanecem protegidos - o equivalente a 92,3% da área total mapeada. O mesmo vale para os corpos d'água: são 80.014 hectares protegidos, o que aumenta a taxa de proteção para 94,4% nos territórios quilombolas já mapeados.
A titulação é um fator decisivo: a perda de cobertura florestal é 60% menor onde o título já foi concedido - territórios já titulados mantêm 91% de suas florestas, enquanto os não titulados preservam 76%.
A proteção de suas florestas está diretamente relacionada à contribuição quilombola na crise climática. Segundo outro estudo recente da Conaq, essas florestas altamente protegidas têm densidade de carbono 48,7% maior do que o entorno dos seus territórios. E quando titulados, o aumento da densidade de carbono é de 12,4% (veja mais abaixo em NDC Quilombola).
"Existe, sim, uma resiliência, uma capacidade de preservação e de proteção dos laços entre as comunidades negras rurais e quilombolas. Quando a gente olha para o bioma amazônico, pensa que só tem indígena. No entanto, 64% da população que vive na Amazônia é negra", afirma Denildo Rodrigues de Moraes, conhecido como Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq.
Quando a gente olha para o bioma amazônico, pensa que só tem indígena. No entanto, 64% da população que vive na Amazônia é negra.
Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq
Sete dos nove estados da Amazônia Legal têm territórios quilombolas identificados no novo levantamento. As exceções são Acre e Roraima - embora a Conaq já registre a presença de quilombos no Acre.
O estudo destaca que a base de dados não deve ser vista como um produto final, mas como uma plataforma em constante atualização. Entre as próximas etapas previstas estão a investigação de lacunas geográficas e o mapeamento de comunidades em estados como Acre e Roraima, onde as bases oficiais ainda não trazem territórios quilombolas nas bases oficiais.
Os estados com mais territórios quilombolas são Maranhão, com 405, Pará, com 103, e Amapá, com 31. No Maranhão, eles ocupam 16,4% da extensão do estado; no Pará, 39,8%; e no Amapá, 4,1%. Esses três estados também se destacam pelo número de quilombos identificados: 1.553 no Maranhão, 538 no Pará e 179 no Amapá.
Amazônia Quilombola
A Amazônia Legal abriga 632 territórios quilombolas, áreas tradicionalmente ocupadas por quilombos, cujo perímetro foi definido a partir de procedimentos oficiais de identificação e delimitação territorial ou por processos de mapeamento autônomo realizados pelas próprias comunidades. Além disso, há mais 2.494 quilombos, representados por pontos no mapa, que são comunidades quilombolas que desenvolvem modos próprios de vida e organização, mantendo vínculos territoriais, culturais e identitários.
O levantamento é resultado de um estudo realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que pela primeira vez reúne diferentes bases de dados em uma única plataforma. Assim, passa a ser possível visualizar, em um só mapa, a presença quilombola na Amazônia.
Mais visibilidade: aumento de 280% no número de territórios quilombolas
Até então, havia 166 territórios quilombolas, segundo dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão federal responsável pela titulação.
Com o novo levantamento, foram identificados outros 466 territórios em diversas bases de dados, oficiais e não oficiais, ampliando o retrato da presença quilombola na Amazônia Legal.
Ao todo, são 632 territórios quilombolas delimitados - um aumento de 280% em relação ao dado do Incra.
Quilombos estão dentro e fora dos territórios
As 2.494 comunidades quilombolas podem estar dentro ou fora dos territórios delimitados e reconhecidos. Mais da metade (52,3%) dos quilombos está dentro dos territórios - delimitados por fontes oficiais ou por autodeclaração, enquanto os 47,7% restantes (1.190 quilombos) estão fora dessas áreas já delimitadas.
Mas mesmo os quilombos que estão localizados dentro dos territórios quilombolas não estão totalmente protegidos pela Constituição. Isso porque nem todos os territórios delimitados já terminaram seu processo de titulação - a realidade está bem longe disso.
Gargalo da titulação
Dos 632 territórios quilombolas já mapeados na Amazônia Legal, apenas 160 (25%) foram titulados.
O Maranhão é o estado que mais tem territórios quilombolas em toda a Amazônia Legal, mas também com maior entrave: dos 405 territórios quilombolas existentes, apenas 51 (12,6%) tiveram a titulação concluída, enquanto os outros 354 ainda se encontram em alguma etapa do processo de titulação. Ou seja, 87% dos territórios delimitados no Maranhão ainda não estão titulados.
A certificação
O Maranhão também é o estado com o maior número de quilombos da Amazônia Legal: são 1.553. Dentre eles, 772 comunidades quilombolas não têm certificação pela Fundação Cultural Palmares - requisito para iniciar o processo de titulação. Os outros 781 quilombos estão certificados.
Na Amazônia como um todo, o cenário é similar ao Maranhão.
Enquanto há 1.224 quilombos sem certificação, 1279 quilombos têm a certificação da Fundação Cultural Palmares.
Já em relação às áreas delimitadas, dos 632 territórios quilombolas já mapeados na Amazônia Legal, apenas 25% são territórios titulados. Os outros 75% são territórios em alguma outra fase do processo de titulação.
Segundo o estudo Amazônia Quilombola, a taxa de perda de florestas nesses territórios é maior em comparação com os territórios titulados, o que evidencia a importância do reconhecimento e proteção oficial para a preservação das florestas.
O processo de titulação dos territórios quilombolas envolve diferentes fases. A primeira etapa é a certificação da Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao
Ministério da Cultura, que atesta a autoatribuição quilombola por parte das comunidades. Ela é um documento administrativo, geralmente solicitado pela própria comunidade, que confirma a identidade dos territórios quilombolas e quilombos. Isso ocorre após um estudo da FCP que apresenta elementos culturais, históricos e sociais para comprovar que as famílias são remanescentes de grupos escravizados no Brasil.
Dentre os 632 territórios quilombolas, 344 são autodeclarados. Desses, 100 não têm certificação, e 244 são autodeclarados com certificação da FCP. Já entre os quilombos da Amazônia Legal: 49,1% - 1.224 de 1.270 - não possuem a certificação.
Com a certificação, o processo de titulação pode ser aberto no Incra - órgão que é responsável pelo processo em terras públicas federais ou que incidem em áreas de
particulares. A titulação é o que garante o direito à terra pelos quilombolas, com estabelecimento dos limites territoriais. O órgão tem a responsabilidade de iniciar um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), documento formado por um relatório antropológico, levantamento fundiário, delimitação da área e cadastro das famílias.
O RTID passa pelas mãos de ao menos nove órgãos, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Superintendência do Patrimônio da União (SPU), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O objetivo é entender se há sobreposição da área com outro patrimônio, terra indígena ou unidade de conservação.
Após o relatório ser analisado e não sofrer contestações de outros órgãos, o presidente do Incra pode publicar uma portaria de identificação do território quilombola no Diário Oficial da União e do estado. Com os limites definidos, o Incra realiza a demarcação física e emite o documento final que determina que a terra não pode ser dividida, vendida, loteada, arrendada ou penhorada. O território quilombola está, então, titulado. É o equivalente à demarcação de uma terra indígena - agora, é uma área da União, mas com usufruto dos quilombolas.
Dos 632 territórios quilombolas já mapeados, apenas 160 (25%) foram titulados. O Amazonas e o Mato Grosso são os únicos estados da Amazônia Legal que não possuem nenhum território titulado.
Dos 2.494 quilombos existentes, 52,3% estão localizados dentro de territórios quilombolas delimitados, seja por fontes oficiais ou por autodeclaração. Os outros 47,7% (1.190 quilombos) estão fora e não têm delimitação de seu território. Desses, 60,2% (717 quilombos) não possuem a certificação da FCP, requisito para iniciar o processo de titulação.
O levantamento mostra que essa ausência de reconhecimento formal tem impactos ambientais diretos. Territórios autodeclarados que ainda aguardam a certificação da FCP registraram uma taxa de perda florestal 400% maior que a dos territórios titulados, evidenciando a vulnerabilidade dessas áreas e a urgência em acelerar o processo de regularização.
O avanço da agropecuária é outro fator: houve um aumento de 1.248% na área ocupada pela agropecuária em territórios autodeclarados sem certificação. O estudo reforça, assim, a necessidade de avançar na titulação e de aprofundar as investigações sobre a ocupação dessas áreas por pessoas não quilombolas.
Demora no processo
Diferentemente das terras indígenas, que têm um prazo previsto de até cinco anos para a conclusão da demarcação, a Constituição Federal não estabelece um limite de tempo para a titulação dos territórios quilombolas.
A demora e os conflitos territoriais levam algumas comunidades a desistir do processo. Jamilly Silva, líder quilombola, conta que a certificação do quilombo urbano de São Benedito, no bairro Praça 14 de Janeiro, em Manaus, foi concluída rapidamente graças ao apoio de um procurador do Ministério Público Federal (MPF). Já a titulação, por outro lado, não avançou.
Em 2014, o local se tornou o primeiro quilombo urbano da região Norte e o segundo do Brasil, mas a comunidade decidiu não seguir no processo de titulação. Em assembleia, discutiram e tiveram receio justamente da fase da desapropriação. O local já estava tomado por uma ocupação mercantil, com lojas de carros, gráficas e supermercados. Alguns estabelecimentos eram dos próprios comunitários e vizinhos que não queriam perder o negócio.
Como isso já estava acontecendo, a comunidade considerou que seria prejudicial para as pessoas e abriu mão da delimitação do território na cidade. A desapropriação é um dos momentos mais difíceis no processo de titulação, porque pode envolver conflitos, disputas judiciais e ataques de ódio.
Além do quilombo de São Benedito, existem outros 58 quilombos no Amazonas, onde há a presença de quilombolas, mas em localidades que não foram reconhecidas como territórios ainda. Os oficialmente delimitados são: Território Quilombola Rio Andirá, localizado na área do município de Barreirinhas; o Território Quilombola do Tambor, no município de Novo Airão; e o Território Quilombola Sagrado Coração de Jesus de Lago de Serpa, em Itacoatiara. Nenhum dos territórios no Amazonas está titulado.
"As situações dos quilombos do Amazonas são levadas em reuniões com o Incra, mas a gente não vê avanço de jeito nenhum. Por isso, a maioria aqui nem quis a titulação. Tem horas que muda a chefia, é difícil, tem que explicar tudo de novo. Eles falam que não têm gente suficiente, porque precisa ter um antropólogo, outro técnico, não tem dinheiro, sempre as mesmas coisas", conta Jamilly.
Apesar dos pesares, Jamilly diz que o dia em que a comunidade começou a resgatar suas histórias para solicitar a certificação foi um dos mais importantes. Em uma reunião à sombra de uma mangueira, ouviram os anciãos contar como seus pais chegaram a Manaus e trouxeram, do Maranhão, a imagem de São Benedito - que antes pertencia a outros ancestrais escravizados vindos de Portugal. Esse processo migratório ajudou a transformar a Praça 14 no bairro negro de Manaus.
"Eu sempre me reconheci como negra. Minha avó e meus tios nunca deixavam a gente abaixar a cabeça. Tinha gente que tinha medo de passar aqui porque diziam que era o 'barranco da negada', o 'povo da confusão'. A gente nunca teve medo ou vergonha", conta.
Jamilly Silva, líder quilombola, arruma a imagem de São Benedito, que concede nome ao quilombo onde vive. Foto: Bruno Kelly/InfoAmazonia
Eu sempre me reconheci como negra. Minha avó e meus tios nunca deixavam a gente abaixar a cabeça. Tinha gente que tinha medo de passar aqui porque diziam que era o 'barranco da negada', o 'povo da confusão'. A gente nunca teve medo ou vergonha.
Jamilly Silva, líder quilombola
Em setembro do ano passado, pela primeira vez, o governo federal criou a Diretoria de Territórios Quilombolas no Incra, responsável por coordenar as atividades de identificação, reconhecimento, delimitação e titulação dos territórios. Mônica Borges, quilombola do território Itamatatiua, em Alcântara, no Maranhão, assumiu o cargo.
Em entrevista à InfoAmazonia, ela informou que os maiores problemas enfrentados dentro do órgão são orçamentários e jurídicos. O primeiro fator envolve, de acordo com ela, o bloqueio de R$ 15 bilhões na execução orçamentária do órgão. Para 2026, o Incra pede ao governo uma suplementação de R$ 150 milhões.
Além do orçamento, Mônica aponta outros dois entraves: o operacional e o estrutural. "O quantitativo de técnicos disponíveis para a política ainda hoje está aquém da demanda. Digo aquém porque, para que a resposta que o Incra entregue anualmente seja compatível com essa demanda histórica, seria preciso muito mais estrutura", diz a diretora.
Ela afirma que, desde que assumiu o cargo, o maior desafio da titulação tem sido a judicialização dos casos de desapropriação em territórios reconhecidos. Na última fase do processo, os técnicos precisam retirar pessoas que não sejam quilombolas das áreas, o que costuma gerar disputas judiciais.
Esses processos surgem quando invasores que ocupam o local de forma irregular contestam a titulação. O momento também pode provocar conflitos diretos contra os quilombolas e implicar custos elevados para o governo, que precisa indenizar famílias quando há comprovação de aquisição legal dos terrenos. "Este ano, a gente já conseguiu executar mais de R$ 70 milhões em ordens de indenização", disse.
NDC quilombola
Com o novo mapa em mãos, a Conaq pretende apresentar os dados ao governo federal e ao Incra durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30). Além do levantamento realizado em parceria com o ISA, a organização também levará o documento "NDC dos Quilombos do Brasil".
Um dos objetivos é defender que a titulação de territórios quilombolas seja incluída na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil - a meta oficial para reduzir as emissões de gases de efeito estufa - e também no Plano Clima Nacional
É a política que orienta as ações do Brasil para enfrentar a crise climática. Ele define metas e estratégias para reduzir emissões de gases de efeito estufa e adaptar o país aos impactos do clima. Também serve como base para implementar a NDC brasileira e cumprir o Acordo de Paris.
, como política de conservação da floresta. O país já enviou sua NDC, mas ainda pode acrescentar anexos metodológicos a qualquer momento, detalhando as medidas para alcançar a redução de 59% a 67% até 2035. É nessa brecha que as organizações quilombolas pretendem atuar.
A Conaq sugere 43 propostas que poderiam estar na NDC brasileira e no Plano Clima. Entre elas: acelerar o ordenamento territorial e fundiário; acelerar o processo de transição energética justa, com investimento em descarbonização da matriz energética e incentivos para o sistema agrícola quilombola e tradicional; elaborar e revisar planos de adaptação às mudanças climáticas.
A organização também reivindica espaços nos debates oficiais da COP e lembra que a Carta da Presidência Brasileira da COP30 não fala sobre racismo ambiental nem sobre a participação dos afrodescendentes nas discussões climáticas. Por isso, exige que, assim como a Constituição aplicou uma data-limite para a demarcação das terras indígenas, o Plano Clima estabeleça a titulação de todos os territórios delimitados no prazo de até cinco anos.
A Conaq explica que, uma das principais apostas do Brasil para a conferência, o Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), também não menciona diretamente os povos quilombolas. A proposta é de que 20% dos recursos sejam destinados diretamente aos povos indígenas. Na NDC, eles pedem a inclusão no texto e que o valor aumente em 40%.
O que os quilombolas propõem na COP30
- Inclusão da titulação dos territórios quilombolas na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil e no Plano Clima Nacional, como política de conservação da floresta.
- Aceleração do ordenamento territorial e fundiário, garantindo segurança jurídica aos territórios quilombolas.
- Promoção de uma transição energética justa, com investimentos na descarbonização da matriz energética e incentivos ao sistema agrícola quilombola e tradicional.
- Elaboração e revisão dos planos de adaptação às mudanças climáticas, considerando as especificidades dos territórios quilombolas.
- Participação dos quilombolas nos debates oficiais da COP, com reconhecimento do racismo ambiental e da contribuição dos povos afrodescendentes nas discussões climáticas.
- Estabelecimento de um prazo máximo de cinco anos para a titulação de todos os territórios quilombolas já delimitados, assim como a Constituição já prevê para povos indígenas.
- Inclusão explícita dos povos quilombolas no Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), com aumento de 20% para 40% no valor destinado originalmente apenas a povos tradicionais.
"Essa COP, que está acontecendo no Brasil, deveria estar discutindo sobre o eixo central, que é o racismo ambiental, sendo o Brasil um país em que mais de 60% da população é negra, e são essas as pessoas que mais sofrem com a crise climática e ambiental", diz Biko Rodrigues.
A luta quilombola nas discussões sobre clima no mundo já trouxe resultados. Durante a 16o Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP16), realizada em Cali (Colômbia) em 2024, eles conquistaram um feito inédito: o documento final passou a citar explicitamente os afrodescendentes. Foram incluídos no texto, ao lado de povos indígenas e comunidades locais, como um grupo fundamental para a conservação da natureza.
Oviedo sugere que a inclusão da titulação na NDC e no Plano Clima seja a primeira medida emergencial para resolver a questão quilombola no Brasil. Depois, propõe que o governo promova seminários para que os dados sejam debatidos em conjunto com a Conaq. "Para pensar em como eles podem utilizar essa base de dados para a implementação das suas políticas, ou seja, como é que a gente pode a partir dessas evidências incentivar o governo a ter uma base de dados única sobre territórios quilombolas, como a Funai tem", afirma.
O pesquisador do ISA explicou à InfoAmazonia que esta é apenas uma etapa do projeto. O objetivo inicial é dar visibilidade a territórios que ainda não estão mapeados e reconhecidos na base federal, contribuindo para que as políticas públicas alcancem comunidades que hoje não aparecem nos mapas do país. O processo de refinamento dos dados deve continuar.
Esta reportagem faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia.
Texto: Jullie Pereira
Ilustrações: Utópika Estúdio
Fotografia: Bruno Kelly
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Direção editorial: Juliana Mori
https://infoamazonia.org/2025/10/30/entre-a-floresta-e-o-garimpo-quilombolas-de-mato-grosso-resistem-sem-terras-tituladas/
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