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Violência sexual, clima e floresta

19/11/2025

Autor: MIKLOS, Manoela

Fonte: FSP - https://www1.folha.uol.com.br/



Violência sexual, clima e floresta
Crimes que atingem meninas e mulheres amazônidas passam ao largo da COP30 e seguem desafio que ninguém quer encarar
Região enfrenta alto índice de delitos e casamentos infantis, com raras redes de apoio

19/11/2025

Manoela Miklos
Mestre e doutora em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP; pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública)

Usamos diversos termos para descrever o impacto da soma de circunstâncias infelizes e obstáculos sociais de ordem estrutural na vida de meninas e mulheres. O mais empregado é o da vulnerabilidade. Para a ONU, há três tipos de vulnerabilidade: a socioeconômica, a imposta a grupos específicos e a estrutural.

A vulnerabilidade socioeconômica diz respeito à pobreza e à pobreza extrema: afeta milhões de pessoas globalmente e é exacerbada por episódios trágicos como guerras, crises econômicas e eventos climáticos extremos. A vulnerabilidade imposta a grupos específicos designa a condição de subalternidade que afeta idosos, pessoas com deficiência, mulheres e outras demográficas que enfrentam exclusão social, discriminação e violência por serem quem são.

Por fim, a vulnerabilidade estrutural se refere aos que sofrem com a falta de acesso a serviços básicos, proteção social, saúde e justiça. Ao abordar esse tipo de vulnerabilidade, a ONU está falando de Estados onde milhões vivem sem acesso ao básico: água, saneamento e eletricidade. Onde muitos carecem de serviços financeiros e tecnologia, que permitem informação e comunicação. Estados que reiteradamente pontuam mal no Índice de Vulnerabilidade Multidimensional da ONU.

Olhar para a realidade de meninas e mulheres na Amazônia é, muitas vezes, olhar para pessoas que sofrem com todos os tipos de vulnerabilidade mencionados. É possível, portanto, argumentar que são, com frequência, pessoas que têm seus direitos sistematicamente negligenciados e cujas condições transbordam o que chamamos de vulnerabilidade.

Pensar a violência contra a mulher na Amazônia exige reconhecer a diversidade e a complexidade do território. A região é composta por múltiplas Amazônias -urbana, rural, ribeirinha, indígena, de fronteira, de garimpo, de agronegócio-- onde se cruzam dinâmicas econômicas, ambientais, culturais e criminais. Mas em todas as Amazônias podemos encontrar meninas e mulheres cuja condição merece o emprego de um novo termo: muitas vivem em hipervulnerabilidade. Isso fica bem claro quando olhamos para os dados sobre violência sexual na região.

De acordo com levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dos estados da Federação com maior taxa de estupro e estupro de vúlneráveis, o top 3 são da região amazónica. Dos 10 municípios brasileiros com 100 mil habitantes ou mais com as maiores taxas de estupro e estupro de vúlneráveis, 9 são da região amazônica. Em 2024, 586 mulheres foram assassinadas na Amazônia Legal, o que representa uma taxa 21,8% superior à média nacional. No mesmo ano, foram registrados 13.312 casos de estupro e estupro de vulneráveis na região, o que corresponde a uma taxa de 90,4 estupros por 100 mil mulheres -número 36,8% maior do que a média nacional. E mais: entre 2023 e 2024, o cenário piorou, com um aumento de 4,3% nos registros de estupro e estupro de vulnerável na Amazônia Legal.

Os números são estarrecedores, mas a situação ainda é mais chocante quando olhamos para as meninas e mulheres que habitam regiões de fronteira. Os municípios da Amazônia em faixa de fronteira apresentaram uma taxa de estupros e estupros de vulnerável de 163,8 a cada 100 mil mulheres, número que excede muitíssimo a média nacional, de aproximadamente 40 para cada 100 mil habitantes. A taxa é 68,7% superior que a dos demais municípios da região amazônica.

Muitos fatores contribuem para essa realidade trágica. A região é marcada por bolsões de machismo extremo -modo de ver o mundo que sustenta práticas ilegais e violentas como o casamento infantil. Meninas com 14 anos já são, em muitos territórios, consideradas por seus pais em idade de casar-se. Além disso, a região é repleta de desertos de acolhimento. Não há rede de apoio, equipamentos dedicados ao acolhimento ou equipes preparadas à disposição das vítimas.

Devido à geografia amazônica, muitas meninas e mulheres vivem em territórios de difícil acesso e passam boa parte do ano isoladas. Tal isolamento faz com que essas mulheres não tenham acesso à Justiça e a Justiça não tenha acesso a essas mulheres. Esse quadro fica ainda mais sinistro com a crescente presença do crime organizado em tais territórios. Com ela, aprofundam-se as dinâmicas violentas já citadas e somam-se a elas novas dinâmicas que vitimizam meninas e mulheres.

Em tempos de COP30, quase nada será dito sobre a hipervulnerabilidade das amazônidas. E, pior, quase nada será dito sobre seus futuros sombrios, dado que estudos publicados em meios relevantes, como a revista científica Lancet, concluem que o aquecimento do planeta impacta negativamente os índices de violência de gênero.

A ausência desse debate em Belém deve nos levar a perguntas desconfortáveis: é assim que pretendemos cuidar da Amazônia? Virando as costas para as suas meninas e mulheres hipervulneráveis? Ignorando os desertos de acolhimento que existem e persistem em meio a floresta mais rica do mundo?

Em tempos de COP30, temos que pensar nas amazônidas -sob pena do termo justiça em "justiça ambiental" ser apenas um significante vazio.

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/11/violencia-sexual-clima-e-floresta.shtml
 

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