De Povos Indígenas no Brasil
Notícias
Bem perto da pólvora
21/07/2004
Autor: LÍRIO, Sérgio
Fonte: Carta Capital
Bem perto da pólvora
Desde os conflitos que provocaram a morte de 29 garimpeiros, em abril, a reserva Roosevelt, em Rondônia, entrou no foco da Polícia Federal. A Operação Mamoré, em andamento, reúne 60 agentes e 30 funcionários da Funai na tentativa de impedir a invasão e o contrabando de diamantes nas terras pertencentes aos índios cintas-largas.
A Mamoré é a parte visível das ações da PF na região. Mas está longe de ser a única. Há pelo menos dois meses, um grupo de policiais investiga formalmente os motivos que levaram o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), ligado ao Ministério de Minas e Energia, a conceder, menos de um mês após os conflitos, alvará de pesquisa à Mineradora Paraguaçu.
O alvará, publicado em 5 de maio, autoriza a mineradora a pesquisar, por três anos, prorrogável por mais dois, a existência de ouro em uma área que se estende por todo o entorno das terras indígenas. A Paraguaçu, como qualquer outra empresa, está proibida, no papel, de explorar a reserva, mas seus pesquisadores poderão transitar com liberdade bem perto dos limites da propriedade dos cintas-largas.
Além disso, o ouro está longe de ser o principal interesse da companhia. Em dezembro de 2003, os sócios brasileiros da Paraguaçu venderam o controle da empresa para a canadense Vaaldiam Resources, especializada na extração de diamantes. Em vários documentos divulgados em seu site, a mineradora não esconde o que realmente procura no terreno em torno da reserva, ao mesmo tempo em que convoca sócios para a empreitada.
Num dos textos disponíveis, os canadenses descrevem: "A Roosevelt e áreas afluentes do rio Lajes produzem aproximadamente 100 mil quilates de diamantes por mês no valor de US$ 20 milhões". Em tempo: um quilate corresponde a 205 miligramas.
Os documentos serviram para estimular potenciais investidores a financiar a exploração de diamantes perto dos limites das terras dos cintas-largas. Em fevereiro, quando deu entrada ao pedido de alvará, a Vaaldiam ofereceu ao público um lote de ações no valor de 400 mil dólares canadenses (cerca de R$ 1 milhão). O dinheiro, diz a mineradora, seria usado no "programa de exploração de diamantes na propriedade de Pimenta Bueno".
As investigações da PF foram estimuladas pelo temor de que uma permissão, mesmo de pesquisa, fomente ou facilite a exploração ilegal de gemas em uma área conflituosa. Como o entorno da reserva Roosevelt é pouco explorado, não se sabe se existem pedras preciosas fora da propriedade indígena. Na verdade, desconfia-se que diamantes mesmo, só no território controlado pelos cintas-largas.
Para aumentar as desconfianças, há o fato de o contrabando de diamantes ter se tornado um problema de proporções nada desprezíveis e de difícil controle. Estima-se que 92% da extração e comercialização de diamantes no Brasil acontece por vias ilegais. Em 2003, pelas mesmas estimativas, teriam sido retirados de forma clandestina 650 mil quilates da reserva Roosevelt. Levando-se em conta que, no exterior, um quilate custa cerca de US$ 150, só o contrabando de diamantes roubados das terras dos cintas-largas representaria uma evasão de divisas de US$ 100 milhões.
No fim de 2003, uma operação conjunta do Ministério Público Federal e da PF fechou uma bolsa de diamantes ilegal que funcionava na cidade de Juína, no Mato Grosso. Lá, em plena luz do dia, os contrabandistas, vindos de várias partes do mundo, negociavam. Como não se conhece a existência de lavras autorizadas nem ainda se soube de gemas que brotem de árvores, não é difícil supor que a bolsa negociava pedras roubadas da reserva Roosevelt.
CartaCapital tentou, insistentemente, por duas semanas, falar com os diretores da Paraguaçu e da Vaaldiam no Brasil. Ninguém da empresa ligou de volta.
O diretor-geral do DNPM, Miguel Nery, disse não ver motivos para a PF se preocupar com o alvará. "Se o temor é que se use a permissão para esquentar uma suposta extração ilegal de diamantes, digo que não há a mínima possibilidade", afirma Nery. "O departamento autorizou a pesquisa, mas não fornecemos nenhuma guia de outorga. Se uma determinada empresa decide transgredir a lei, não é e nem será por causa da autorização. Ela pode fazer isso com ou sem alvará."
Segundo o diretor do DNPM, só uma guia de outorga permite a extração de minerais, mesmo em fase de pesquisa. Mas desde os conflitos, o departamento suspendeu a concessão dessas guias para projetos na região. Caso sejam encontrados diamantes em poder de funcionários da mineradora ou de qualquer outra empresa, diz, o alvará não lhes dará nenhuma proteção. "Seria uma ilegalidade e os responsáveis estariam sujeitos às penas da lei", afirma.
Para Nery, o problema do contrabando não está nas empresas autorizadas a explorar a região: "Conceder alvarás a companhias devidamente registradas no DNPM é uma maneira de dar legalidade à pesquisa e exploração. É melhor do que tentar restringir pura e simplesmente, o que só iria estimular a clandestinidade".
O fato de a mineradora ter solicitado um alvará para pesquisa de ouro quando seu principal interesse são os diamantes também não é, de acordo com Nery, motivo para desconfianças: "A legislação permite. Para não limitar a área de pesquisa, o que acontece no caso de algumas pedras preciosas, muitas vezes a empresa pede autorização para procurar ouro e, no decorrer do trabalho, informa ter encontrado diamantes. É normal".
Apesar dos inúmeros debates no Congresso e no Executivo desde o assassinato dos garimpeiros, não há um consenso sobre a melhor maneira de lidar com as riquezas naturais encontradas em terras indígenas - nem sobre os riscos de autorizar explorações no entorno. O País acumula casos em que reservas acabaram invadidas por garimpeiros depois de uma empresa ter sido autorizada a trabalhar em áreas vizinhas.
Há quem defenda, para o caso de exploração mineral, a adoção de modelos bem-sucedidos no Canadá e na Austrália. Nesses países, o governo, em acordo com as tribos, autoriza empresas privadas a trabalhar nas terras. Em troca, as companhias pagam royalties aos donos da terra.
Esse modelo encontra, porém, resistências na Funai. A justificativa é que muitos grupos indígenas no Brasil travaram contato com homens brancos há menos de 15 anos, enquanto essa relação em outros países acontece há pelo menos meio século. Teme-se uma degeneração cultural dos nativos.
Para quem defende esse ponto de vista, a melhor alternativa seria a criação de uma empresa estatal para explorar as riquezas naturais. O governador de Rondônia, Ivo Cassol, chegou a sugerir a formação de uma companhia estadual para explorar a reserva Roosevelt. Pela proposta, os cintas-largas receberiam 20% das vendas de diamantes.
Enquanto Brasília discute, a reserva Roosevelt continua a ser uma região de potencial conflito entre índios e garimpeiros. A defesa das fronteiras é feita, hoje, por 90 policiais e funcionários da Funai divididos em quatro postos de fiscalização e três barreiras. O governo prometeu liberar R$ 3 milhões para a construção de outros quatro postos, mas até agora não deu sinal de quando o dinheiro estará disponível.
Segundo relatos de quem teve contato recente com os índios, os cintas-largas estão perdendo a paciência. "Eles reclamam que já receberam a visita de várias comissões, mas não viram resultados", diz Apoena Meireles, um dos representantes da Funai nas negociações com os cintas-largas. "Eles deram um ultimato. Não querem receber mais ninguém, querem uma solução."
Carta Capital, 21/07/2004,
Desde os conflitos que provocaram a morte de 29 garimpeiros, em abril, a reserva Roosevelt, em Rondônia, entrou no foco da Polícia Federal. A Operação Mamoré, em andamento, reúne 60 agentes e 30 funcionários da Funai na tentativa de impedir a invasão e o contrabando de diamantes nas terras pertencentes aos índios cintas-largas.
A Mamoré é a parte visível das ações da PF na região. Mas está longe de ser a única. Há pelo menos dois meses, um grupo de policiais investiga formalmente os motivos que levaram o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), ligado ao Ministério de Minas e Energia, a conceder, menos de um mês após os conflitos, alvará de pesquisa à Mineradora Paraguaçu.
O alvará, publicado em 5 de maio, autoriza a mineradora a pesquisar, por três anos, prorrogável por mais dois, a existência de ouro em uma área que se estende por todo o entorno das terras indígenas. A Paraguaçu, como qualquer outra empresa, está proibida, no papel, de explorar a reserva, mas seus pesquisadores poderão transitar com liberdade bem perto dos limites da propriedade dos cintas-largas.
Além disso, o ouro está longe de ser o principal interesse da companhia. Em dezembro de 2003, os sócios brasileiros da Paraguaçu venderam o controle da empresa para a canadense Vaaldiam Resources, especializada na extração de diamantes. Em vários documentos divulgados em seu site, a mineradora não esconde o que realmente procura no terreno em torno da reserva, ao mesmo tempo em que convoca sócios para a empreitada.
Num dos textos disponíveis, os canadenses descrevem: "A Roosevelt e áreas afluentes do rio Lajes produzem aproximadamente 100 mil quilates de diamantes por mês no valor de US$ 20 milhões". Em tempo: um quilate corresponde a 205 miligramas.
Os documentos serviram para estimular potenciais investidores a financiar a exploração de diamantes perto dos limites das terras dos cintas-largas. Em fevereiro, quando deu entrada ao pedido de alvará, a Vaaldiam ofereceu ao público um lote de ações no valor de 400 mil dólares canadenses (cerca de R$ 1 milhão). O dinheiro, diz a mineradora, seria usado no "programa de exploração de diamantes na propriedade de Pimenta Bueno".
As investigações da PF foram estimuladas pelo temor de que uma permissão, mesmo de pesquisa, fomente ou facilite a exploração ilegal de gemas em uma área conflituosa. Como o entorno da reserva Roosevelt é pouco explorado, não se sabe se existem pedras preciosas fora da propriedade indígena. Na verdade, desconfia-se que diamantes mesmo, só no território controlado pelos cintas-largas.
Para aumentar as desconfianças, há o fato de o contrabando de diamantes ter se tornado um problema de proporções nada desprezíveis e de difícil controle. Estima-se que 92% da extração e comercialização de diamantes no Brasil acontece por vias ilegais. Em 2003, pelas mesmas estimativas, teriam sido retirados de forma clandestina 650 mil quilates da reserva Roosevelt. Levando-se em conta que, no exterior, um quilate custa cerca de US$ 150, só o contrabando de diamantes roubados das terras dos cintas-largas representaria uma evasão de divisas de US$ 100 milhões.
No fim de 2003, uma operação conjunta do Ministério Público Federal e da PF fechou uma bolsa de diamantes ilegal que funcionava na cidade de Juína, no Mato Grosso. Lá, em plena luz do dia, os contrabandistas, vindos de várias partes do mundo, negociavam. Como não se conhece a existência de lavras autorizadas nem ainda se soube de gemas que brotem de árvores, não é difícil supor que a bolsa negociava pedras roubadas da reserva Roosevelt.
CartaCapital tentou, insistentemente, por duas semanas, falar com os diretores da Paraguaçu e da Vaaldiam no Brasil. Ninguém da empresa ligou de volta.
O diretor-geral do DNPM, Miguel Nery, disse não ver motivos para a PF se preocupar com o alvará. "Se o temor é que se use a permissão para esquentar uma suposta extração ilegal de diamantes, digo que não há a mínima possibilidade", afirma Nery. "O departamento autorizou a pesquisa, mas não fornecemos nenhuma guia de outorga. Se uma determinada empresa decide transgredir a lei, não é e nem será por causa da autorização. Ela pode fazer isso com ou sem alvará."
Segundo o diretor do DNPM, só uma guia de outorga permite a extração de minerais, mesmo em fase de pesquisa. Mas desde os conflitos, o departamento suspendeu a concessão dessas guias para projetos na região. Caso sejam encontrados diamantes em poder de funcionários da mineradora ou de qualquer outra empresa, diz, o alvará não lhes dará nenhuma proteção. "Seria uma ilegalidade e os responsáveis estariam sujeitos às penas da lei", afirma.
Para Nery, o problema do contrabando não está nas empresas autorizadas a explorar a região: "Conceder alvarás a companhias devidamente registradas no DNPM é uma maneira de dar legalidade à pesquisa e exploração. É melhor do que tentar restringir pura e simplesmente, o que só iria estimular a clandestinidade".
O fato de a mineradora ter solicitado um alvará para pesquisa de ouro quando seu principal interesse são os diamantes também não é, de acordo com Nery, motivo para desconfianças: "A legislação permite. Para não limitar a área de pesquisa, o que acontece no caso de algumas pedras preciosas, muitas vezes a empresa pede autorização para procurar ouro e, no decorrer do trabalho, informa ter encontrado diamantes. É normal".
Apesar dos inúmeros debates no Congresso e no Executivo desde o assassinato dos garimpeiros, não há um consenso sobre a melhor maneira de lidar com as riquezas naturais encontradas em terras indígenas - nem sobre os riscos de autorizar explorações no entorno. O País acumula casos em que reservas acabaram invadidas por garimpeiros depois de uma empresa ter sido autorizada a trabalhar em áreas vizinhas.
Há quem defenda, para o caso de exploração mineral, a adoção de modelos bem-sucedidos no Canadá e na Austrália. Nesses países, o governo, em acordo com as tribos, autoriza empresas privadas a trabalhar nas terras. Em troca, as companhias pagam royalties aos donos da terra.
Esse modelo encontra, porém, resistências na Funai. A justificativa é que muitos grupos indígenas no Brasil travaram contato com homens brancos há menos de 15 anos, enquanto essa relação em outros países acontece há pelo menos meio século. Teme-se uma degeneração cultural dos nativos.
Para quem defende esse ponto de vista, a melhor alternativa seria a criação de uma empresa estatal para explorar as riquezas naturais. O governador de Rondônia, Ivo Cassol, chegou a sugerir a formação de uma companhia estadual para explorar a reserva Roosevelt. Pela proposta, os cintas-largas receberiam 20% das vendas de diamantes.
Enquanto Brasília discute, a reserva Roosevelt continua a ser uma região de potencial conflito entre índios e garimpeiros. A defesa das fronteiras é feita, hoje, por 90 policiais e funcionários da Funai divididos em quatro postos de fiscalização e três barreiras. O governo prometeu liberar R$ 3 milhões para a construção de outros quatro postos, mas até agora não deu sinal de quando o dinheiro estará disponível.
Segundo relatos de quem teve contato recente com os índios, os cintas-largas estão perdendo a paciência. "Eles reclamam que já receberam a visita de várias comissões, mas não viram resultados", diz Apoena Meireles, um dos representantes da Funai nas negociações com os cintas-largas. "Eles deram um ultimato. Não querem receber mais ninguém, querem uma solução."
Carta Capital, 21/07/2004,
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