De Povos Indígenas no Brasil
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Festa apresenta o milésimo guerreiro: foi a festa mais importante na história recente da tribo, segundo o cacique Mario Parwe. Agora a nação já tem 1.014 indivíduos
08/12/2003
Fonte: A Crítica, Capa e Cidades, p. A1 e A6
Estamos vivos
Uaimiri-Atroari fazem a festa da superação. Eles, que em 1987 eram apenas 374, comemoram agora o nascimento de Iawyraky, o milésimo índio de etnia
Orlando Farias
Um pouco além do emblemático rio Alalau e em torno de uma aldeia gigante construída especialmente para abrigar todos os índios da tribo, os uaimiri-atroari realizaram ontem a festa mais esperada da floresta: o maryba (pronuncia-se marubá) . Eles comemoraram o nascimento de Iawyraky, o milésimo índio da nação, filho do casal Anapideme e Ketamy.
Foi a festa mais importante na história recente da tribo, admitiu o cacique uaimiri-atroari, Mario Parwe, 48, da nova linhagem dos guerreiros do Alalau. "Fiquei muito alegre porque meu povo não vai mais morrer", disse Tomaz Temyhe, um dos tiamurús (velhos) mais respeitados da tribo, do alto de seus prováveis 65 anos.
Basta dizer que os membros da tribo começaram a dançar, cantar e se pintar como se fossem para a guerra no dia 26 de setembro, quando lawyraky nasceu na aldeia Iawara, área de. influência da BR-174.
0 "milésimo", como muitos convidados referiram-se carinhosamente a Iawyraky, nasceu na aldeia onde foi construída a mega-habitação para comemorar o acontecimento. Os índios foram alertados para o fato de que a marca era uma espécie de divisor de águas entre o encolhimento populacional da tribo e seu renascimento revigorado - cumprindo uma taxa de crescimento de 6,06%, duas vezes maior do que a da própria média brasileira.
E há mesmo um forte apelo de renascimento, conta o branco mais adorado por eles, o indigenista José Porfírio de Carvalho, que coordenou uma frente de atração aos uaimiri na década de setenta e posteriormente foi chamado para salvá-los da extinção.
Em 1987, existiam apenas 374 índios. Naquele momento, a tribo avançava rapidamente para a extinção, apresentando uma redução progressiva estimada então em 20%. Com a implantação do Programa Uaimiri-Atroari (custeado com recursos indenizatórios da Eletronorte), a população teve condições de afastar de seu caminho doenças oportunistas e invasores. A reserva foi demarcada e o número de uaimiri-atroaris voltou a crescer.
Emoção
Quase rendendo às lagrimas, José Porfírio de Carvalho disse ontem que aquela festa foi a mais esperada de todas. "Hoje eu posso afirmar com toda a alegria que os guerreiros uaimiri-atroari estão novamente ativos", destaca Porfírio.
Os uaimiri-atroari ainda são muito desconfiados com os não-índios. Daí pouquíssimas pessoas, todas elas da mais estrita confiança da etnia, terem sido convidadas para a festa. "É muito recente o massacre sofrido por esta tribo na mão de determinados homens brancos", diz Marcílio Cavalcante, coordenador atual do Programa Uaimiri-Atroari.
"Temos pouca confiança nos brancos e até em seus governos", resume o cacique Mário Parwe, estabelecendo várias exceções. Ele aponta um funcionário do programa que acompanha a entrevista - Itamar de Souza. "Esse é nosso motorista te. Ele é de nossa confiança."
A desconfiança está presente também nas crianças. Algumas delas não resistem em chamar os visitantes de Kaminja (pronuncia-se caminhá), que é quase uma palavra pejorativa, tanto é a suspeita natural que eles nutrem pelos não-índios.
Parentes vêm de todo canto
A festa grandiosa precisou ser planejada para que todos os agora 1.014 índios uaimiri-atroari (até ontem) pudessem se reunir em volta da grande aldeia. Foi necessário o aluguel de dois barcos para transportar os "parentes" das aldeias mais distantes, no rio Negro e Camanau. A grande maioria dos índios chegou trilhando caminhos seculares que mantém dentro da floresta e que apenas eles conhecem.
Para alimentar tanta gente, sacrificaram 16 cabeças de gado (eles são donos de um rebanho estimado em 500 reses).
Se ainda há quem os considere membros de uma civilização inferior, os kinja (quinhá) como chamam a si próprios, deixaram boquiabertos os ditos "civilizados". As filas são obedecidas rigorosamente e os mais velhos são respeitados com imensa devoção.
Uma cena das crianças na festa demonstra a boa educação dos pequenos uaimiri. Eles rodearam uma menina de seis anos provavelmente pela curiosidade de sua cor branca (os uaimiri são de cor morena bem definida), filha de um dos convidados, e conversaram fluentemente com ela, como se os dois lados se conhecessem há muito tempo.
Apesar de ser um marco e estar predestinado a ter sempre lugar de destaque na grande imprensa - Iawyraky, o milésimo guerreiro uaimiri, já é um membro que se incorporou ao cenário comum da tribo. Provavelmente não exista uma nação no mundo em que a maioria esmagadora de seus membros seja formada por crianças e adolescentes. A idade média do povo uaimiri-atroari é de apenas 16 anos.
Alegria dá o tom
Líder legendário dos uaimiri, Tomás Temyhe, fala até hoje menos Português do que aparentemente falava há 10 anos. Para ser entrevistado até por quem o conhece, precisou de tradutor.
Um palavra, porém, chamou a atenção de todos: "É uma festa prá dizer da nossa alegria e prá dizer que kinja (quinhá) está vivo". A frase é dita para fazer coro a uma das mais exuberantes danças encenadas no dia de ontem - a das meninas moças, que no maryba (marubá) cantam canções de guerra e de paz - tudo rigorosamente dentro da cultura e da língua deles, sem emprestar nada de ninguém.
"Estamos continuando do jeito que nós queremos ser", vociferava na festa .o cacique Mário Parwe, enquanto todos os uaimiri davam um abraço em torno da aldeia construída para comemorar o renascimento do povo. (OF)
Estrada quase exterminou etnia
Além de ter sido a primeira vez que a imprensa efetivamente foi convidada para conhecer o Maryba, que era festa proibida a não-índios, os líderes da tribo revelaram um segredo no dia de ontem que vai reescrever a história do povo do Alalaú.
Sem que sequer os coordenadores do Programa Uaimiri-Atroari soubessem, o cacique Mário Parwe informou que a população da tribo era na verdade aproximadamente 15 mil índios antes da construção da estrada BR-174.
"Não, Mário, consta que a população era de 5 a 6 mil índios", retrucou o coordenador do programa, Marcílio Albuquerque. Mário Parwe foi inflexível: "Os nossos cinco tiamurús garantem que nosso povo tinha 15 mil".
Os dados agora revelados podem redimensionar as estatísticas dos massacres contra os índios durante as várias frentes de expansão econômica em sua reserva.
Um outro fato que obrigatoriamente saiu ontem da festa e que merece ser incorporado pelo menos como registro à existência do Amazonas é a cultura viva dos uaimiri. Poucas festas em tribos brasileiras tem tantos instrumentos, cantos e organização cênica como a realizada ontem, na qual participam todos, sem uma única exceção.
A Crítica, 08/12/2003, Capa e Cidades, p. A1 e A6
Uaimiri-Atroari fazem a festa da superação. Eles, que em 1987 eram apenas 374, comemoram agora o nascimento de Iawyraky, o milésimo índio de etnia
Orlando Farias
Um pouco além do emblemático rio Alalau e em torno de uma aldeia gigante construída especialmente para abrigar todos os índios da tribo, os uaimiri-atroari realizaram ontem a festa mais esperada da floresta: o maryba (pronuncia-se marubá) . Eles comemoraram o nascimento de Iawyraky, o milésimo índio da nação, filho do casal Anapideme e Ketamy.
Foi a festa mais importante na história recente da tribo, admitiu o cacique uaimiri-atroari, Mario Parwe, 48, da nova linhagem dos guerreiros do Alalau. "Fiquei muito alegre porque meu povo não vai mais morrer", disse Tomaz Temyhe, um dos tiamurús (velhos) mais respeitados da tribo, do alto de seus prováveis 65 anos.
Basta dizer que os membros da tribo começaram a dançar, cantar e se pintar como se fossem para a guerra no dia 26 de setembro, quando lawyraky nasceu na aldeia Iawara, área de. influência da BR-174.
0 "milésimo", como muitos convidados referiram-se carinhosamente a Iawyraky, nasceu na aldeia onde foi construída a mega-habitação para comemorar o acontecimento. Os índios foram alertados para o fato de que a marca era uma espécie de divisor de águas entre o encolhimento populacional da tribo e seu renascimento revigorado - cumprindo uma taxa de crescimento de 6,06%, duas vezes maior do que a da própria média brasileira.
E há mesmo um forte apelo de renascimento, conta o branco mais adorado por eles, o indigenista José Porfírio de Carvalho, que coordenou uma frente de atração aos uaimiri na década de setenta e posteriormente foi chamado para salvá-los da extinção.
Em 1987, existiam apenas 374 índios. Naquele momento, a tribo avançava rapidamente para a extinção, apresentando uma redução progressiva estimada então em 20%. Com a implantação do Programa Uaimiri-Atroari (custeado com recursos indenizatórios da Eletronorte), a população teve condições de afastar de seu caminho doenças oportunistas e invasores. A reserva foi demarcada e o número de uaimiri-atroaris voltou a crescer.
Emoção
Quase rendendo às lagrimas, José Porfírio de Carvalho disse ontem que aquela festa foi a mais esperada de todas. "Hoje eu posso afirmar com toda a alegria que os guerreiros uaimiri-atroari estão novamente ativos", destaca Porfírio.
Os uaimiri-atroari ainda são muito desconfiados com os não-índios. Daí pouquíssimas pessoas, todas elas da mais estrita confiança da etnia, terem sido convidadas para a festa. "É muito recente o massacre sofrido por esta tribo na mão de determinados homens brancos", diz Marcílio Cavalcante, coordenador atual do Programa Uaimiri-Atroari.
"Temos pouca confiança nos brancos e até em seus governos", resume o cacique Mário Parwe, estabelecendo várias exceções. Ele aponta um funcionário do programa que acompanha a entrevista - Itamar de Souza. "Esse é nosso motorista te. Ele é de nossa confiança."
A desconfiança está presente também nas crianças. Algumas delas não resistem em chamar os visitantes de Kaminja (pronuncia-se caminhá), que é quase uma palavra pejorativa, tanto é a suspeita natural que eles nutrem pelos não-índios.
Parentes vêm de todo canto
A festa grandiosa precisou ser planejada para que todos os agora 1.014 índios uaimiri-atroari (até ontem) pudessem se reunir em volta da grande aldeia. Foi necessário o aluguel de dois barcos para transportar os "parentes" das aldeias mais distantes, no rio Negro e Camanau. A grande maioria dos índios chegou trilhando caminhos seculares que mantém dentro da floresta e que apenas eles conhecem.
Para alimentar tanta gente, sacrificaram 16 cabeças de gado (eles são donos de um rebanho estimado em 500 reses).
Se ainda há quem os considere membros de uma civilização inferior, os kinja (quinhá) como chamam a si próprios, deixaram boquiabertos os ditos "civilizados". As filas são obedecidas rigorosamente e os mais velhos são respeitados com imensa devoção.
Uma cena das crianças na festa demonstra a boa educação dos pequenos uaimiri. Eles rodearam uma menina de seis anos provavelmente pela curiosidade de sua cor branca (os uaimiri são de cor morena bem definida), filha de um dos convidados, e conversaram fluentemente com ela, como se os dois lados se conhecessem há muito tempo.
Apesar de ser um marco e estar predestinado a ter sempre lugar de destaque na grande imprensa - Iawyraky, o milésimo guerreiro uaimiri, já é um membro que se incorporou ao cenário comum da tribo. Provavelmente não exista uma nação no mundo em que a maioria esmagadora de seus membros seja formada por crianças e adolescentes. A idade média do povo uaimiri-atroari é de apenas 16 anos.
Alegria dá o tom
Líder legendário dos uaimiri, Tomás Temyhe, fala até hoje menos Português do que aparentemente falava há 10 anos. Para ser entrevistado até por quem o conhece, precisou de tradutor.
Um palavra, porém, chamou a atenção de todos: "É uma festa prá dizer da nossa alegria e prá dizer que kinja (quinhá) está vivo". A frase é dita para fazer coro a uma das mais exuberantes danças encenadas no dia de ontem - a das meninas moças, que no maryba (marubá) cantam canções de guerra e de paz - tudo rigorosamente dentro da cultura e da língua deles, sem emprestar nada de ninguém.
"Estamos continuando do jeito que nós queremos ser", vociferava na festa .o cacique Mário Parwe, enquanto todos os uaimiri davam um abraço em torno da aldeia construída para comemorar o renascimento do povo. (OF)
Estrada quase exterminou etnia
Além de ter sido a primeira vez que a imprensa efetivamente foi convidada para conhecer o Maryba, que era festa proibida a não-índios, os líderes da tribo revelaram um segredo no dia de ontem que vai reescrever a história do povo do Alalaú.
Sem que sequer os coordenadores do Programa Uaimiri-Atroari soubessem, o cacique Mário Parwe informou que a população da tribo era na verdade aproximadamente 15 mil índios antes da construção da estrada BR-174.
"Não, Mário, consta que a população era de 5 a 6 mil índios", retrucou o coordenador do programa, Marcílio Albuquerque. Mário Parwe foi inflexível: "Os nossos cinco tiamurús garantem que nosso povo tinha 15 mil".
Os dados agora revelados podem redimensionar as estatísticas dos massacres contra os índios durante as várias frentes de expansão econômica em sua reserva.
Um outro fato que obrigatoriamente saiu ontem da festa e que merece ser incorporado pelo menos como registro à existência do Amazonas é a cultura viva dos uaimiri. Poucas festas em tribos brasileiras tem tantos instrumentos, cantos e organização cênica como a realizada ontem, na qual participam todos, sem uma única exceção.
A Crítica, 08/12/2003, Capa e Cidades, p. A1 e A6
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