De Povos Indígenas no Brasil
Notícias
Confira a entrevista com o antropólogo e amigo dos guarani Rubem Thomaz de Almeida
07/04/2010
Fonte: Projeto Ava Marandu - http://www.pontaodeculturaguaicuru.org.br/avamarandu/
Rubem Thomaz de Almeida é antropólogo e um dos maiores entendedores dos kaiowá-guarani. Dedicou mais de 30 anos de sua vida às demandas desse povo e a estudos ligados aos problemas mais urgentes dos guarani. Ele assegura que existe solução para os problemas dos guarani de Mato Grosso do Sul. Confira:
Projeto Ava Marandu - Por que você resolveu dedicar mais de 30 anos de sua vida aos estudos sobre (e com) os Guarani?
Rubem Thomaz de Almeida - Quando comecei a trabalhar com antropologia, os antropólogos não tinham tanto foco, trabalhava com um grupo indígena aqui, depois mudava pra outro grupo ali, depois fazia outro tipo de pesquisa e assim seguia. E eu, depois de cinco anos trabalhando com os kaiowá-guarani pensava que já havia ficado tempo suficiente com eles. Mas coincidentemente, sempre que pensava nisso, alguma novidade aparecia no âmbito da geopolítica, ou seja, na mobilização política dos índios. E por conta do trabalho que eu fazia com eles, que era um projeto, não era uma pesquisa acadêmica pura e simples, sempre acabava aparecendo novas demandas da parte dos índios. Chegavam e diziam: "Olhe, tem uma terra pra ser avaliada ali, vamos ver como você pode ajudar", por conta disso ficava mais dois, ou três anos e assim acabei ficando a vida toda. Esse é um dos aspectos, o viés da política no qual eu me sentia útil na medida em que os índios demandavam.
O segundo aspecto é que eles são fascinantes. São pessoas que me cativaram desde o primeiro momento. Eu ainda era estudante universitário, vivia em São Paulo, paulistano, com uma vida social urbana intensa, enfim, não tinha a menor idéia do que isso seria, de que eu poderia ficar tanto tempo numa situação com 300, 600 pessoas, vivendo aquele cotidiano que eu achava moroso, lento. Então me deixaram numa aldeia e me disseram que em dez dias voltavam para me buscar. Minha cabeça virou totalmente, eles me "vacinaram", me mostraram que são realmente afáveis, simpáticos, agradáveis e que eu poderia estar com eles. Essa é outra razão também pela qual continuo trabalhando com eles. Acredito também que há o meu viés acadêmico, gosto de escrever, pensar, refletir e etc.
Projeto Ava Marandu - O que as pessoas deveriam saber obrigatoriamente sobre os Guarani?
Rubem de Almeida - Antes de tudo, o que eles são: um grupo humano. Eles são um grupo humano com todas as especificidades de um grupo humano: língua falada, religiosidade e organização social absolutamente própria dos guarani. Na perspectiva do antropólogo, é o outro, é o diferente. E creio que as pessoas deveriam levar isso em consideração. É valorizar essa manifestação humana, pois é uma riqueza cultural muito grande. Mas não valorizar no sentido de lhes colocarem uma redoma, mas no sentido da diversidade que tudo isso implica. Creio que isso deveria ser cuidado com mais atenção pelo Governo. Entender que são diferentes, respeitar essa diferença, valorizar as diferenças das manifestações humanas. Isso seria o básico. Porque é a partir daí você pode ter procedimentos diferenciados, você elimina racismo, preconceito e etc. O preconceito contra os índios é algo que deve ser combatido com veemência.
Projeto Ava Marandu - Por que a situação dos Guarani de MS chegou a esse ponto, sendo eles alvo de quase todo tipo de violência?
Rubem de Almeida - Isso está ligado à pergunta anterior. Eu me lembro que nos anos de 1970, comecinho dos anos de 1980, nos primeiros relatórios que participei na identificação de terras, colocaram logo nos primeiros parágrafos: "É importante que saibamos que estamos lidando com índios, isso é, com grupo humano específico e de direitos". A expectativa que se tinha dos índios e de como se pensava os guarani, até mesmo dentro da FUNAI, era que estavam acabando, que não existiam mais, que estavam em franco processo de aculturação.Isso estava muito associado à literatura. O Egon Schaden, que é um "paranólogo" dos anos de 1940 e 1950, digamos assim, é um exemplo disso. Ao ler os livros do Schaden, e foi o que aconteceu comigo, você tinha a sensação de que os índios haviam acabado.
Ao considerá-los dessa forma, que estavam em processo de aculturação, que deveriam ser integrados, que eram uma sociedade temporária, isso fez com que se desenvolvesse uma política de desconsiderar a necessidade de eles terem um atendimento específico ou uma atenção apropriada, como está na Constituição. Eu diria que essa abordagem foi superada pela antropologia da década de 1970 e 1980.
Tenho a impressão que essa concepção que se tinha dos guarani, hoje em certa medida diferenciada da dos anos de 1970, quando então era possível você desenvolver uma política mais eficaz com essa população, fez com que se aplicasse políticas indigenista totalmente inapropriadas. Eu tive o desprazer de acompanhar esse processo nos últimos 30 anos. Você vê que hoje é bastante mais complicado resolver isso. E mesmo com toda problemática que caracteriza essa população, ainda se tem muita concepção equivocada e obviamente os problemas vão se avolumando. E necessário que o Governo tome uma atitude, que "pegue o touro a unha", que enfrente efetivamente o problema e encaminhe soluções.
Projeto Ava Marandu - Existe solução para os problemas que os guarani enfrentam atualmente? Qual seria a melhor maneira de lhes garantir melhores condições de vida?
Rubem de Almeida - Sim, sem dúvida. Você tem provas, experiências e inúmeros indicadores, não só no Brasil, mas também no Paraguai. Você tem indicadores consistentes que ao resolver os problemas com as terras reivindicadas você soluciona grande parte do problema. Não há menor dúvida sobre isso. Na medida em que você faz o mapeamento, em que se tem com precisão as terras reivindicadas pelos índios e você realiza isso, oferece isso, você elimina 70% dos problemas. E para eliminar o restante dos problemas é preciso levar a cabo o restante dos programas de sustentabilidade e gestão territorial.
Isso não é uma comprovação simplista. Temos o exemplo da Itaipu Binacional ali no oeste do Paraná, dei consultaria para eles durante anos, e afirmo que a situação dos índios dali é absolutamente tranquila. A Itaipu comprou terras para que os índios tenham espaço para produzir seu próprio alimento, que é a segunda demanda deles. A primeira demanda é a questão das terras e a segunda é realmente poder plantar. No caso da Itaipu, você tem recursos suficientes para o plantio e não tem mais casos de febre, você não precisa mais de remédio, cestas básicas... Há uns anos atrás a FUNASA de Curitiba chegou a perguntar por que o pessoal da Añetete (uma das aldeias dessa área que a Itaipu comprou) não precisava mais de remédio. Aí foram lá averiguar, porque todas outras aldeias pediam medicamentos. Chegaram e constataram que realmente não era necessário o remédio, as crianças estavam gordinhas, saudáveis e as pessoas bem alimentadas porque ali tinha comida.
Projeto Ava Marandu - Existem muitos problemas com o tratamento da informação proveniente da "grande mídia" em relação aos povos indígenas. Qual é o maior erro da imprensa e por que ela continua errando no tratamento da informação nas questões indígenas?
Rubem de Almeida - Antes de tudo, creio que prevalece um viés ideológico na formulação de uma política. Você tem os fazendeiros com interesse numa variável determinante, que é a terra. Você tem uma situação em que o Governo é norteado por uma perspectiva eleitoreira. E no caso de Mato Grosso do Sul, há uma associação imediata entre o fazendeiro, o produtor rural, ou digamos, o dono da terra, com o poder econômico regional ou estadual, que estão em correlação "íntima" com os proprietários das televisões, rádios e dos jornais. É sabido que vários dos proprietários desses meios de comunicação também têm terras. Então creio que é muito mais uma questão de natureza ideológica do que desconhecimento de causa, muito embora o desconhecimento de causa contribua para esses erros.
Você também nota que há uma postura recalcitrante por parte da imprensa, como se dissessem: "bem, nos jogamos no time dos fazendeiros, vamos fazer uma política favorável aos fazendeiros e vamos contra os índios". Mesmo tendo muito material sobre o tema, a mídia persiste com esses equívocos, digo isso porque são inúmeros os antropólogos indicando que o caminho não é por aí. E insisto que esses equívocos estão vinculados a uma ideologia de uma classe social que, de uma forma ou de outra, controla a maior parte da mídia e nos dão imagens que ela bem entende das questões dos índios e da questão das terras.
Projeto Ava Marandu - Como o senhor analisa a inserção de novas mídias e instrumentos tecnológicos - como internet, câmeras, gravadores - no quotidiano de alguns povos indígenas?
Rubem de Almeida - Tenho pensado mais sobre essa questão das mídias, mas não sei muito bem como isso possa ter um peso na questão crucial dos guarani, que é a questão da terra. Obviamente eu sou absoluta, total e integralmente favorável que se promovam outras formas de comunicação. Há pouco tempo teve o Encontro dos Povos Guarani da América do Sul, no Paraná. Foi muito interessante, guarani de todos os lugares se comunicaram, estabeleceram relações e etc. E agora na sequência, temos tentado se comunicar e temos notado uma dificuldade enorme, pois o celular custa caro e não são todos que têm internet. Mas creio que se fosse possível estabelecer esse tipo de comunicação entre os guarani, seria muito produtivo e positivo para eles. Talvez assim eles pudessem se comunicar mais e a partir daí fazerem um movimento para fortalecê-los.
É sempre importante fazer filmes, gravações. Muitos se envolvem com arte, tem muitos que cantam... Pessoalmente aqui estou revisando meus CDs e já achei cinco produzidos por guarani. Mas se faço uma associação direta com os dois maiores problemas dos guarani, que é a terra e a produção de alimentos, eu diria que deveríamos investir mais no como isso poderia ser eficaz para os problemas que eles estão enfrentando. Não sei muito bem como, por isso levanto essa questão, pois para mim essa que é a grande questão.
Durante minha trajetória com os guarani fiz todo meu trabalho em função da demanda deles. Faço um esforço muito grande para não inserir demandas. Um exemplo foi quando cheguei ao Mato Grosso do Sul em 1976, depois de ter passado três anos no Paraguai, onde lidava com problemas de terra. Ao chegar ao Brasil, dizia pra mim, é impossível que esses índios aqui não tenham problema de terra. Ouvia alguma coisa ou outra dos próprios indígenas, mas passei dois anos esperando até que eles se organizassem e apresentassem o problema em 1978. Em nenhum momento interferi nesse processo.
Isso pra dizer que minha atitude foi sempre a de atender demandas. Não vou impor, não vou inventar história, não vou dizer que o problema vai surgir lá na frente, enfim, do meu ponto de vista essas são questões que podem ser gerenciadas por eles, que fazem parte da sua história. Eu também desconsidero como importante a idéia de conscientização. Você não conscientiza índios. Obviamente você dá informações, você discute, mas isso de conscientizar ou recuperar coisas não é eficaz. Os católicos investem muito nessa linha... Mas enfim, voltando ao núcleo dessa questão, o mais importante é fazer com que essas mídias possam auxiliá-los a trocarem informações entre eles e a fortalecer o movimento político deles, que é sempre baseado na questão fundiária.
Projeto Ava Marandu - Qual deve ser a postura do antropólogo em relação a situação dos guarani e dos povos indígenas do Brasil? Como ele deve se portar?
Rubem de Almeida - Penso que os antropólogos têm se comportado bem. No tipo de etnologia que eu faço minha preocupação não é tanto acadêmica. Como diria Durkheim, a ciência tem que ser útil, ela tem que ser eficaz para o grupo social, para a sociedade. Ou como diria o Milton Nascimento: "O artista tem que ir onde povo está". E juntos com os companheiros de profissão construímos uma geração na antropologia brasileira voltada para isso. Não sei se você ouviu falar de umas reuniões chamadas de "Barbados I", "II" e "III". Se eu não em engano a primeira foi em 1971, a segunda 1975 e última em 1992 ou 1993. A primeira, em 1971, quando na América Latina havia muita repressão, os militares estavam tomando todos os Estados. E em Barbados, meio às escondidas, se denunciava a posição dos missionários, governos e também dos antropólogos na relação com os índios.
O próprio Egon Schaden passou a vida toda observando os índios enquanto isso os índios estavam vivenciando problemas gravíssimos com a usurpação de suas terras pelos colonizadores. Estive com ele umas cinco, seis vezes. Ele sempre me dizia: "não fazemos política". Eu respondia: "claro, professor, de jeito nenhum, nós fazemos ciência". Na verdade eu fazia política dedurando brigas horríveis com fazendeiros que entravam nas terras indígenas... Isso pra dizer, que hoje em dia a antropologia tem outra concepção em relação a sua própria atuação. Há uma abertura, espaços que permitem com que eu e meus companheiros sejamos reconhecidos, que tenhamos proteção científica mesmo não estando vinculado a nenhum tipo de academia. Não faço parte de nenhuma instituição acadêmica, a não ser informalmente. De uma forma ou de outra, hoje você pode dizer que a antropologia tem uma abertura maior, uma concepção diferenciada sobre a neutralidade da ciência. E creio que esse é um viés importante porque pesa no procedimento do antropólogo. Considerando que a neutralidade da ciência é uma abstração absolutamente desprovida de sentido, tenho a impressão que a antropologia brasileira, assim como a americana, deixa espaços importantes para uma atuação de ordem política por parte do antropólogo. Se eu fosse fazer o que faço nos anos de 1940, provavelmente eu não seria considerado antropólogo.
Mas também é uma coisa perigosa de você lidar, porque afinal de contas, por tradição a antropologia esteve muito mais voltada para a produção acadêmica do que a outro tipo vínculo. É muito difícil responder essa questão, porque você tem ao mesmo tempo inúmeras produções puramente científicas que acho extremamente úteis para você compreender os índios e também a ação política dos antropólogos. Nessa medida, como disse no início, os antropólogos tem se comportado muito bem, muito embora eu penso que devamos ter mais antropólogos no "mato", eles deveriam contribuir mais com a formulação de políticas públicas por parte do Estado. Creio que o antropólogo tem um peso muito grande nessa linha, porque conhece seu objeto de investigação e pode, portanto, repassar informações que possam auxiliar a política pública junto a essas populações.
http://www.pontaodeculturaguaicuru.org.br/avamarandu/noticia.php?not_id=40
Projeto Ava Marandu - Por que você resolveu dedicar mais de 30 anos de sua vida aos estudos sobre (e com) os Guarani?
Rubem Thomaz de Almeida - Quando comecei a trabalhar com antropologia, os antropólogos não tinham tanto foco, trabalhava com um grupo indígena aqui, depois mudava pra outro grupo ali, depois fazia outro tipo de pesquisa e assim seguia. E eu, depois de cinco anos trabalhando com os kaiowá-guarani pensava que já havia ficado tempo suficiente com eles. Mas coincidentemente, sempre que pensava nisso, alguma novidade aparecia no âmbito da geopolítica, ou seja, na mobilização política dos índios. E por conta do trabalho que eu fazia com eles, que era um projeto, não era uma pesquisa acadêmica pura e simples, sempre acabava aparecendo novas demandas da parte dos índios. Chegavam e diziam: "Olhe, tem uma terra pra ser avaliada ali, vamos ver como você pode ajudar", por conta disso ficava mais dois, ou três anos e assim acabei ficando a vida toda. Esse é um dos aspectos, o viés da política no qual eu me sentia útil na medida em que os índios demandavam.
O segundo aspecto é que eles são fascinantes. São pessoas que me cativaram desde o primeiro momento. Eu ainda era estudante universitário, vivia em São Paulo, paulistano, com uma vida social urbana intensa, enfim, não tinha a menor idéia do que isso seria, de que eu poderia ficar tanto tempo numa situação com 300, 600 pessoas, vivendo aquele cotidiano que eu achava moroso, lento. Então me deixaram numa aldeia e me disseram que em dez dias voltavam para me buscar. Minha cabeça virou totalmente, eles me "vacinaram", me mostraram que são realmente afáveis, simpáticos, agradáveis e que eu poderia estar com eles. Essa é outra razão também pela qual continuo trabalhando com eles. Acredito também que há o meu viés acadêmico, gosto de escrever, pensar, refletir e etc.
Projeto Ava Marandu - O que as pessoas deveriam saber obrigatoriamente sobre os Guarani?
Rubem de Almeida - Antes de tudo, o que eles são: um grupo humano. Eles são um grupo humano com todas as especificidades de um grupo humano: língua falada, religiosidade e organização social absolutamente própria dos guarani. Na perspectiva do antropólogo, é o outro, é o diferente. E creio que as pessoas deveriam levar isso em consideração. É valorizar essa manifestação humana, pois é uma riqueza cultural muito grande. Mas não valorizar no sentido de lhes colocarem uma redoma, mas no sentido da diversidade que tudo isso implica. Creio que isso deveria ser cuidado com mais atenção pelo Governo. Entender que são diferentes, respeitar essa diferença, valorizar as diferenças das manifestações humanas. Isso seria o básico. Porque é a partir daí você pode ter procedimentos diferenciados, você elimina racismo, preconceito e etc. O preconceito contra os índios é algo que deve ser combatido com veemência.
Projeto Ava Marandu - Por que a situação dos Guarani de MS chegou a esse ponto, sendo eles alvo de quase todo tipo de violência?
Rubem de Almeida - Isso está ligado à pergunta anterior. Eu me lembro que nos anos de 1970, comecinho dos anos de 1980, nos primeiros relatórios que participei na identificação de terras, colocaram logo nos primeiros parágrafos: "É importante que saibamos que estamos lidando com índios, isso é, com grupo humano específico e de direitos". A expectativa que se tinha dos índios e de como se pensava os guarani, até mesmo dentro da FUNAI, era que estavam acabando, que não existiam mais, que estavam em franco processo de aculturação.Isso estava muito associado à literatura. O Egon Schaden, que é um "paranólogo" dos anos de 1940 e 1950, digamos assim, é um exemplo disso. Ao ler os livros do Schaden, e foi o que aconteceu comigo, você tinha a sensação de que os índios haviam acabado.
Ao considerá-los dessa forma, que estavam em processo de aculturação, que deveriam ser integrados, que eram uma sociedade temporária, isso fez com que se desenvolvesse uma política de desconsiderar a necessidade de eles terem um atendimento específico ou uma atenção apropriada, como está na Constituição. Eu diria que essa abordagem foi superada pela antropologia da década de 1970 e 1980.
Tenho a impressão que essa concepção que se tinha dos guarani, hoje em certa medida diferenciada da dos anos de 1970, quando então era possível você desenvolver uma política mais eficaz com essa população, fez com que se aplicasse políticas indigenista totalmente inapropriadas. Eu tive o desprazer de acompanhar esse processo nos últimos 30 anos. Você vê que hoje é bastante mais complicado resolver isso. E mesmo com toda problemática que caracteriza essa população, ainda se tem muita concepção equivocada e obviamente os problemas vão se avolumando. E necessário que o Governo tome uma atitude, que "pegue o touro a unha", que enfrente efetivamente o problema e encaminhe soluções.
Projeto Ava Marandu - Existe solução para os problemas que os guarani enfrentam atualmente? Qual seria a melhor maneira de lhes garantir melhores condições de vida?
Rubem de Almeida - Sim, sem dúvida. Você tem provas, experiências e inúmeros indicadores, não só no Brasil, mas também no Paraguai. Você tem indicadores consistentes que ao resolver os problemas com as terras reivindicadas você soluciona grande parte do problema. Não há menor dúvida sobre isso. Na medida em que você faz o mapeamento, em que se tem com precisão as terras reivindicadas pelos índios e você realiza isso, oferece isso, você elimina 70% dos problemas. E para eliminar o restante dos problemas é preciso levar a cabo o restante dos programas de sustentabilidade e gestão territorial.
Isso não é uma comprovação simplista. Temos o exemplo da Itaipu Binacional ali no oeste do Paraná, dei consultaria para eles durante anos, e afirmo que a situação dos índios dali é absolutamente tranquila. A Itaipu comprou terras para que os índios tenham espaço para produzir seu próprio alimento, que é a segunda demanda deles. A primeira demanda é a questão das terras e a segunda é realmente poder plantar. No caso da Itaipu, você tem recursos suficientes para o plantio e não tem mais casos de febre, você não precisa mais de remédio, cestas básicas... Há uns anos atrás a FUNASA de Curitiba chegou a perguntar por que o pessoal da Añetete (uma das aldeias dessa área que a Itaipu comprou) não precisava mais de remédio. Aí foram lá averiguar, porque todas outras aldeias pediam medicamentos. Chegaram e constataram que realmente não era necessário o remédio, as crianças estavam gordinhas, saudáveis e as pessoas bem alimentadas porque ali tinha comida.
Projeto Ava Marandu - Existem muitos problemas com o tratamento da informação proveniente da "grande mídia" em relação aos povos indígenas. Qual é o maior erro da imprensa e por que ela continua errando no tratamento da informação nas questões indígenas?
Rubem de Almeida - Antes de tudo, creio que prevalece um viés ideológico na formulação de uma política. Você tem os fazendeiros com interesse numa variável determinante, que é a terra. Você tem uma situação em que o Governo é norteado por uma perspectiva eleitoreira. E no caso de Mato Grosso do Sul, há uma associação imediata entre o fazendeiro, o produtor rural, ou digamos, o dono da terra, com o poder econômico regional ou estadual, que estão em correlação "íntima" com os proprietários das televisões, rádios e dos jornais. É sabido que vários dos proprietários desses meios de comunicação também têm terras. Então creio que é muito mais uma questão de natureza ideológica do que desconhecimento de causa, muito embora o desconhecimento de causa contribua para esses erros.
Você também nota que há uma postura recalcitrante por parte da imprensa, como se dissessem: "bem, nos jogamos no time dos fazendeiros, vamos fazer uma política favorável aos fazendeiros e vamos contra os índios". Mesmo tendo muito material sobre o tema, a mídia persiste com esses equívocos, digo isso porque são inúmeros os antropólogos indicando que o caminho não é por aí. E insisto que esses equívocos estão vinculados a uma ideologia de uma classe social que, de uma forma ou de outra, controla a maior parte da mídia e nos dão imagens que ela bem entende das questões dos índios e da questão das terras.
Projeto Ava Marandu - Como o senhor analisa a inserção de novas mídias e instrumentos tecnológicos - como internet, câmeras, gravadores - no quotidiano de alguns povos indígenas?
Rubem de Almeida - Tenho pensado mais sobre essa questão das mídias, mas não sei muito bem como isso possa ter um peso na questão crucial dos guarani, que é a questão da terra. Obviamente eu sou absoluta, total e integralmente favorável que se promovam outras formas de comunicação. Há pouco tempo teve o Encontro dos Povos Guarani da América do Sul, no Paraná. Foi muito interessante, guarani de todos os lugares se comunicaram, estabeleceram relações e etc. E agora na sequência, temos tentado se comunicar e temos notado uma dificuldade enorme, pois o celular custa caro e não são todos que têm internet. Mas creio que se fosse possível estabelecer esse tipo de comunicação entre os guarani, seria muito produtivo e positivo para eles. Talvez assim eles pudessem se comunicar mais e a partir daí fazerem um movimento para fortalecê-los.
É sempre importante fazer filmes, gravações. Muitos se envolvem com arte, tem muitos que cantam... Pessoalmente aqui estou revisando meus CDs e já achei cinco produzidos por guarani. Mas se faço uma associação direta com os dois maiores problemas dos guarani, que é a terra e a produção de alimentos, eu diria que deveríamos investir mais no como isso poderia ser eficaz para os problemas que eles estão enfrentando. Não sei muito bem como, por isso levanto essa questão, pois para mim essa que é a grande questão.
Durante minha trajetória com os guarani fiz todo meu trabalho em função da demanda deles. Faço um esforço muito grande para não inserir demandas. Um exemplo foi quando cheguei ao Mato Grosso do Sul em 1976, depois de ter passado três anos no Paraguai, onde lidava com problemas de terra. Ao chegar ao Brasil, dizia pra mim, é impossível que esses índios aqui não tenham problema de terra. Ouvia alguma coisa ou outra dos próprios indígenas, mas passei dois anos esperando até que eles se organizassem e apresentassem o problema em 1978. Em nenhum momento interferi nesse processo.
Isso pra dizer que minha atitude foi sempre a de atender demandas. Não vou impor, não vou inventar história, não vou dizer que o problema vai surgir lá na frente, enfim, do meu ponto de vista essas são questões que podem ser gerenciadas por eles, que fazem parte da sua história. Eu também desconsidero como importante a idéia de conscientização. Você não conscientiza índios. Obviamente você dá informações, você discute, mas isso de conscientizar ou recuperar coisas não é eficaz. Os católicos investem muito nessa linha... Mas enfim, voltando ao núcleo dessa questão, o mais importante é fazer com que essas mídias possam auxiliá-los a trocarem informações entre eles e a fortalecer o movimento político deles, que é sempre baseado na questão fundiária.
Projeto Ava Marandu - Qual deve ser a postura do antropólogo em relação a situação dos guarani e dos povos indígenas do Brasil? Como ele deve se portar?
Rubem de Almeida - Penso que os antropólogos têm se comportado bem. No tipo de etnologia que eu faço minha preocupação não é tanto acadêmica. Como diria Durkheim, a ciência tem que ser útil, ela tem que ser eficaz para o grupo social, para a sociedade. Ou como diria o Milton Nascimento: "O artista tem que ir onde povo está". E juntos com os companheiros de profissão construímos uma geração na antropologia brasileira voltada para isso. Não sei se você ouviu falar de umas reuniões chamadas de "Barbados I", "II" e "III". Se eu não em engano a primeira foi em 1971, a segunda 1975 e última em 1992 ou 1993. A primeira, em 1971, quando na América Latina havia muita repressão, os militares estavam tomando todos os Estados. E em Barbados, meio às escondidas, se denunciava a posição dos missionários, governos e também dos antropólogos na relação com os índios.
O próprio Egon Schaden passou a vida toda observando os índios enquanto isso os índios estavam vivenciando problemas gravíssimos com a usurpação de suas terras pelos colonizadores. Estive com ele umas cinco, seis vezes. Ele sempre me dizia: "não fazemos política". Eu respondia: "claro, professor, de jeito nenhum, nós fazemos ciência". Na verdade eu fazia política dedurando brigas horríveis com fazendeiros que entravam nas terras indígenas... Isso pra dizer, que hoje em dia a antropologia tem outra concepção em relação a sua própria atuação. Há uma abertura, espaços que permitem com que eu e meus companheiros sejamos reconhecidos, que tenhamos proteção científica mesmo não estando vinculado a nenhum tipo de academia. Não faço parte de nenhuma instituição acadêmica, a não ser informalmente. De uma forma ou de outra, hoje você pode dizer que a antropologia tem uma abertura maior, uma concepção diferenciada sobre a neutralidade da ciência. E creio que esse é um viés importante porque pesa no procedimento do antropólogo. Considerando que a neutralidade da ciência é uma abstração absolutamente desprovida de sentido, tenho a impressão que a antropologia brasileira, assim como a americana, deixa espaços importantes para uma atuação de ordem política por parte do antropólogo. Se eu fosse fazer o que faço nos anos de 1940, provavelmente eu não seria considerado antropólogo.
Mas também é uma coisa perigosa de você lidar, porque afinal de contas, por tradição a antropologia esteve muito mais voltada para a produção acadêmica do que a outro tipo vínculo. É muito difícil responder essa questão, porque você tem ao mesmo tempo inúmeras produções puramente científicas que acho extremamente úteis para você compreender os índios e também a ação política dos antropólogos. Nessa medida, como disse no início, os antropólogos tem se comportado muito bem, muito embora eu penso que devamos ter mais antropólogos no "mato", eles deveriam contribuir mais com a formulação de políticas públicas por parte do Estado. Creio que o antropólogo tem um peso muito grande nessa linha, porque conhece seu objeto de investigação e pode, portanto, repassar informações que possam auxiliar a política pública junto a essas populações.
http://www.pontaodeculturaguaicuru.org.br/avamarandu/noticia.php?not_id=40
As notícias publicadas no site Povos Indígenas no Brasil são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos .Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.